Fazendo e aprendendo: uma experiência de ensino/aprendizagem
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Fazendo e aprendendo: uma experiência de ensino/aprendizagem
Doing and learning: a teaching/learning experience
Haciendo y aprendiendo: una experiencia de enseñanza/aprendizaje
Maria José Sanches MarinI; Elaine Morelato VilelaI; Cristina Peres CardosoII;
Luzmarina Aparecida Doreto BraccialliIII; Shirlene PavelqueiresIV;Márcia Rosely
Miyakawa DadaltiV
IDoutora em Enfermagem. Docente da Disciplina de Enfermagem em Saúde Coletiva
do Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília
IIMestre em Enfermagem. Docente da Disciplina de Enfermagem Pediátrica do Curso
de Enfermagem da Faculdade de Medicina de MaríliA
IIIMestre em Enfermagem. Docente da Disciplina de Enfermagem em Saúde Coletiva
do Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília
IVDoutora em Enfermagem. Docente da Disciplina de Enfermagem Clinica do Curso
de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília
VAuxiliar de Ensino da Disciplina de Enfermagem em Ginecologia e Obstetrícia do
Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília
1 Introdução
Nas últimas décadas, o mundo todo vem sofrendo profundas mudanças nos aspectos
econômico, político, social e cultural, as quais ampliaram as desigualdades
econômicas com conseqüências sociais visíveis.
Diante desse contexto, na área da saúde, busca-se a efetivação dos princípios
do Sistema Único de Saúde (SUS) visando o acesso universal, a qualidade e
humanização na atenção à saúde com controle social. Tal necessidade demanda uma
reorganização na formação e capacitação de recursos humanos para atuar de forma
que atenda às reais necessidades da população.
A 11ª Conferência Nacional de Saúde aponta para o papel das universidades na
formação, requalificação e qualificação profissional, propondo, entre outras
necessidades, a revisão das estruturas curriculares pautada na política,
legislação e trabalho no SUS, de forma articulada com os seguimentos de
controle social possibilitando a reorganização da prática, rotina e modelos de
atenção à saúde(1).
Para a enfermagem brasileira, a transição no sistema de saúde abre novas
oportunidades para o surgimento de um profissional com mais autonomia e maior
poder técnico, administrativo e político na gestão de sistemas municipais de
saúde e necessita apropriar-se de novas tecnologias(2).
As Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Enfermagem, aprovado
pela Portaria n. 1518 de 14.06.2000(3), prevêm que a construção do Projeto
Político Pedagógico contribua para formação de profissionais com conhecimento
de novas ferramentas que possibilitem a atuação com a vida e com a sociedade,
subentendendo ruptura com o modelo de divisão social, modelos tecnicistas de
ensino e a aquisição de habilidades voltadas para a realização de procedimentos
especializados(4).
Lima e Ribeiro(4) apontam o desafio na construção de novos modelos pedagógicos
para a formação de profissionais no campo da saúde, frente às necessidades da
sociedade atual, que consiste em fazer acontecer na escola o que esperamos
suceder fora dela, nos espaços de promoção e de provisão de cuidados à saúde.
Em resposta a uma política nacional e institucional, os docentes do Curso de
Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA) deram início, em 1993,
a um processo de revisão do currículo e da proposta pedagógica adotada.
Objetivava-se com isso implementar um modelo de educação para os profissionais
de saúde alicerçado nos sistemas locais, com a finalidade de construir um
modelo formador de recursos humanos em saúde que atendesse aos perfis
epidemiológicos, em parceria com os serviços e com a participação da população.
O processo de revisão curricular se deu mediante o desenvolvimento de vários
cursos de capacitação pedagógica, voltados para os docentes do Curso de
Enfermagem, os quais entenderam a proposta de currículo integrado como a mais
próxima de atingir o ideário em questão.
Delinearam-se, inicialmente, os princípios filosóficos que norteariam o
desenvolvimento do currículo, incluindo os conceitos de enfermagem como prática
socialmente determinada, de homem como ser capaz de agir e modificar a
realidade, de estrutura social constituída pelas relações de poder e de
processo saúde/doença determinado pelo trabalho e formas de vida das pessoas
(5).
Dessa forma, definiu-se o perfil do enfermeiro a ser formado pelo Curso de
Enfermagem da seguinte forma: "Profissional generalista, reflexivo, capaz de
trabalhar em equipe, tomar decisões e intervir criticamente no processo saúde/
doença, considerando o perfil epidemiológico e provendo cuidados de enfermagem
ao indivíduo, família e comunidade, de forma humanizada, buscando constante
atualização do conhecimento".
Seguindo a proposta de construção de currículo integrado(6), após a definição
do perfil profissional a ser formado, partiu-se para a identificação dos
conhecimentos necessários para tal formação. Esse passo conhecido como rede
explicativa, traz os princípios gerais (conceitos chaves), os quais por sua
vez, deram origem às Unidades Educacionais, distribuídas nas quatro séries que
compõem o curso.
As disciplinas tradicionais deixaram de ser oferecidas separadamente para
integrar-se nas Unidades Educacionais, nas quais os conteúdos são
desenvolvidos, de forma integrada, em seqüências de atividades contextualizadas
com a realidade prática vivenciada pelo estudante. Desta forma, foram
desenvolvidas, nas quatro séries, 22 unidades educacionais.
A implementação do novo currículo do Curso de Enfermagem foi iniciada em 1998 e
privilegiou a integração dos conteúdos, teoria e pratica e ensino/serviço, bem
como a utilização da metodologia problematizadora.
Na avaliação da nova proposta que ocorreu no decorrer do processo de ensino
aprendizagem e contou com a participação dos estudantes e docentes, sentiu-se a
necessidade de maior integração das Unidades Educacionais e se identificou
fragilidades na articulação ensino/serviço e teória/prática. Como conseqüência,
surgiu a proposta de integrar as Unidades Educancionais das séries. Tais
Unidades Educacionais, após passarem por reestruturações gradativas,
atualmente, encontram-se organizadas por série. A primeira e segunda séries,
tem como cenário de ensino uma microárea, com uma média de 40 famílias,
pertencentes a uma Unidade Básica de Saúde do município; a terceira série
desenvolve suas atividades nas Unidades hospitalares e o Estágio Supervisionado
na quarta série desenvolve-se em ambos os cenários (rede básica e rede
hospitalar), com um semestre em cada cenário.
Nossa proposta, portanto, é relatar a experiência da segunda série do Curso de
Enfermagem na busca de superar a dicotomia apontada.
2 A segunda série do Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília
Na segunda série dá-se continuidade ao trabalho iniciado pela primeira série do
curso, na qual os estudantes realizam o diagnóstico de saúde da coletividade,
seguindo os passos proposto por Acurcio(7), o qual fundamenta-se no referencial
do Planejamento Estratégico Situacional (PES) proposto por Carlos Matus e
compreende o conhecimento da realidade local, levantamento dos problemas e
explicação de suas causas e conseqüências, determinação dos nós críticos,
planejamento e implementação das soluções e avaliação das ações implementadas.
Além disso, na primeira série, os estudantes iniciam a avaliação do estado de
saúde do indivíduo, considerando os principais agravos encontrados na
coletividade.
A segunda série, portanto tem, o seguinte propósito: "Estudar a sistematização
da assistência de enfermagem, no nível primário de atenção à saúde, com enfoque
na vigilância à saúde, utilizando o método clínico, epidemiológico, pedagógico
e administrativo, no contexto das famílias de uma microárea, pertencente a uma
Unidade Básica de Saúde do município, considerando as diferentes etapas do
crescimento e desenvolvimento humano.
A elaboração de tal propósito teve como ponto de partida o fazer do enfermeiro,
o que justifica a sistematização da assistência de enfermagem a partir dos
principais problemas encontrados ao nível individual e coletivo.
Considerando-se o propósito da unidade foram construídos desempenhos a serem
atingidos pelos estudantes, os quais, além de guiar a construção das atividades
de ensino, serviram de parâmetro para avaliação dos estudantes.
Os desempenhos a serem atingidos pelos estudantes da segunda série são:
· Presta assistência de enfermagem ao indivíduo, família e comunidade
fundamentado na sistematização a assistência de enfermagem, visando a
vigilância à saúde e a autonomia do sujeito;
· Utiliza recursos de ensino aprendizagem no desenvolvimento das atividades;
· Trabalha em grupo;
· Realiza trabalho com grupo;
· Realiza visita domiciliar;
· Trabalha em equipe interdisciplinar e multiprofissional;
· Desenvolve a capacidade de observação, comunicação e análise crítica com base
em princípios éticos e de cidadania;
· Utiliza precaução padrão.
Os desempenhos acima são considerados como desempenhos maiores. No entanto,
eles são detalhados de forma a abranger os aspectos cognitivos, comportamentais
e de habilidades.
A figura_I apresenta, de forma esquemática, a construção da série em questão,
destacando-se dois grandes temas, a manutenção da vida, incluindo as
necessidades de oxigenação, proteção, alimentação, hidratação, eliminação e
circulação e avida de relações que enfoca a sexualidade e reprodução nas
diferentes fases do desenvolvimento humano. Tal construção considera os sinais
e sintomas de afecções crônicas e agudas mais freqüentes de forma a atuar na
promoção, prevenção e terapêutica das mesmas, com ênfase nas condições de vida
e trabalho do indivíduo, família e comunidade.
Nesse sentido foram construídas as seqüências de atividades, nas quais
encontram-se as estratégias de ensino/aprendizagem, deixando claro o que o
aluno e o professor devem realizar para atingir os desempenhos propostos.
As seqüências de atividades organizam-se de acordo com a metodologia
probematizadora, partindo do princípio de que, em um mundo de mudanças rápidas,
o importante não são os conhecimentos ou idéias nem os compromissos corretos e
fáceis que se esperam, mas sim o aumento da capacidade de percepção da
transformação social para detectar os problemas reais e buscar para eles
soluções originais e criativas(8).
Assim, os três níveis de operações mentais (representação, relação, ação) devem
ser consideradas ao sistematizar o processo de pensamento para que o adulto
possa desenvolver e usar seu potencial intelectual(9) .
No primeiro momento, portanto, os estudantes em contato com a comunidade e com
as atividades práticas do serviço, são estimulados a elaborar perguntas sobre o
assunto que está sendo analisado, partindo do senso comum e a identificar os
pontos que demandam maior aprofundamento. Num segundo momento, de posse dos
dados da realidade e dos questionamentos, os estudantes buscam o conhecimento
através de entrevistas, visitas, leitura de livros e revistas, Internet,
laboratórios, ou outras formas de obtê-lo. Após essa busca, eles têm a
oportunidade de retornar para sala de aula e discutir o assunto com um
especialista convidado para essa finalidade, o que, a nosso ver, possibilita ao
estudante obter conhecimento amplo do assunto, além de discutir suas dúvidas.
Concomitantemente, as ações são implementadas e avaliadas no decorrer da
atuação prática.
A maioria das atividades são realizadas em pequenos grupos com acompanhamento
de um professor, que assume o papel de orientador. Em alguns momentos, porém,
os estudantes retornam ao grande grupo para participar de plenárias, onde são
discutidos os temas centrais que norteiam a seqüência em desenvolvimento.
Em alguns momentos, os docentes das Disciplinas Básicas que fazem parte da
série (anatomia, fisiologia, enfermagem psiquiátrica e saúde mental,
microbiologia, farmacologia, embriologia, imunologia, patologia, bioquímica,
histologia, genética e psicologia) vão ao campo, no qual são desenvolvidas as
atividades praticas, com a finalidade de vivenciar, junto com os estudantes, a
problemática que emerge dela e após a teorização, retornam para discussão e
definição da solução mais adequada a ser implementada na situação em questão.
A avaliação é uma atividade permanente e dinâmica do processo de ensino/
aprendizagem, com a finalidade de visualizar os avanços e dificuldades, o que
possibilita ajustes no processo. Propõe, portanto, acompanhar e recuperar as
lacunas que, eventualmente, possam conter, além de verificar o quanto o
estudante avançou nos desempenhos propostos na unidade e o quanto o professor
contribuiu para este avanço e adequação.
3 Considerações Finais
Mudar em educação representa a ruptura do hábito e da rotina, a obrigação de
pensar de forma nova em coisas familiares e a tornar a pôr em causa antigos
postulados(10). Esse é o grande desafio daqueles que se propõem a mudar, uma
vez que a tendência, a norma e a inércia são forças persistentes na pratica
humana(11).
Nesse sentido, os docentes do Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de
Marília, vêm trabalhando persistentemente no processo de mudança curricular,
cuja finalidade é centrar o ensino no estudante, utilizar os problemas
prevalentes da comunidade como base para a aprendizagem, visando a melhoria da
qualidade do cuidado prestado e a parceria com o serviço de saúde.
O momento que nos encontramos atualmente, é o reflexo dos cinco anos de atuação
no currículo integrado utilizando-se da metodologia problematizadora, através
da construção e reconstrução coletiva e contínua. Tal experiência tem se
revelado como um processo lento, no entanto, consistente e enriquecedor, devido
às constantes avaliações e reflexões entre os seus integrantes.
Este programa de ensino tem possibilitado ao estudante a compreensão do
processo de saúde e doença, através do acompanhamento sistemático, durante todo
ano letivo, dos usuários residentes na microárea.
Tais mudanças parecem representar alguns avanços, mas também colocam alguns
desafios. Entre eles, destacamos a necessidade de aprimoramento da capacidade
dos professores para trabalhar em grupo, a melhoria na articulação teórico/
pratica e das áreas de conhecimento entre si.
Para finalizar, é oportuno considera que a mudança pela qual o Curso de
Enfermagem está passando, deve ser entendida na perspectiva do pensamento
dialético, segundo o qual, as transformações não ocorrem de modo linear, mas
sim por meio de avanços e recuos, num processo em que o novo convive com o
antigo.
O relato de experiência que ora apresentamos, com certeza, ainda carece de
grandes aprimoramentos.