Violência doméstica e institucional em serviços de saúde: experiências de
mulheres
PESQUISA
Violência doméstica e institucional em serviços de saúde: experiências de
mulheres
Domestic and institutional violence in health services: women's experiences
Violencia doméstica e institucional en servicios de salud: experiencias de
mujeres
Normélia Maria Freire DinizI; Regina Lúcia Mendonça LopesII; Laura Susana Duque
ArrazolaIII; Solange Maria dos Anjos GesteiraIV; Sandra Lúcia Belo AlvesV
IEnfermeira. Professora Adjunta do DECOM. Doutora em Enfermagem - UNIFESP.
Pesquisadora do GEM. Coordenadora do Projeto
IIEnfermeira. Professora Titular do DECOM. Doutora em Enfermagem - UFRJ.
Pesquisadora do CNPq
IIIEnfermeira. Professora Assistente do Departamento de Ciências Domésticas da
Universidade Federal Rural de Pernambuco. Doutoranda de Serviço Social da UFPE
IVEnfermeira. Doutoranda de Enfermagem da UNIFESP. Profª Adjunta do DECOM.
Pesquisadora do GEM
VEnfermeira Obstétrica. Mestre em Enfermagem - UFBA- Bolsista do CNPq pelo
Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde
E-maildo autor:normelia@lognet.com.br
1 Introdução
A violência não é objeto específico da área de saúde, mas está a ela
intrinsecamente ligado. O papel desta área tem sido não apenas o de cuidar das
seqüelas deixadas pelos conflitos entre os indivíduos, mas também de preveni-
los, promovendo a saúde em seu conceito mais amplo, o que envolve o bem-estar
individual e o coletivo.
Desta maneira,
a violência afeta a saúde porque ela representa um risco maior para a
realização do processo vital humano: ameaça a vida, altera a saúde,
produz enfermidades e provoca a morte como realidade ou como
possibilidade próxima(1:3).
Tal afirmativa demonstra o quão é importante incluir esta questão nos diversos
espaços do setor da saúde.
Isoladamente, os modelos epidemiológicos não resolvem todas as questões que
envolvem a violência, pois não são considerados os casos em que a violência não
deixa marcas corporais visíveis, e que dependem, para serem detectados, do bom
senso e da sensibilidade, fato que, tradicionalmente, não acontece na
assistência baseada em modelos de saúde unicamente voltados para a doença e
pautados na racionalidade assistencial positivista.
Nem mesmo a psicologia, isoladamente, pode dar conta do fenômeno da violência.
Assim, apontamos para a dificuldade que esta área tem de se aproximar
teoricamente do fenômeno da violência, ficando patente a complexidade do tema,
o que determina a fragilidade de uma análise isolada por qualquer que seja a
ciência(2).
Contudo, apesar da violência, de um modo geral, já ter sido muito discutida, a
verdade é que até bem pouco tempo a que incidia contra a mulher, nas formas de
violência conjugal e doméstica, foi menos discutida e valorizada do que aquela
ocorrida no espaço público, a chamada violência por causas externas, que inclui
mortes por acidentes, eventos violentos, homicídios, suicídio, etc.
De fato, a violência contra a mulher somente começou a ser discutida nos idos
dos anos 70 e 80, a partir das feministas que saíram às ruas clamando contra a
impunidade dos agressores. O movimento feminista não só coloca o problema do
reconhecimento dos direitos das mulheres em tal ou qual contexto profissional
ou doméstico, como é portador de um devir feminino, que diz respeito a todas as
engrenagens da sociedade. Em resumo, tal movimento coloca em xeque o mundo
dominado pelo masculino, onde justamente não há espaço para o surgimento de um
devir feminino. Em outras palavras, não há simetria entre uma sociedade
masculina, masculinizada e um devir feminino(3).
Entre os elementos que constituem a "rede" de violência e que orientaram este
trabalho, destacaremos primeiramente a violência estrutural e, posteriormente,
a violência cultural, com ênfase na violência de gênero. No tipo estrutural,
podemos considerar duas modalidades: a violência por omissão e a violência por
comissão, sendo a primeira conceituada como:
a negação total ou parcial de ações médico-sanitárias, bem como a
debilidade institucional observada através da desnormatização, do
descaso, da negligência e até mesmo, num grau máximo, da omissão, da
inexistência de um serviço público de saúde(4:35).
Já a violência por comissão,
Compreende a violência técnica inerente à teoria e à prática dentro
dos serviços de saúde. Trata-se da violência embutida nas práticas de
saúde e nos procedimentos indesejáveis e/ou desnecessários e a
conseqüente repercussão sobre a saúde e a vida da população usuária
(4:35).
Ao mesmo tempo, a mulher é vítima da violência institucional, tanto por omissão
quanto por comissão, e da violência de gênero, que ela traz do espaço doméstico
para as instituições de saúde. Entra-se em um círculo vicioso. A mulher que
chega aos serviços de saúde traz em si marcas, ora "invisíveis" ora "visíveis",
da violência de que é vítima. No entanto, mesmo "visíveis", essas marcas não
são contempladas pelos modelos de atendimento utilizados pelos profissionais de
saúde, já que estes baseiam suas atitudes em um padrão preestabelecido norteado
pelo saber e pelo poder.
Ao analisarmos o sistema de saúde observamos que:
A relação que se estabelece é aquela em que o técnico sabe o que faz,
determina o que fazer. O poder exercido pela imposição caracteriza-se
como um espaço de violência não física, mas uma violência que
despreza a subjetividade daqueles que procuram esse serviço. É uma
violência silenciosa, que traduz a cumplicidade entre saber e poder
(5:148).
Portanto, a comunicação, só predominará se a mulher puder expressar suas
necessidades através da subjetividade. Quer dizer, a relação entre o
profissional de saúde e a paciente é. Para romper com essa situação de
desigualdade, o caminho do diálogo é o único possível e capaz de conduzir à
ética, à liberdade e à expressão da cidadania.
2 Metodologia
Estudo de natureza quantitativa, desenvolvido em três maternidades públicas das
capitais Recife, Salvador e Aracaju, tendo como objetivo identificar as
manifestações da violência doméstica e institucional na mulher assistida em
sub-programas do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM).
Estes sub-programas foram aqui considerados como assistência ginecológica, em
planejamento familiar, no período gravídico-puerperal e em abortamento. O
projeto foi apreciado e aprovado pelas instituições, bem como, dos
participantes se obteve o consentimento livre e esclarecido(6).
Em Recife, os dados foram coletados com 138 mulheres, em Aracaju com 398
mulheres e em Salvador com 497 mulheres, perfazendo um total de 1033.
Utilizamos, como instrumento de coleta de dados um formulário elaborado com
quarenta questões abertas e fechadas. A amostra foi composta por mulheres que
procuravam esses serviços na busca por um atendimento nos sub-programas do
PAISM já referidos.
O tratamento e a análise dos dados foi realizado em Salvador, através do
programa EPI-INFO 6.0. Sendo os dados organizados em percentuais, que foram
comparados entre as capitais. Para a fundamentação da parte teórica, nos
baseamos em autores que trabalham com violência e gênero.
3 Apresentação e discussão dos resultados
Em relação ao perfil das mulheres que compuseram a amostra, a média de idade
foi de 25 anos, caracterizando uma população jovem. No que se refere à cor,
percebe-se que é em Salvador que a população negra é a maioria (64%), se
comparada com Aracaju (21%) e Recife (14%). Já a população mestiça predomina em
Salvador (52%) e Aracaju (68%). Em Recife, a população branca (42%) constitui a
maior parte.
No concernente à religião, temos uma maioria de católicas, sendo o maior índice
o de Aracaju (70%), seguido por Salvador (55%) e Recife (50%). Nas três
capitais, o nível médio de escolaridade corresponde ao primeiro grau. Em
Salvador, 59% das mulheres possuem apenas o primeiro grau incompleto, Recife
53% e Aracaju 47%. O maior índice de analfabetas fica com a cidade de Aracaju
(7%).
Verificamos, também, que boa parte das mulheres entrevistadas mora com o
companheiro/marido ou com o companheiro/marido e filhos. Somando-se essas duas
categorias, temos: 70% em Salvador, 64% em Recife e 73% em Aracaju. Em
Salvador, a maioria das mulheres entrevistadas mora com o marido/companheiro e
filhos (44%), o mesmo ocorrendo em Recife (42%) e em Aracaju (54%).
Com relação à variável trabalho, é interessante perceber que a maioria das
mulheres não trabalha fora de casa (66% em Salvador e Recife, contra 71% em
Aracaju).
Observando a variável ocupação, verificamos que, das mulheres que trabalham
fora, a maioria da amostra estudada é composta por domésticas (43% em Salvador,
30% em Recife, 34% em Aracaju e 38% no geral).
As mulheres que compõem o estudo são, na sua maioria, economicamente
dependentes, sendo que 64% da amostra de Salvador, 64% em Recife e 67% em
Aracaju o são totalmente. Na busca de identificar quem as ajudava
financeiramente, verificamos que um grande percentual é apoiado pelo marido
(79% em Aracaju, 67% em Salvador e 57% em Recife).
No que diz respeito ao conceito que as entrevistadas tinham da violência
percebemos que a maioria define a violência enquanto agressão física, esta
exercida pelo marido. Em Salvador e em Aracaju esses índices se equivalem (37%
e 35%, respectivamente), enquanto que em Recife o percentual é bem superior
(50%). Tomemos como exemplo estes depoimentos:
É o homem escravizar a mulher, ser dona de casa, sem carinho, sem
lazer e ainda espancada(M160). É o homem querer que a mulher se
acabe, ser escrava, fazer tudo, ser responsável e servir sexualmente
quando ele quiser(M80). É quando o marido quebra a casa da gente,
quer fazer sexo quando não pode; meu marido só quer me usar dormindo
(M700).
Procuramos ainda investigar os possíveis motivos que as levariam a suportar a
violência. O que mais se destacou foi o fato dessas mulheres serem dependentes
financeiramente (22% no geral, 24% em Salvador, 30% em Recife e 16% em
Aracaju).
O índice da violência conjugal vivenciada pelas mulheres entrevistadas
correspondeu em Salvador a 73%, em Recife a 60% e em Aracaju a 69%, sendo que
na primeira capital, 73% das mulheres sofreram esta violência por parte de um
companheiro e 5% com três. Os dados da pesquisa mostram que essas mulheres
sofreram violência na infância e na adolescência, sendo o índice de 24% em
Salvador, 36% em Recife e 32% em Aracaju. Dados de centros de atendimento a
vítimas de estupro, em 7 países, mostram que entre 36 e 58% das vítimas de
estupro ou de tentativa de estupro têm menos de 16 anos; entre 18 e 32% têm
menos de 11 anos; e o agressor, em 60 e 78% dos casos é um conhecido. Quanto
aos tipos de violência, foram mencionados bolinagem, tentativa de estupro e
estupro. A menor idade média mencionada foi de 14 anos.
Em relação à violência sexual sofrida por parte dos maridos ou dos
companheiros, 47% das mulheres (índice geral), 48% em Salvador, 69% em Recife e
41% em Aracaju, disseram que eram forçadas a ter relações sexuais.
Com relação à violência emocional, os maiores índices estão representados pela
proibição, por parte do companheiro, da mulher fazer amizades (18% no geral),
pelo xingamento a ela (18% no geral) ou a sua família (14% no geral), de
trabalhar (14% no geral), pela acusação por parte do marido ou companheiro de
ter amantes (11% no geral), pela obrigação de ouvir as aventuras amorosas deles
(11% no geral), e pela humilhação pública (10% no geral), entre outros.
Outro dado importante, diz respeito à violência por atos destrutivos, nos quais
24% das mulheres entrevistadas (índice geral) disseram que os seus companheiros
quebram os móveis para atemorizá-las; destroem suas roupas (19%); reviram a
casa (18%) e destroem objetos pessoais (8%).
Procuramos também conhecer de que modo às mulheres eram agredidas fisicamente
pelos companheiros, sendo a resposta mais freqüente a agressão através de
empurrão (39% no geral), sendo os seguintes mais citados: agressão física por
tapa/murro (29%) e chute (15%).
Mas nenhuma violência pode-se dizer que é mais grave que aquela praticada
durante a gravidez, e nem por isso ocorre com menor freqüência. Em Aracaju, 43%
das mulheres foram agredidas fisicamente durante tal fase. Em Recife e
Salvador, os índices se equivalem a 35% e 34%, respectivamente. A violência, na
forma de estupro, pode levar à gravidez: os dados nos mostram que 17% das
mulheres que sofreram estupro engravidaram. Nas ocorrências durante a infância
e a adolescência, o agressor geralmente foi um elemento da família, sendo o pai
biológico responsável por mais de metade dos casos. Segue-se a agressão pelo
padrasto, tio, avô e primo. Percebemos, também, que as mulheres que foram
violentadas referiram sentir vergonha, humilhação e nojo do próprio corpo.
Percebemos que a maioria das mulheres também não procura nenhuma instituição
como forma de apoio (73%), sendo tal fato confirmado pelo índice de mulheres
que procurou ajuda (25% em Salvador, 29% em Recife e 31% em Aracaju). A
instituição mais procurada nas três capitais foi a delegacia comum (41%), onde
os procedimentos mais comuns foram a queixa e o exame de corpo delito (24% no
geral). Apenas em Salvador o registro de queixa levou à prisão (14%).
Toda essa violência que sofre a mulher tem conseqüências funestas para a sua
saúde. A cidade onde esses problemas ocorrem com maior freqüência é a de Recife
(33%), seguido de Aracaju (31%) e Salvador (22%). Os problemas mais freqüentes
são as dores de cabeça constantes (que correspondem a 17% na amostra geral). A
capital onde esse problema é mais comum é Salvador (19%), seguido de Recife e
Aracaju onde a ocorrência é de 16%. A depressão é o segundo sintoma mais
apresentado, 15% no total das capitais, apresentando também Salvador a maior
freqüência (17%), contra 15% em Recife e 13% em Aracaju. A insônia representa
14% dos problemas de saúde citados. Em Recife, a ocorrência é a maior (16%),
seguida por Salvador (14%) e Aracaju (13%). A frigidez ocorre em 9% dos casos,
sendo 10% em Aracaju, 8% em Salvador e 6% no Recife.
O aborto, como decorrência da violência, também não pode deixar de ser
considerado. Os abortos espontâneos podem decorrer de violência durante a
gravidez e 23% das mulheres que abortaram espontaneamente, associaram-no à
violência vivenciada. Entre as capitais, a maior incidência ficou com Salvador,
depois Recife e por último Aracaju. A principal causa dos abortos espontâneos
ficou com a agressão física (39%), seguida de ameaça de separação (25% das
mulheres em Salvador). Com relação aos abortos voluntários, 16% das mulheres
abortaram por conta da agressão sofrida, mas predominaram, em nosso estudo,
aquelas que não quiseram o aborto. Em 31% dos casos, a causa foi o medo. Em
18%, amor pelo bebê, em 20%, falta de apoio da família para levar adiante o
aborto, e em 33% dos casos o aborto foi mal sucedido.
Contudo, as violências doméstica e conjugal não são as únicas a acontecer na
vida das mulheres. Em nosso estudo, 58% das participantes não conseguiram vaga
nas instituições (53% em Salvador, 62% em Recife e 64% em Aracaju), tendo que
passar por duas ou mais instituições antes de serem atendidas (24% em Salvador,
38% no Recife e 19% em Aracaju). O motivo mais comum para não serem atendidas
(39% dos casos no geral) foi a falta de vagas (em Salvador, 44% dos casos, em
Recife, 61% e em Aracaju, 17%). Outros motivos foram à falta de profissionais
(29% em geral, 47% em Aracaju, 30% em Recife e 21% em Salvador) e a falta de
material (18% dos casos, Aracaju ficando com o maior índice, de 34%), o que
constitui a violência dita por omissão, o que as levou a uma peregrinação em
busca de leitos.
O processo de violência, como já o dissemos, não ocorre apenas por omissão, mas
também, por comissão. No caso do nosso estudo, vale salientar que as mulheres,
antes de serem encaminhadas a uma outra instituição, não foram informadas
quanto aos diagnósticos (45%) e mesmo quando foram encaminhadas, isso foi
feito, na maioria das vezes, apenas verbalmente, sem um documento escrito,
ficando patente a não organização no sistema de referência, o que caracteriza a
violência por comissão.
O problema da relação paciente/profissional de saúde torna-se um encontro
empobrecido, que não constitui um diálogo. Além disso, há que se considerar que
não está em jogo apenas a adequação comunicacional, mas a efetividade da
própria consulta ou a orientação com perdas, não apenas na relação humana, mas
também na técnica.
4 Considerações finais
Consideramos que os resultados aqui apresentados deixam claro que as marcas das
diversas formas de violência incididas sobre as mulheres estão, de tal forma,
arraigadas a seus corpos e subjetividade, embora passem desapercebidas pelos
profissionais de saúde, cujo olhar não consegue enxergar além dos sinais e
sintomas clínicos que se acham inegavelmente presentes, situação determinada
pela formação profissional, que leva a limitação do entendimento sobre saúde.
Nem as próprias mulheres estão conscientes de que o espaço de atendimento à
saúde deve ser igualmente um espaço de criação de diálogo, que rompa com os
limites impostos na investigação de aspectos puramente ligados às doenças.
Assim, o silêncio que se instala é o mesmo no espaço privado e no da saúde, o
que naturaliza a situação da violência vivida pela mulher, tornando tal
vivência solitária.
Não se pode mais esconder que a violência existe e tem que ser notificada e
tratada como uma questão de saúde, embora o problema seja a sua não valorização
pelos profissionais envolvidos, que não estimulam o compartilhamento do
problema.
Defendemos a capacitação da equipe de saúde e de profissionais de áreas afins,
visto a abrangência e complexidade do tema violência. Tal proposta reduziria a
reprodução de relações desiguais e violentas, como as apresentadas nos lócus
desta pesquisa.