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BrBRCVHe0034-71672004000200011

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National varietyBr
Year2004
SourceScielo

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A participação popular nas comissões locais de saüde: mostrando vidas, contando lutas PESQUISA

A participação popular nas comissões locais de saüde: mostrando vidas, contando lutas

People's participation in local health committees: showing lives, telling fights

La participación popular en las comisiones locales de salud: mostrando vidas, contando luchas

Priscila Frederico CracoI; Maria Cecília Puntel de AlmeidaII IExtraído da Dissertação de Mestrado de FREDERICO, 2001 IIEnfermeira. Mestre em Enfermagem em Saúde Pública e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Enfermagem em Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP) IIIProfessora Titular do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da EERP-USP E-maildo autor:prizeva@com4.com.br.

1 Delineando o objeto em estudo: a contextualização da participação popular em saúde Nas últimas décadas, em função da profunda mudança econômico-social, cultural e tecnológica que vem ocorrendo no mundo, com exclusão de parcelas significativas da população aos bens da produção social, temos assistido a intensificação do debate sobre direito, democracia e saúde com revalorização dos processos de construção da cidadania e participação popular, sendo os movimentos sociais os interlocutores das demandas da sociedade civil junto ao Estado.

Realizar um estudo tendo como meta a busca do entendimento de um tema tão amplo, denso e dinâmico, como é a Participação Popular em Saúde, é uma tarefa ambiciosa e delicada. Pretendemos contribuir em alguma medida, por mais modesta que seja essa contribuição, para reafirmar a participação popular como uma estratégia essencial para melhorar a qualidade de vida e da assistência à saúde, possibilitando que os usuários sejam, também, autores sociais dos rumos das políticas públicas, no caso a da saúde.

Um dos avanços mais notáveis da Reforma Sanitária no Brasil foi a institucionalização, no interior do aparelho estatal, de um formidável sistema nacional de órgãos colegiados, dotados de um conjunto razoável de poderes legais e onde os usuários têm representação paritária em relação aos prestadores e ao governo, assegurando o controle social sobre as ações do Estado(1). Esses órgãos colegiados constituem um fenômeno nacional fruto de forte indução legal e administrativa que podem contribuir para a democratização ao induzir maior responsabilidade pública dos governos e ao favorecer a emergência de novos sujeitos políticos.

De acordo com a Lei Orgânica da Saúde, as instâncias de decisões do Sistema Único de Saúde são as Conferências de Saúde, que devem ser realizadas nos níveis nacional, estadual e municipal, em intervalos de tempo determinado, não podendo ultrapassar quatro anos e têm caráter consultivo(2,3). E os Conselhos de Saúde devem também ser organizados nos três níveis de governo. Ambas as instâncias devem ter composição paritária entre os usuários e os demais segmentos.

Assim, a municipalização da saúde oferece melhores condições de controle social, pois o poder local, por estar mais próximo da população, por ter mais visibilidade, é mais suscetível à participação popular(4). Por outro lado, oferece melhores condições de conhecer-se a realidade local e, portanto, encontrarem-se as melhores soluções para os problemas detectados.

Entretanto, chamamos a atenção para o fato de que a descentralização é uma condição, necessária sim, mas não suficiente para garantir sua efetiv(ação), ao aproximar o núcleo decisório dos envolvidos pode possibilitar a participação popular nas tomadas de decisões(5). Mas não pode garantir o elemento essencial da democratização que é a participação do cidadão. E pior, pode até produzir efeito contrário, o que acontece quando a saúde cai em uma rede política provinciana, onde prevaleça troca de favores, clientelismo e dominação política.

A lei 5972/91 dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde no município de Ribeirão Preto, interior paulista, local onde realizamos o presente estudo e estabelece as seguintes instâncias colegiadas: Conferência Municipal de Saúde, Conselho Municipal de Saúde, Comissão Municipal de Saúde e Comissões Locais de Saúde(6).

As Comissões Locais de Saúde, foco desta investigação, estão vinculadas às Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades Básicas e Distritais de Saúde (UBDS) da rede de serviços de saúde e destinam-se a possibilitar a participação da comunidades no acompanhamento, fiscalização e controle das ações e serviços de saúde nas áreas de abrangência das unidades. São constituídas por três representantes da associação de moradores de bairro, três representantes dos moradores da área de abrangência da unidade de saúde, eleitos por voto direto, cinco representantes dos servidores da unidade, eleitos por voto indireto e o gerente/administrador da unidade.

Logo, esta nova dinâmica de participação democrática da sociedade civil em colegiados, como as Conferências Municipais, os Conselhos Municipais e as Comissões Locais de Saúde vêm se dando em quase todos os municípios brasileiros no processo de municipalização da saúde, sendo que o nível de organização é bastante desigual e corre paralelo com o grau de participação política dos municípios, podendo contribuir para a organização de uma rede local de saúde mais resolutiva, equânime e solidária.

Consideramos as CLS como espaço público de expressão da participação popular em saúde e como uma realidade concreta no processo de municipalização da saúde.

Podem representar um lugar onde todos os participantes são considerados nos mecanismos decisórios, abrindo perspectivas para uma práxis criativa, igualitária, comprometida com a emancipação humanae potencilizadora da construção da solidariedadeentre os homens. Portanto, devem ser preservadas, defendidas, estimuladas e estudadas(7).

Um projeto de saúde fundado em uma práxis emancipadora democrática e comunicativa foi também analisado por Melo(5) que entende a saúde como um direito social,o que implica necessariamentepensá-la como decorrência da participação política livre e igual de todos os envolvidos. Para a autora a autonomia política é a condição chave de participantes que, além de destinatários,têm de ser também autoresde direitos.

Nos movimentos na área da saúde foram identificados três tipos principais: aqueles que atuam mais no nível da organização da prestação dos serviços; aqueles que têm um nível mais político de atuação e aqueles que demandam a mudança da lógica social na saúde enfatizando questões mais amplas, tais como informação, acesso, qualidade assistencial, cuidado pessoal, mudança na relação com o meio ambiente, entre outros(8). Portanto, a atuação nos movimentos sociais na saúde pode evoluir de um estágio mais reivindicativo, por equipamentos e melhorias de infra-estrutura, para um estágio mais propositivo com posicionamento mais "global", decorrente da própria ampliação do conceito do processo saúde-doença.

O capitalismo periférico é apontado como retardatário é desarticulador dos movimentos sociais e despolitizador das suas demandas(9). Apesar dessa realidade, a temática participação popular em saúde é emergente no campo da saúde coletiva, com tendência à ampliação.

A crise da participação está localizada no ramo dos movimentos populares, diferentes, por exemplo, dos movimentos ecológicos que hoje encontram-se em processo de franca ascensão(10). Nessa ótica, essa crise é reflexo de uma característica básica de todos os movimentos sociais: eles são cíclicos, momentos de fluxo e refluxo, o que é decorrência do fato de serem históricos e fruto de idéias e práticas sociais(10).

A partir das reflexões levantadas, o objetivo deste estudo é: Analisar a participação popular nas CLS, buscando visualizar e compreender como se a ação participativa de seus membros, identificando as potencialidades e as oportunidades a serem exploradas, semdeixar de apontar os limites presentes.

2 Quadro teórico: o paradigma dialógico ou comunicativo de Habermas O enfoque comunicativo de Habermas tem sido utilizado para subsidiar a compreensão de problemas de pesquisa nas áreas de educação e saúde principalmente aqueles que têm como foco de estudo as práticas enquanto trabalho e interação(5,11-5).

Habermas(16) propõe um salto paradigmático ao superar o predomínio do chamado "paradigma da consciência", norteado pela idéia de um pensador solitário, estabelecendo uma relação de subordinação do objeto frente ao sujeito e apresentar o "paradigma da comunicação", fundamentado nos processos de comunicação intersubjetiva com vistas a alcançar o entendimento lingüístico.

Portanto, o eixo central da Teoria da Ação Comunicativa (TAC), em torno do qual tudo gravita, é o processo comunicativo, que prevê três condições a priori: o interesse humano pela autonomia, pela responsabilidade e pela linguagem (comunicação). Caracteriza-se esse processo como uma "guinada comunicativa" onde a auto-exigência racional não é mais o esclarecimento, mas o compartilhamento(13).

Assim, para uma apreensão mais ampla da complexidade da participação popular nas CLS elaboramos duas categorias analíticas, fundamentadas na TAC de Habermas, que pudessem oferecer suporte teórico para a compreensão de nosso objeto de investigação. Nossa primeira categoria analítica nomeada como interações solidárias representa a existência ou possibilidade de desenvolvimento de comunicações baseadas em elementos de solidariedade, autonomia, cooperação, responsabilidade, respeito, ética, justiça social, direito e democracia, que segundo Habermas gerem o mundo da vida, esfera esta regulada pela busca do entendimento através de procedimentos comunicativos mediados lingüisticamente. A Segunda categoria analítica foi nomeada como interações sistêmicas e representa a existência de comunicações sistêmicas baseadas em elementos de poder, dinheiro, manipulação, burocracia, dominação e autoritarismo que para Habermas geram o mundo sistêmico onde os meios deslingüistificados (dinheiro e poder) assumem cada vez mais as funções de coordenar ações orientadas ao sucesso.

4 Caminho metodológico 4.2 A opção e a trajetória metodológica Diante da abrangência e complexidade do nosso problema de investigação optamos por utilizar a abordagem qualitativa de pesquisa onde aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, que possui uma carga histórica, cultural, política e ideológica não perceptível e captável apenas numa fórmula numérica ou num dado estatístico. O que implica considerar que o objeto das ciências sociais é complexo, contraditório, inacabado e em permanente transformação, existe em um determinado tempo e em um determinado espaço e precisa ser percebido e evidenciado pelo pesquisador, no próprio contexto em que os sujeitos vivem, cotidianamente(17).

4.3 A escolha do campo de pesquisa Esta pesquisa se estruturou com base na preocupação em estudar um fenômeno social (a participação popular) centrado nas CLS. Este foi o nosso recorte espacial e temporal mais específico e concreto que permitiu a visualização e reflexão sobre os limites e potencialidades desta participação. Inserimo-nos, nesta pesquisa, em duas (2) CLS do município de Ribeirão Preto, com ênfase na observação participante, procurando identificar e entender os bloqueios e potencialidades da participação nesta instância do setor saúde. Neste sentido partimos de um problema específico e concreto, tendência que vem ocorrendo, com a crescente complexidade das situações do setor saúde, buscando, no entanto, correlação com as questões mais gerais.

4.4 Aspectos éticos da pesquisa Antes de iniciarmos a fase operativa da pesquisa solicitamos permissão para a realização do trabalho junto à Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto, obtendo permissão por escrito. A seguir, encaminhamos o projeto de pesquisa para apreciação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Dos depoentes obtiemos o onsentimento lire e eslareido assinado.

4.5 O processo de pesquisa: métodos de investigação Os métodos de trabalho de campo foram entrevista semi-estruturada e observação participante. Inicialmente, entramos em contato com as trinta e três (33) Unidades de Saúde do município e visitamos pessoalmente quatorze (14) Unidades de Saúde que possuíam Comissões Locais de Saúde funcionantes. Utilizando um formulário, entrevistamos representantes dos usuários, das associações de moradores de bairro, dos profissionais de saúde e da gerência. Através da utilização de critérios objetivos de seleção como regularidade de funcionamento e tempo de existência e de critérios subjetivos, selecionamos duas (2) CLS, onde aprofundamos o estudo qualitativo. Consideramos, pois, uma amostra qualitativa intencional que busca refletir a totalidade do estudo nas suas múltiplas dimensões.

Assim, a pesquisadora, com a colaboração de um auxiliar de pesquisa e a anuência prévia dos participantes acompanhou as reuniões mensais de duas (2) Comissões Locais de Saúde como um membro participante temporário, identificando nas mesmas como se dava o processo de participação e comunicação. Participamos no total de quatorze (14) reuniões, no período de sete (7) meses, de janeiro a julho de 2001, bem como das atividades extra-reuniões dos participantes para o encaminhamento das decisões tomadas, como por exemplo, redação e entrega de documentos (cartas) ao Secretário Municipal de Saúde, organização no domicílio de curso de treinamento dos funcionários da unidade, conversas com a diretora da escola próxima para mudança do local das reuniões da Comissão, busca de patrocinadores na comunidade para impressão de material educativo, entre outras. Denominamos essas iniciativas de "desdobramentos" que foram relevantes para analisarmos como, cotidianamente, os sujeitos agiam e se comunicavam.

Freqüentamos as reuniões das Comissões não como membros observadores, mas também como participantes fazendo intervenções quando necessário e pertinente.

Anotamos as falas dos participantes, bem como o dinamismo das discussões, sempre com anuência prévia dos membros. Após o término de cada reunião discutíamos (pesquisadora e auxiliar de pesquisa) e revíamos todas as anotações e observações realizadas.

Destacamos que ao realizarmos as observações participantes tivemos um cuidado especial com o seu registro. Optamos pela anotação escrita em um diário de campo durante o transcorrer da própria reunião e não a gravação das mesmas. No nosso estudo realizamos basicamente dois (2) tipos de anotações. A primeira, anotações de campo de natureza descritiva, onde tentamos descrever os comportamentos, as ações, as atitudes, tal como eles se ofereciam à nossa observação, sempre buscando uma contextualização, pois envolviam significados, representavam valores, princípios, próprios dos sujeitos e do ambiente sócio- cultural ao quais estes pertenciam. Descrevemos também os diálogos dos sujeitos participantes onde de preferência tentávamos anotar as falas na íntegra. A segunda, anotações de campo de natureza reflexiva, onde tentamos registrar algumas reflexões sobre os comportamentos, atitudes, diálogos observados, bem como os processos de observação e comunicação. Realizamos estas anotações no próprio texto no qual estávamos registrando as observações, apenas as destacamos com a identificação de reflexões do observador (RO).

4.6 A construção da análise dos dados Para a análise interpretativa dos dados utilizamos a proposta metodológica de Minayo(17), onde percorremos as fases de pré-análise, exploração do material e análise final dos dados.

No primeiro momento do nosso estudo as duas Comissões foram analisadas isoladamente, dessa forma, procuramos estabelecer uma primeira aproximação com os significados relevantes, presentes nas falas e ações dos sujeitos participantes e, assim, fomos identificando unidades temáticas nas quatorze (14) observações analisadas.

A seguir, realizamos o confronto entre as duas Comissões realizamos uma análise conjunta, valorizando as convergências entre os grupos e as divergências contidas na totalidade dos grupos confrontados e analisados. Observamos que, tanto os pontos "convergentes" quanto os "divergentes" se completavam e se interpenetravam.

Na medida em que o trabalho foi sendo construído, chegamos a sete (7) sub- unidades que foram agrupadas em três (3) grandes unidades temáticas, a saber: a) participação, englobou as sub-unidades temáticas: visões dos participantes sobre a população (relação população e profissional de saúde) e visões dos participantes sobre a CLS (como os participantes se vêm e se sentem); b) comunicação, englobou as sub-unidades temáticas conteúdos discutidos (fala dos participantes), iniciativas dos participantes (ações dos sujeitos), autonomia e dependência e comunicações interna e externas e c) modelo assistencial, englobou as visões dos participantes sobre o atendimento da unidade e a organização interna do serviço de saúde (concepções de saúde e doença).

Finalmente, confrontando a fala, ações e observações dos sujeitos envolvidos chegamos a três (3) categorias empíricas, relativas às sínteses horizontais (aspectos de análise das duas Comissões acompanhadas em quatorze encontros) e sínteses verticais (aspectos de análise das três grandes unidades temáticas).

Estas categorias empíricas serão apresentas e discutidas a seguir.

5 Resultados e discussão contando a riqueza da vida de duas Comissões, mostrando suas múltiplas faces e suas lutas Na medida em que o trabalho foi sendo construído, buscando as relações dialéticas entre nossas duas categorias analíticas (interações solidárias e interações sistêmicas) e ascategorias empíricas, bem como confrontando as falas, ações e observações dos sujeitos envolvidos (usuários, profissionais de saúde e gerentes) chegamos à três grandes unidades temáticas com as suas respectivas categorias empíricas, a saber: Primeiro com relação à unidade temática participação chegamos às categorias empíricas "Saindo da toca: estamos lutando, mas não está fácil" e "A gente, através da Comissão, tentando participar". Com relação à unidade temática comunicação, a categoria empírica marcante foi: "Queremos ser ouvidos" e com relação à unidade temática modelo assistencial a categoria empírica forte foi: "Estamos desgastados", as quais passamos a analisar neste momento do nosso texto.

Destacamos que se trata apenas de uma divisão didática que teve a intenção de facilitar a leitura e compreensão, à medida que estas três unidades temáticas estão intrinsecamente interligadas.

5.1 A participação popular nas comissões: Saindo da toca A análise dos dados permitiu mostrar a participação popular como um fenômeno social e histórico marcado por muitas lutas desgastantes, tais como: luta para existir e sobreviver, luta por espaços, luta por reconhecimento e valorização, luta por aprendizagem e acesso à informação, entre outras, que, muitas vezes, faziam os sujeitos se sentirem indignados, desanimados e desacreditados.

Encontramos uma participação que está "Saindo da toca", ou seja, uma vivência participativa prematura, marcada por muitas "lutas" e "tentativas", onde os sujeitos participantes, enfaticamente diziam: Estamos lutando, mas não está fácil e A gente, através da Comissão, tentando participar.

Uma das primeiras lutas visualizadas em ambas as Comissões, em variado grau de intensidade, foi a luta para existir e sobreviver (Nós existimos. Existe gente participando aqui". No transcorrer dos sete (7) meses de participação nestas duas Comissões foi possível observarmos uma característica básica da participação popular: ela é tipicamente um fenômeno "cíclico", momentos de fluxo e refluxo, de posturas otimistas e pessimistas que refletem diretamente na continuidade ou desistência do processo participativo. Em determinadas situações e momentos vivenciavam intensas crises internas, que parecem estar relacionadas com questões do próprio grupo, como de identidade, autonomia, motivação e coesão grupal e com questões externas como a mudança de gestor municipal e gerência local, onde práticas burocráticas e autoritárias ainda se fazem presentes.

Outra luta que percebemos intensamente foi a "luta por espaços e reconhecimento"que pode ser visualizada e analisada em diferentes dimensões e manifestações, desde as dimensões mais concretas/palpáveis, como por exemplo, luta por um espaço físico mais adequado que possibilitasse a reunião de um grupo maior de pessoas até dimensões mais simbólicas/abstratas, como por exemplo lutas por reconhecimento, respeito, interações mais solidárias, retorno das comunicações com as autoridades públicas, entre outras.

A participação nas duas CLS mostrou-nos que o estabelecimento de interações dialéticas, solidárias e democráticas é custosa e sempre uma conquista, em função da cultura predominantemente centrada em interações desiguais autoritárias, burocráticas e paternalistas. Tanto que observamos as Comissões como um "espaço democrático" que tentava se impor sobre um "espaço autoritário e burocrático". Reações à burocratização e ao autoritarismo e críticas a posturas anti-democráticas se faziam sempre presentes e necessárias.

Neste sentido, a Comissão emerge como um "espaço de aprendizagens" (Não o peixe não, ensina as pessoas a pescarem)permanente, onde uma demanda necessária expressa entre os sujeitos participantes foi a educação popular para o exercício consciente da cidadania, a capacitação/formação política para desenvolver habilidades e formar cidadãos capazes de lutar por seus direitos e exercer um papel político.

Observamos que de forma central os sujeitos participantes das Comissões expressavam seus papéis relacionando-os à propostas mais "reivindicatórias" quanto à bens e serviços de saúde inexistentes e insuficientes, principalmente com relação ao acesso a consultas médicas e medicamentos. E de forma periférica e minoritária expressavam alguns papéis mais "propositivos", com um posicionamento mais global, caminhando para uma atuação política mais abrangente e uma sensibilização sobre a importância de assumir esta função pública.

5.2 A comunicação entre os sujeitos: queremos ser ouvidos A comunicação se fazia presente e necessária em várias dimensões e contextos: nas interações internas entre os sujeitos participantes da Comissão, nas interações externas estabelecidas pela Comissão, como com as autoridades públicas, nas interações com a gerência da unidade de saúde, nas interações dos profissionais de saúde com os usuários do serviço de saúde, entre outros, evidenciando "espaços de comunicação".

Nos momentos de participação estes sujeitos tinham como referência comum anunciada e buscada o diálogo solidário, o entendimento e a ação comunicativa, onde as peças do quebra-cabeça se encaixavam. Entretanto, observamos que, muitas vezes, esta interação comunicativa e solidária, altamente desejável, tornava-se literalmente uma "conversa de surdos e cegos", onde em meio a muitas interações autoritárias e violentas e posturas agressivas, as peças do quebra- cabeça não se encaixavam de forma alguma, cada sujeito ficava isolado e preso em seus interesses específicos e não se abria para ver e escutar (acolher) o outro, estabelecendo muito mais um "monólogo" do que um "diálogo", onde o outro não era visto nem escutado. Conseqüentemente uma fala ecoante que se repetia com relativa freqüência era a de que Queremos ser ouvidos.

Constatamos em vários momentos de nossa participação nas Comissões e nos serviços de saúde a presença, relativamente freqüente, de uma "linguagem codificada", que utilizava-se de "códigos" . Neste sentido, a linguagem codificada, dominada e controlada pelos técnicos e especialistas, com suas competências técnicas e domínio de determinados assuntos, pode representar uma pretensão de poder a medida que se transformam em códigos secretos não acessíveis para todos, dificultando o estabelecimento de uma comunicação democrática entre todos os participantes na interação. Assim, o uso da linguagem pode se tornar um fator de distanciamento e exclusão que dificulta o processo comunicacional, uma barreira lingüística inicial que limita a compreensão do que o outro está falando.

Desta forma, as decisões práticas que afetam a coletividade são transformadas em problemas técnicos a serem resolvidos por uma minoria de experts, a nova elite dos tecnocratas, que têm um Know-how, caracterizando um processo de inibição/obstrução da comunicação do sujeito consigo mesmo e com o mundo, evidenciando uma forma de dominação da racionalidade técnica(16).

Nas nossas observações as Comissões oscilaram, de forma visível, entre um "espaço de dependência" e um "espaço de autonomia". Nos momentos de dependência víamos um grupo de sujeitos que ainda ficava muito na reclamação, no "choro", esperando que "alguém", rapidamente resolvesse os seus problemas. Assim, queriam uma solução externa que viria de um expertou de autoridade com poder para tal, desejavam, pois, de certaforma, um paternalismo. Nas falas dos sujeitos era muito comum ouvirmos a palavra "ele", usado no impessoal, Temos que conversar com ele" e Ele tem que dar uma solução aos problemas e assim o outro sujeito na interação, de tão distante, poderoso e inacessível, não era sequer nomeado. Quando a comissão conseguia ser mais autônoma podíamos visualiza-la como um "espaço autônomo", onde era mais possível o estabelecimento de interações mais solidárias, dialógicas e flexíveis entre os sujeitos, ou seja, um diálogo, numa relação mais horizontal, de troca entre os envolvidos, baseado em uma ação comunicativa que garantia a transparência das pretensões de validade.

Centralmente observamos que na participação nas Comissões Locais de Saúde prevalecia um "trabalho pesado e estressante", marcado pela dureza, tensão, estresse e dificuldade, principalmente quando vários fatores, de difícil controle, se impunham fortemente, "colonizando" o mundo da vida dos sujeitos e dificultando as comunicações e a realização das iniciativas propostas, em polaridade a um "trabalho prazeroso", mobilizado por sonhos, envolvimento, compromisso e criatividade, que se restringiam a momentos onde após a "reunião formal" surgiam conversas onde havia espaço, não registrado em ata, para sorrir, brincar, comer, dialogar, comunicar e negociar.

5.3 O modelo assistencial: "Estamos desgastados" Acompanhando as atividades das duas Comissões, ouvindo comentários e ações dos profissionais de saúde, dos usuários e da gerência sobre os acontecimentos na unidade de saúde e no bairro, buscando entender-lhe os sentimentos fomos conhecendo pessoas insatisfeitas e muito desgastadas com os serviços de saúde onde estavam presentes práticas rotinizadas e mercantilizadas evidenciando profundas dificuldades, marcadas também por interações autoritárias e pela violência, onde freqüentemente vítimas se tornavam culpadas, dificuldades estas que clamavam por cuidados e por interações mais flexíveis, solidárias, humanas e acolhedoras.

Apesar dos esforços empreendidos, o dia-a-dia do serviço de saúde das duas unidades, narrado pelas Comissões, estava, de modo geral, marcado por atritos, mal-entendimentos, conflitos e insatisfações. O sofrimento acompanhado na rotina dos atendimentos perturbava tanto os profissionais como os usuários, tendendo a despertar sentimentos de indignação e solidariedade. O modelo de atendimento, pouco humano e acolhedor foi temática que permeou quase todas as discussões das Comissões.

Clamor este, presente na voz dos sujeitos que diziam: Do jeito que está, não está bom e Estamos desgastados,sujeitos cansados e que, muitas vezes, mantinham os ouvidos insensíveis ao outro, evidenciando um "fosso cultural" entre os profissionais de saúde de um lado e a população do outro. Esta cisão entre os centros de saúde e a população pode ser representada por portas fechadas por filas, funcionários carentes de criar, ouvidos insensíveis pelo preconceito e medo(18). Os conflitos gerados pela insuficiência dos serviços de saúde têm gerado um ambiente onde se alastram distanciamentos e preconceitos, que aprofundam as "inadequações" das falas dos usuários aos ouvidos dos profissionais. Todas estas dificuldades, muitas vezes, tornavam as interações entre os profissionais de saúde e a população autoritárias, onde encontrávamos, novamente uma "conversa de surdos e cegos".

Observamos que havia também um entrave central que crescia cada vez mais, dificultando também as iniciativas de aproximação entre as unidades de saúde e a comunidade, era a violência. Casos de homicídios e assaltos, em geral relacionados ao uso e tráfico de drogas, se faziam cada vez mais presentes, gerando sentimentos de medo ou distanciamento.

Diante de todas estas interações autoritárias e pouco dialógicas um clamor que surgia era "Precisamos quebrar o gelo, descer até as pessoas", o que representava um pedido por interações mais humanas, flexíveis e acolhedoras entre os sujeitos, ou seja, o estabelecimento de um diálogo mais democrático, informal e flexível.

6 Conclusão Entendemos que a temática participação popular em saúde é complexa, dinâmica e envolve várias dimensões. Entretanto, na prática cotidiana encontramos ainda uma representação e sensibilidade desigual para o problema, em um claro descompasso entre a teoria e a prática, caracterizando uma participação que reflete ainda um projeto político incipiente por parte do poder administrativo local, o que congela e impede, sensivelmente, o diálogo entre os sujeitos.

Portanto, acreditamos que para quebrar este cenário desfavorável à participação popular três considerações são importantes, a saber: primeiro, que a participação popular na área da saúde seja realmente incorporada como um projeto político forte pelos gestores e gerentes municipais e não apenas como uma 'pseudo-promessa' em época de campanha eleitoral ou como uma ideologia partidária-política. Segundo, não restringir a participação popular à organizações formais, talvez, a participação em espaços informais possa estimular iniciativas mais informais, autônomas, flexíveis, prazerosas e criativas. Terceiro, que a educação em geral e a educação em saúde e o conhecimento são eixos centrais para quebrarmos preconceitos e imagens estereotipadas de que a população é acomodada, apática, acrítica e aparticipante, e para mudarmos paradigmas construindo uma nova noção de existir: a dos cuidados com o mundo, a do bem comum e da justiça social.

Concluímos que a participação popular tem potencial para atuar na transformação das práticas de saúde e como tal deve ser incorporada pelos gestores municipais, como um dispositivo na formulação e implantação das políticas de saúde.


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