O desafio teórico-prático da gestão dos serviços de saúde
AUTORES CONVIDADOS
O desafio teórico-prático da gestão dos serviços de saúde*
Health services management challenges in theory and practice
El desafío teórico práctico de la gestión de los servicios de salud
Clarice Aparecida FerrazI; Elizabeth Laus Ribas GomesI; Silvana Martins
MishimaII
IEnfermeira. Professor Associado do Departamento de Enfermagem Geral e
Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP
IIEnfermeiro. Professor Associado do Departamento de Enfermagem Materno-
Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP
Correspondência
1 Dos Saberes Profissionais : o grau de indeterminação e sua produção local
A importância da prática de gestão, bem como a participação dos enfermeiros e o
espaço que ocupam na dinâmica do processo organizacional das instituições de
saúde contemporâneas, remetem-nos a pensar no caráter complexo e polêmico da
gestão, que por conseguinte constitui-se em desafio teórico-prático para os
gestores do setor saúde, especialmente os enfermeiros, que têm sobre si
responsabilidades de gerir unidades e serviços. Neste sentido, os saberes se
constituem em importante recurso de ação e se traduzem num instrumento
legitimador do trabalho de diferentes profissionais, da mesma forma que se
revertem em fontes de autonomia, autoridade e poder dos sujeitos no contexto de
suas práticas. Os níveis hierárquicos criados no seio das organizações geram
diferentes possibilidades de concepção e execução do trabalho de gerência, à
medida das diversas configurações de padrões, processos e elementos a que se
referem as posições funcionais e estruturais dos gestores. Assim, no âmbito das
distintas posições hierárquicas há também distintas formas de se conceber e
executar as ações gerenciais, as quais são produzidas e reproduzidas de acordo
com a natureza dos saberes subjacentes. A explicitação da natureza de tais
saberes é importante na medida das diferentes valorizações sociais a que
correspondem, valorizações estas resultantes da apreensão e monopólio de um
dado conhecimento por parte dos sujeitos envolvidos no processo de trabalho.
Então, é em torno da problematização dos saberes que esta análise teórica se
apresenta, no sentido da caracterização dos saberes indeterminados e dos
saberes-fazer.
O saber-fazer é um saber que se operacionaliza em situações padronizadas e
regulamentadas e está associado ao trabalho que obedece uma rotina prefixada.
Não está subjacente a este saber a aplicação de um exercício intelectual
interpretativo e sua aquisição se dá na prática pela repetição de procedimentos
codificados. Esta definição, entretanto, não dá conta de objetivar como este
saber é construído e sustentado socialmente e, neste sentido, algumas análises
são esclarecedoras em dois níveis. Num primeiro nível, apreende-se que o saber-
fazer está incorporado por elementos do saber científico, o que torna possível
fazer uma distinção entre o saber-fazer empírico e o saber-fazer analítico. O
primeiro é um saber que se apóia na interação entre o trabalhador e seus
instrumentos e objeto de trabalho, mas não "integra a percepção cognitiva e
formalizada do processo subjacente aos atos de trabalho". Isto é, o trabalhador
não apreende cognitivamente o processo de trabalho como um todo e seu saber
acaba por se restringir ao campo da rotinização. Já o saber-fazer analítico
espelha uma componente interpretativa, visto que a relação entre o sujeito, o
objeto e os meios de trabalho é precedida de uma compreensão do processo
subjacente, não sendo portanto esta relação exclusivamente técnica ou prática.
Então, o caráter diferenciador entre o saber-fazer empírico e o saber-fazer
analítico repousa na dimensão interpretativa que o trabalhador tem de seus atos
de trabalho(1).
Num segundo nível, a autora considera que o saber-fazer só se restringe ao
âmbito do fazer, quando uma atividade está circunscrita exclusivamente à
repetição dos mesmos gestos e procedimentos, portanto situado num plano
distinto do saber científico. A partir de uma situação concreta, se estará no
domínio exclusivo do fazer quando não houver possibilidade de se retirar do
trabalho as "regras gerais" que o determinam, de forma a possibilitar a
aplicação de uma mesma solução a partir de uma experiência similar vivenciada
anteriormente(2).
Outra dimensão sobre a análise dos saberes é evidenciada pela natureza dos
saberes indeterminados, destacando-se a idéia de que este é um saber que
carrega uma forte carga interpretativa e exige amplo componente intelectual(2).
A diferenciação entre o saber indeterminado e as "formas de saber cuja
aplicação é padronizável em regras e procedimentos (...) foi originariamente
sistematizada por Jamours & Peloille com a noção de indeterminação/
tecnicalidade, tendo sido sucessivamente retomada por outros autores"(4-7).
Indeterminaçãosão os meios que escapam a normas e são atribuídos às
virtualidades dos praticantes ou produtores. Tecnicalidade é a dimensão que no
processo de produção é representada por meios que podem ser dominados e
comunicados sob a forma de normas. A razão "indeterminação/tecnicalidade
exprime a possibilidade de transmitir, por meio de aprendizagem, o domínio de
instrumentos materiais e intelectuais usados para realizar ou conseguir
determinados resultados"(3). Assim, quanto mais elevada for a razão
indeterminação/tecnicalidade, mais a natureza do saber adquire um caráter
indeterminado.
Os saberes indeterminados escapam a qualquer tipo de saber "formal" e situam-se
no âmbito de um trabalho cuja operacionalização envolve procedimentos complexos
e imprevisíveis. "Constitui uma forma de saber intrinsecamente associada às
competências e capacidades individuais do profissional, o que lhe confere o
caráter de saber não transferível, não deixando, porém, de incorporar na sua
matriz o saber de natureza científica, enquanto fundamento do exercício de
interpretação que o configura(2)". O saber indeterminado é utilizado em
situações não previstas ou padronizadas e é reconhecido como legítimo na medida
em que se conforma e se estrutura na relação entre a natureza técnico-
científica e a natureza indeterminada do conhecimento.
Isto posto, fica salientado o recorte que diferencia os saberes-fazer dos
saberes indeterminados. Entretanto, para avançar um pouco mais nesta discussão
é importante considerar a perspectiva que outro autor introduz em relação aos
saberes-fazer(8), em que atribui relevância às modificações no mundo do
trabalho, em razão do significativo desenvolvimento tecnológico dos tempos
recentes, defende a tese de que o saber-fazer está sendo objeto de
recomposição. Em outras palavras, a dimensão da gestualidade operativa,
inerente ao saber-fazer, tende a se deslocar para o domínio interpretativo, de
forma que a ação é precedida por uma conceitualização executiva. Neste
movimento ampliam-se as possibilidades de recomposição do saber-fazer o qual
incorpora saberes teóricos necessários para darem respostas às novas exigências
do processo de trabalho.
Salienta-se que esta recomposição, entretanto, não deslocou os novos saberes
teóricos "para o domínio dos saberes científicos de natureza puramente
cognitiva: a sua natureza mantém-se de ordem operatória, porém adquirem maior
complexidade na medida em que implicam o equacionamento de conhecimentos
técnicos de natureza teórica, com saberes práticos gerados pela experiência
(2)".
Então os saberes-fazer e os saberes indeterminados se distinguem pela natureza
em que se inscrevem. O primeiro está sempre associado a procedimentos
padronizados e rotineiros mas nem por isso é exclusivamente mecânico ou
destituído de um saber científico, que neste caso se restringiria aos limites
do simples fazer. Os indeterminados, pela natureza interpretativa e intelectual
que comportam, inscrevem-se em situações imprevisíveis e significativamente
complexas, não sendo transmitidos ou apreendidos nas situações formais em que
se desenvolve o processo ensino-aprendizagem.
Fazendo uma analogia entre os contributos teóricos apresentados e a prática de
enfermagem, não seria equivocado afirmar que o saber-fazer empírico se
identifica mais no campo do "prestar cuidados" em função da predominância das
gestualidades operativassubjacentes aos procedimentos rotinizados e
padronizados que envolvem as técnicas de enfermagem: dar injeção, fazer higiene
corporal, verificar sinais vitais, etc. O saber-fazer analítico inscreve-se, da
mesma forma, no âmbito dos cuidados e se coloca à vista em razão dos saberes
teóricos incorporados aos atos de trabalho. É o caso, por exemplo, do processo
de enfermagem cujo desenvolvimento pressupõe uma conceitualização executiva por
parte de quem o desenvolve. Entretanto, salienta-se que o processo de
enfermagem figura como um "instrumento de operacionalização" de novos saberes,
introduzido progressivamente na formação dos enfermeiros "enquanto estratégia
central para a sua revalorização"(2).
Porém, não obstante o processo de enfermagem constituir uma modalidade formal
de reelaboração da natureza dos saberes dos enfermeiros, acrescenta ainda a
mesma autora que "as suas formas de concretização e consolidação no plano das
práticas profissionais, bem como o seu alcance estratégico para a revalorização
profissional deste grupo, não deixa de ser mediatizado pelas possibilidades que
se inscrevem na especificidade dos diferentes contextos de trabalho"(2).
Há pouco se fez referência que a natureza dos saberes imprime diferentes
valorizações sociais aos diversos atos de trabalho. Entretanto, tal valorização
não se dá somente em função da natureza dos saberes mas também pela sua
especialização, no sentido de garantir estrategicamente um caráter
intransferível e, ainda, pelas possibilidades de centralizarem-se em áreas de
incerteza/indeterminação nos contextos de trabalho. O conjunto destas duas
estratégias de valorização dos saberes foi entendido como sendo a sua
insubstituibilidade, ou seja, através da construção de recursos de valorização
social dos saberes, criam-se nos contextos de trabalho desiguais possibilidades
de acionamento de tais saberes(9).
Por sua vez, o conceito de área de incerteza/indeterminação(10) foi
desenvolvido sendo de grande contribuição uma vez que diz respeito à
identificação de situações que geram possibilidades aos enfermeiros de
mobilizarem recursos para o acionamento de saberes administrativos, em especial
os indeterminados. Assim, torna-se relevante introduzir na discussão a
perspectiva da Teoria da Ação Estratégica desenvolvida por Crozier(10).
Esse autor entende que toda ação envolve uma estratégia de caráter contingente.
Além da estratégia, são ainda determinantes na formulação de sua teoria dois
outros elementos: o poder e as áreas de incerteza/indeterminação. O conceito de
poder se traduz nas possibilidades que os sujeitos encontram para desenvolverem
uma relação de troca e negociação em suas ações. Neste sentido, o conceito de
podere estratégia se associam enquanto capacidades do sujeito para dominar uma
situação e imprimir uma solução concreta diante de um problema. Quanto ao
conceito deincerteza/indeterminação, o autor refere que os problemas materiais
sempre comportam um aspecto considerável de incertezas, o que significa dizer
de indeterminação, no que diz respeito às modalidades objetivas de sua solução.
Assim, a teoria de ação estratégica se fundamenta no poder, que por sua vez é
gerado e alimentado pelas áreas de incerteza/indeterminação inscritas nos
diversos espaços de trabalho.
É neste nível de problematização que a Teoria da Ação Estratégica oferece
subsídios para a análise dos saberes que os sujeitos acionam no quotidiano do
trabalho, enquanto recurso gerado no lidar com a prática gerencial. Outra
perspectiva teórica que converge para a análise dos saberes administrativos é a
Teoria da Ordem Negociada(11), a qual contribui para maior visibilidade e
desocultação dos processos informais que articulam o trabalho de gerência, bem
como as formas de organização que o estruturam e os saberes aí presentes.
No quotidiano de trabalho os indivíduos desenvolvem processos permanentes de
negociação para atingirem seus objetivos. Portanto, a concepção nuclear da
Teoria da Ordem Negociada é a negociação, sustentada ainda pelo pressuposto de
que os processos informais são construídos no quotidiano e são produto de uma
ordem negociada. Tais processos se desenvolvem em estruturas que formalizam as
relações de trabalho as quais, não sendo determinantes, os tornam
contingenciais. Daí que, a relação entre a estrutura formal e os processos
informais de negociação é também geradora de novas ordens que vão se
estabelecendo no campo das práticas profissionais. Portanto, a Teoria da Ordem
Negociada salienta a inter-relação entre as estruturas e processos, ou seja, o
modo como os processos informais se desenvolvem em contextos organizacionais
formais.
2 Desafios para a gestão e gerência de serviços de atenção Primária à Saúde
A temática da gerência na atenção primária a saúde, apenas mais recentemente,
começa a ser objeto de preocupação por dirigentes do setor público de saúde,
apesar de não ser nova esta abordagem na literatura administrativa. Pode-se
dizer que é com a Reforma Administrativa de 1969 na Secretaria de Estado da
Saúde de São Paulo que é introduzida a gerência local nos serviços públicos de
atenção primária. A Reforma Administrativa previa um conjunto de ações visando
dar maior organicidade às estruturas existentes na Secretaria de Estado da
Saúde de São Paulo, que agiam de forma fragmentada e sem uma coordenação única
de ação, sendo que a idéia era de promover "uma reforma completa na organização
e prevendo um novo gerente como um agente privilegiado em sua implantação"(12).
É, contudo, com o processo de implantação e implementação do Sistema Único de
Saúde - SUS, e com o aprofundamento da diretriz organizativa da
descentralização que a temática da gerência e gestão do sistema e serviços de
saúde começa a ganhar corpo e espaço na agenda política, uma vez que a
constituição do Sistema Único de Saúde - SUS, demanda uma outra lógica
assistencial e organizativa nos serviços de saúde.
A Reforma Sanitária brasileira trouxe para cenário de construção do SUS um
conjunto de demandas gerenciais, assistenciais e intersetoriais que desafiam a
administração pública, uma vez que o sistema de saúde brasileiro é definido
como uma rede regionalizada e hierarquizada configurando um sistema único sob
as diretrizes da descentralização, atendimento integral e participação da
sociedade, sendo que esta definição é profundamente distinta do anterior
Sistema Nacional de Saúde, cuja principal característica estava na
centralização da gestão nacional do setor(13).
A Constituição Federal estabelece esta rede como de relevância pública e como
dever do Estado, colocando, desta forma, em cena privilegiada no quadro que se
delineia com a constituição do SUS a
gestão de sistemas e a gestão de serviços de saúde como novidade
política, pois não cabe mais ao estudo da saúde pública apenas o
conhecimento da gerência das unidades de serviço, mas o pensar
(planificar, avaliar, transformar, ordenar, inovar) o conjunto dos
movimentos de implementação da reforma sanitária(13).
Desta forma, com a implantação e o movimento de consolidação do SUS desafios
são colocados para a "adequação"dos trabalhadores de saúde aos seus princípios
e diretrizes, assim como do estabelecimento de instrumentos, como, por exemplo,
a gerência de serviços de saúde, para a (re)organização do processo de trabalho
em saúde que possibilitem o pleno desenvolvimento e atendimento das
necessidades de saúde da população, e a ação de saúde voltada para a produção
de cuidados.
Este movimento, sustentado pelo processo de descentralização, traz para o nível
local novas responsabilidades e compromissos no sentido de atender às demandas
e expectativas que se colocam, por parte dos usuários do sistema de saúde, e ao
mesmo tempo a necessidade: de expansão física e funcional da rede de
atendimento à saúde, da adequação do quantitativo e qualitativo de
trabalhadores alocados para a prestação de cuidados, de revisão dos padrões de
produtividade, da avaliação da qualidade da assistência prestada. Inserida
neste contexto, a gerência de serviços de saúde tem sido tomada como um fator
de fundamental importância para o alcance destes objetivos. Por esta razão tem-
se apresentado progressiva demanda por capacidade gerencial nas unidades
prestadoras de serviços de saúdecom a finalidade de suprir a dificuldade de
qualificação gerencial, como uma condição fundamental para a melhoria da
eficiência, eficácia e efetividade dos serviços de saúde do sistema municipal
(14).
De forma alguma é creditado, exclusivamente, à gerência de serviços de saúde a
potência de transformar os processos e os serviços de saúde, uma vez que é
preciso que se faça a leitura crítica e objetiva deste instrumento de trabalho,
sendo necessário se definir "com maior precisão seu peso e seu lugar na escala
de determinantes do processo de produção de serviços de saúde. [...] Ou seja, o
processo de gestão parece estar mais bem conceituado quando definido como
instrumento necessário, mas não suficiente, à implementação de políticas
[...]", uma vez que ao assim considerarmos a gerência, esta se coloca "ao mesmo
tempo, "condicionante do" e "condicionada pelo" modo como se organiza produção
de serviços de saúde. Essa dupla posição - de produto de um determinado
contexto e de criador deste mesmo contexto - torna o processo de gestão
permeável à influência dos diferentes sujeitos sociais interessados em diversas
políticas de saúde"(15).
Ao discutir a questão dos modelos assistenciais em saúde, outros autores trazem
algumas reflexões pertinentes para se pensar o trabalho gerencial na direção
assinalada acima, autores afirmando que os fatores sociais, políticos e
econômicos definem em grande parte a estrutura e organização dos serviços de
saúde, sendo que tais aspectos estão assentados por referência ao que se
denomina de macropolítica. Por outro lado, o funcionamento e o perfil
assistencial dos serviços de saúde é dado pelos processos micropolíticos e
pelas configurações tecnológicas do trabalho, através dos quais ocorre
efetivamente a produção do cuidado à saúde16. Continuam afirmando que o
trabalho em saúde traz como componente poderoso, o trabalho vivo em ato.
Tomando estas questões, aqui se credita a possibilidade de se refletir sobre a
gerência dos serviços de saúde como uma potente ferramenta para imprimir uma
dada direcionalidade ao processo de trabalho em saúde nas unidades locais, no
sentido da produção de cuidados de saúde, não se restringindo ao
desenvolvimento de atividades burocráticas como se tem verificado de forma
intensiva nos serviços de saúde. Esta possibilidade, leva, portanto, a se
pensar na construção de alternativas que possam diminuir a distância entre os
que comandam, dirigem e aqueles que executam cotidianamente as ações de saúde.
"Trabalhar para que todos sejam em alguma medida gerentes, reformular os
organogramas das instituições redistribuindo o poder de decidir"(17).
Abre-se uma janela para se refletir sobre este último aspecto quando nos é
apresentado dois conceitos básicos do Movimento Institucionalista ou
Instituinte: auto-análise e autogestão, processos simultâneos e articulados.
A auto-análise consiste em que os grupos/ comunidades, se transformem em
protagonistas de seus problemas, de suas necessidades, de suas demandas,
enunciando, através de um processo de reflexão, que lhes permita saber e
refletir sobre sua vida, sendo este processo de auto-análise simultâneo com o
processo de auto-organização / auto-gestão, em que os grupos / comunidades se
articulam, institucionalizam, organizam para construir os dispositivos
necessários para produzir os recursos de que precisa para o melhoramento de sua
vida.
Na medida em que esta organização é conseqüência e, ao mesmo tempo,
um movimento paralelo com a compreensão da auto-análise, ela também
não é feita de cima para baixo, nem de fora, mas feita no próprio
seio heterogêneo do coletivo interessado(18).
Ao trazer tais conceitos como presentes em qualquer tendência do Movimento
Instituinte e fundamentais para a sustentação de sua lógica, o autor, não nega,
contudo, que nos processos produtivos não estão abolidas a hierarquia de
decisão, de deliberação, sendo enfático em afirmar que existirão hierarquias,
existirão gerências.
Mas, a existência de hierarquia não implica diferença de poder; não
equivale à autarquia ou arbitrariedade na capacidade de decidir.
Implica apenas uma certa especialização em algumas tarefas, porque
estes dispositivos estão feitos de tal maneira que as decisões de
fundo são tomadas coletivamente(18).
Assim, coletivizar o trabalho, gerir serviços de saúde dividindo
responsabilidades, estabelecer estratégias que possam recompor o trabalho em
atenção primária no sentido de acolher a clientela em suas necessidades pode
significar o favorecimento de uma lógica participativa e democrática creditando
aos trabalhadores e usuários a capacidade de se constituírem atores num
processo de construção e de criação de diferentes possibilidades de
intervenção.
Esta direção certamente atende as premissas colocadas na proposta da atenção
primária à saúde e da consolidação dos princípios norteadores do SUS. Esta
pertinência pode significar a possibilidade do trabalhador de saúde (e usuários
dos serviços) de se tornar autor do projeto assistencial em construção(19) e,
neste sentido, não há dúvida, que só se consegue algum tipo de mudança no modo
de produzir saúde, se isto for uma tarefa coletiva, do conjunto de atores,
"reformadores" de modos de produzir ações de saúde20. Estabelecer estratégias,
portanto, que possam abrir possibilidades para que o trabalhador em saúde se
reconheça no projeto que está sendo construído parece ser um dos desafios que
se coloca no cenário contemporâneo da saúde.
Esta discussão aponta para dois aspectos presentes na lida dos serviços de
saúde e que implica em se olhar para a interface destes dois temas extremamente
complexos na produção em saúde: de um lado a questão dos trabalhadores de
saúde, aspecto na área da saúde que vem sendo assinalado como um dos pontos
nevrálgicos para a construção de um sistema de saúde(13,15,21) que se paute
pelo respeito aos princípios e diretrizes do SUS; e de outro, a forma como se
colocam cotidianamente em ação processos de condução do processo de trabalho
que possam permitir a adesão e compromisso dos trabalhadores e o
desenvolvimento de ações coerentes ao projeto ético-político do SUS em seus
princípios de universalidade, eqüidade, participação social e que podem
conduzir ao exercício de direitos, ou seja, plena expressão de cidadania
(20,22,23).
3 A ambiência hospitalar e a transição do modelo de gestão
A precária situação atual dos hospitais públicos brasileiros pressiona para uma
reorganização administrativa que leve em conta a melhoria da ambiência desses
hospitais.Tomaremos o conceito de "ambiência"(24) de Michel Maffesoli para
explicitar que a problemática da gestão hospitalar perpassa pela compreensão de
que o espaço e a atmosfera determinam a dinâmica institucional na medida que,
englobam o espaço físico, as diversas relações e inter-relações que são de
ordem econômica, política, ideológica, social, cultural, não sendo possível
privilegiar nenhum aspecto em detrimento do outro. Portanto para inovar e
qualificar a gestão/gerência, primeiro é preciso analisar a atmosfera
hospitalar, porque é ela que determina o processo de trabalho, as atitudes
individuais e coletivas dos profissionais e conseqüentemente a qualidade da
produção.
O sociólogo francês deixa claro que é difícil conceituar ou definir a ambiência
por ser da ordem da complexidade, do nebuloso; entretanto, indica que podemos
realçar suas principais características, mostrando o que ela tem de objetivo e
subjetivo, esclarecendo que o objetivo torna-se mais receptivo aquilo que é da
ordem do ambiente, do fazer, os quais entretanto, não se conformam sem a
mediância do social e do afetual, que são de natureza subjetiva.
Outro aspecto objetivo refere-se a estrutura organizacional dos hospitais
públicos que ainda na atualidade, segue as diretrizes estabelecidas por
organogramas clássicos conformando um aparato altamente hierarquizado,
instituindo a fragmentação das responsabilidades, a formalização das relações
humanas e da produção, sempre pautada nas lógicas da autoridade legal e sua
correlata lógica da proteção-servidão; ambas pertencentes ao sistema
burocrático(25).
Na perspectiva maffesoliana um racionalismo exagerado se desregula até eliminar
o que há de vida criativa institucional e, nesse sentido constatamos que há nos
hospitais conjuntos profissionais capacitados mas que se sentem impotentes na
condução do próprio processo de trabalho. Essas observações assinalam para a
exigência de se trilhar um outro caminho de racionalidade hospitalar.
No que se refere ao impacto da estrutura administrativa vigente entendemos que
a análise social é paradoxal, uma vez que a ação da tecnoestrutura com
centralização do poder contribui para o enfraquecimento dos vínculos sociais
conduzindo à depressão social e à desagregação das categorias profissionais,
mas no entanto, esse mesmo conjunto profissional age receptivamente a essa
estrutura, uma vez que o poder autocrático exercido encontra ressonância entre
os dominados(25).
Nesta direção uma reestruturação administrativa trata-se eminentemente de um
processo de desacumulação de valores culturais, motivado pela saturação ou
decadência do sistema administrativo clássico vigente, portanto deve ser
compreendido acima de tudo como um processo de alternância de concepção da
própria funcionalidade institucional.
Com esse pensamento relatamos a experiência do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Unidade de Emergência, que se
espelhando nas evidências de saturação e nas manifestações de desejos de
mudanças, arquitetou um desenho organizacional, que melhor retratasse a
concepção institucional para o presente, esboçando-o depois de vários
movimentos de análises auxiliados por estudos(20,22), e , mediante, diversas
contemplações da ambiência hospitalar com seus processos de trabalho.
Colocou-se substância regimental e operatória na delimitação de unidades
funcionais, cuja compreensão refere-se a áreas de trabalho especializadas, com
espaço físico, recursos humanos e tecnológicos estabelecidos, possuidoras de
estrutura organizacional quase horizontalizada, com diretrizes básicas de
funcionamento e, que dispõem de serviços claramente definidos.
A importância da definição do espaço físico para a gestão colegiada é
fundamental, uma vez que comporta a representação do lugar geográfico destinado
ao enraizar-se do corpo profissional e de usuários do serviço. O lugar, o
território é compreendido por Maffesoli como a priori para qualquer construção
coletiva, na medida em que porta uma carga antropológica importante relativa a
inscrição dos desejos, dos sonhos e das práticas cotidianas(24).
Assim o novo organograma dispõe que, em cada unidade funcional, tenha-se uma
equipe de gestão que congregue os profissionais que prestam serviços naquela
área de trabalho, os quais em conjunto gozam de autonomia no que tange à
apreciação e redefinição do modelo técnico-assistencial.
Emana da equipe de gestão a escolha de um grupo gestor composto por um
representante de cada categoria profissional, escolhido entre os pares com
mandato de dois anos, ao qual compete, em particular, a gestão dos aspectos
administrativos e do modelo assistencial da sua unidade funcional, propondo
medidas necessárias à implementação dos planos de atuação delineados em
consonância com as políticas geradas pela coordenação do hospital.
Para melhor funcionalidade cada grupo gestor elege um gestor a quem cabe o
papel de coordenador e animador do grupo e da equipe de gestão, sendo o gerente
estratégico para o monitoramento da execução dos planos delineados para a
unidade funcional. O gestor é o responsável final por todos os recursos
indispensáveis à realização dos planos de ação para alcance dos projetos,
portanto configura-se em um ator social privilegiado que requer capacidade de
articulação.
O conselho de gestores reúne-se para processar as demandas de interface e
interdependência das diferentes unidades funcionais, fortalecendo a idéia de
rede institucional, para que cada equipe sinta-se conectada com as demais, de
forma orgânica e sistêmica.
Uma equipe de supervisores e responsáveis técnicos nomeados pelo coordenador do
hospital, inclui as áreas de enfermagem, medicina, apoio administrativo,
serviço social, psicologia, nutrição, laboratórios, infra-estrutura e
manutenção, tendo o compromisso de instituir processos de reflexão crítica e
acompanhamento dos resultados das práticas interdisciplinares e, em âmbito
particular, cada especialidade regula o seu exercício profissional com suas
especificidades.
O coordenador do hospital está apoiado pela equipe de planejamento e conselho
multidisciplinar, no que se refere a análise de conjuntura interna e externa
das políticas de saúde, a fim de instituir e implementar diretrizes gerais de
atenção hospitalar de urgência e emergência, propondo-se a ofertar ao usuário
atendimento integral, ágil, resolutivo, humanizado e articulado com a rede de
atenção do Sistema Único de Saúde.
Com esse desenho organizacional apostou-se na mudança político-administrativa
do hospital, levando a sério o irrefutável desafio de reformar as práticas e as
relações profissionais, conduzindo o processo de forma colegiada e
interdisciplinar.
O agir na transição do modelo administrativo nos ensinou que precisa-se de um
pouco de tempo para encontrar um método não cartesiano que permitisse ao
conjunto profissional ir decifrando a transmutação da gestão no próprio agir
inventivo. Um método de transmutação é mais uma alavanca metodológica que
possibilita a transferência de valores, estruturas de poder e práticas
consolidadas para uma outra dimensão, a fim de alcançar a transfiguração(25).
Transfigurar não é equivalente ao ato de mudar ou de transformar. Do ponto de
vista sociológico esses comportam valores e atitudes ativistas, enquanto a
transfiguração propõe um método de tecer conjuntamente com reversibilidades
constantes, em que se elabora simultaneamente a resistência e o usufruir do
nascente, daquilo que está emergindo e que ainda causa estranheza. Desta forma,
a transmutação não acontece subitamente e nem comporta a idéia de totalidade. O
autor nos alerta a rejeitar as atitudes prometeanas de querer novamente
dominar, transformar ou mudar o mundo, e indica que melhor será unirmos a ele
através da contemplação, que é uma forma de acompanhamento da realidade(24,26).
Do ponto de vista maffesoliano o agir tradicional segundo a lógica da
imposição-servidão foi cedendo lugar a contemplação-criação(27), o que
correspondia a não-atividade político-administrativa gerada a priori em espaços
de poder central. Essa perspectiva requereu dos dirigentes dedicação para se
unirem ao conjunto dos profissionais, a fim de irem coletivamente formatando a
ambientação que determinava a atividade, ou seja, a criação das novas
diretrizes de poder e de funcionamento institucional.
Com essa postura os dirigentes não se encastelam mais em suas salas, estando o
tempo todo com a base analisando fatos e situações do dia a dia, o que tem
determinado uma nova configuração do poder no hospital, saltando de uma lógica
que dispunha os dirigentes distantes da produção e com total poder de decisão
para uma outra em que predomina a horizontalidade(25).
Sobre o ambiente físico e tecnológico os reconhecemos não somente nas suas
características de espaço e objeto inanimados, mas nas suas possibilidades de
destaque das dimensões de espaço e objeto simbólicos. Buscando este estilo
estético(27),a transfiguração de uma entidade material também opera pela
transmutação de uma dada condição para outra, sendo assim o espaço físico e
tecnológico do hospital de estudo passou de um lugar com diversas inadequações
para algo qualitativo com sentido de apropriado, com embelezamento que estimula
o prazer e a confiança.
A temática do espaço institucional desempenha papel cada vez mais importante na
atualidade dada a sua fecundidade na produção de uma funcionalidade ampla que
possibilita a eficiência técnica, o bem estar, o conforto, a socialidade e a
beleza. O território do hospital possui uma materialidade mística diante da sua
capacidade de acolher a doença e o tratamento, a vida e a morte; portanto esse
espaço tem uma imagem que é sagrada.
Um corte epistemológico não tem para nós, o sentido de que os diversos
elementos da administração clássica vigente como a divisão técnica do trabalho,
o controle e a supervisão serão ultrapassados ou eliminados. De fato
continuarão presentes na gestão colegiada, mas adquirirão outra tonalidade
demonstrando que a estrutura e a lógica do processo de trabalho não são mais a
mesma, na medida do declíneo do poder centralizado e das possibilidades de se
colocar em relação às verdades múltiplas. Isto é transmutação uma vez que os
elementos da administração clássica continuarão presentes, contudo com outra
configuração e abordagem.