Processo de trabalho em enfermagem: gerenciamento das relações interpessoais
PESQUISA
Processo de trabalho em enfermagem: gerenciamento das relações interpessoais*
Interpersonal relationships management in the nursery work process
Gerenciamento de las relaciones interpersonales en el proceso de trabajo en
enfermería
Janete de Souza UrbanettoI; Beatriz Beduschi CapellaII
IEnfermeira Mestre em Enfermagem. Professora Assistente do Curso de Enfermagem
da Faculdade de Enfermagem, Fisioterapia e Nutrição da PUCRS.
IIEnfermeira Doutora em Enfermagem. Professora Aposentada do Departamento de
Enfermagem da UFSC. Orientadora da Dissertação de Mestrado.
Correspondeência
1 Introdução
De uma maneira geral, o desenvolvimento do processo de trabalho vem sendo
estudado e discutido em vários setores da saúde, tanto no público como no
privado, na perspectiva de melhoria da qualidade dos serviços produzidos, bem
como da qualidade de vida dos envolvidos nesse processo.
A Enfermagem, entendida como uma prática social, estabelece entre si e os
demais envolvidos no desenvolvimento de seu processo de trabalho, uma teia de
relações interpessoais e grupais de caráter complexo, o que exige da enfermeira
a
, profissional de referência no meio e legalmente coordenadora da equipe de
enfermagem, especial atenção no gerenciamento destas relações.
Neste sentido, a enfermeira assume o papel de gerenciar as relações
interpessoais que estabelecem os trabalhadores de enfermagem entre si, com os
demais profissionais da área e com os sujeitos que procuram os serviços de
saúde.
Este papel, na maioria das vezes, é pouco qualificado e secundarizado pelos
profissionais, o que, direta ou indiretamente, responde em parte pelo panorama
existente, no qual são priorizados, os elementos técnicos da assistência em
detrimento da intersubjetividade aí existente, tanto dos indivíduos que
procuram os serviços como dos demais envolvidos nesse processo, cada qual com
suas necessidades específicas.
Apesar do desenvolvimento da profissão como um todo, as reflexões e estudos
referentes a esta temática ainda são incipientes e do domínio de um contingente
relativamente pequeno dessas profissionais.
O conhecimento, apreensão e análise do referencial teórico das principais
dinâmicas relacionais possibilitarão e facilitarão, sem dúvida, o
desenvolvimento de um convívio grupal baseado na relação profissional,
resultando em amadurecimento do grupo de trabalho.
É imprescindível compreender as relações interpessoais e grupais no trabalho,
com vistas a repensar as relações de cunho apenas pessoal, que muitas vezes
predominam. Neste sentido, entender que as relações no trabalho transcendem
este vínculo pessoal e por isto se aponta a necessidade de estabelecer relações
éticas e de respeito, na perspectiva de viver relações maduras, responsáveis e
comprometidas com as exigências deste trabalho.
Tentando contribuir com todos os profissionais de enfermagem interessados em
refletir acerca do tema, esse texto apresenta o referencial filosófico e
teórico-metodológico da dinâmica das relações interpessoais e grupais no
desenvolvimento do processo de trabalho em enfermagem, com base,
principalmente, em dois referenciais, a Teoria Sócio-Humanista(1)e o Sistema de
Aprendizagem Vivencial (SAV)(2).
Tece também algumas considerações feitas no decorrer da trajetória de coleta e
análise dos dados obtidos na dissertação de mestrado, além de apresentar as
principais convergências encontradas nas dinâmicas relacionais das enfermeiras
em dois hospitais de ensino da Região sul.
2 Percurso Metodológico
A pesquisa desenvolvida é de abordagem qualitativa, descritiva, tendo sido
utilizada a pesquisa-ação e a pesquisa documental como opções metodológicas
para o primeiro e segundo momentos da coleta de dados, respectivamente.
A coleta dos dados foi realizada, no primeiro momento, por meio de encontros
coletivos, aqui denominados vivências integradoras(3;4), com duração média de
duas horas, totalizando 6 vivências com oito enfermeiras-chefes de um hospital
universitário da Região Sul (Hospital 1).
No segundo momento, buscou-se identificar convergências entre os dados
coletados na primeira etapa e os registros documentados em dois relatórios do
Programa "Vivendo e Trabalhando Melhor: uma proposta de reflexão e atualização
das relações na enfermagem" (Programa VTM)(5;6), realizado em outro hospital
universitário da Região Sul (Hospital 2).
Contemplou-se os princípios legais e éticos que devem nortear qualquer estudo/
pesquisa que envolva seres humanos, por meio da aprovação do estudo pela
Direção de Enfermagem, pela Comissão Científica e pelo Comitê de ética das
referidas instituições. Também foi entregue o Consentimento Livre e Esclarecido
do Participante,que permitia ao sujeito do estudo a compreensão do objetivo da
pesquisa, e as implicações desta a sua pessoa, bem como a autorização de
publicação dos dados coletados. A identidade dos sujeitos está preservada e
sempre que se fez referência a suas falas, utilizaram-se codinomes de pedras
preciosas.
A análise dos dados(7), constituiu-se operacionalmente nos passos de ordenação,
classificação e análise final. A análise final apresenta-se em quatro grandes
categorias de análise textual, quais sejam, dinâmica de inclusão ou de
exclusão?; dinâmica de controle - dificuldades no exercício da autoridade
gerencial; dinâmica de ajustamento - a profissionalização do trabalho em
enfermagem; dinâmica de avaliação - a ausência de mecanismos de avaliação.
3 As relações interpessoais e grupais no processo de trabalho em enfermagem
O Sistema de Aprendizagem Vivencial (SAV), é entendido como um instrumento de
trabalho, ou seja, um instrumento teórico-metodológico para a prática de
enfermagem, se coloca como uma
proposta psicopedagógica que objetiva facilitar os processos de
relação grupal e a integração pessoal [...], focando os aspectos
sociais e psicoemocionais presentes na interação do indivíduo com os
diversos grupos e buscando a compreensão do processo vital humano,
segundo uma perspectiva complexa e sistêmica(2:14).
O referencial utilizado é inicialmente originado da Teoria das Necessidades
Interpessoais(8;9), que se baseia nas necessidades interpessoais de "inclusão",
"controle" e "afeição".
Os autores do SAV(9) acrescentam a essa teoria mais uma necessidade, a de
"separação-avaliação" (para este estudo enfocada como de avaliação), ao mesmo
tempo em que redefinem, para os espaços institucionais, a necessidade
interpessoal de "afeição" como necessidade de "ajustamento", "enquanto um
desejo de respeito [...] evitando-se tendências de idealização e de
desprofissionalização das relações de trabalho"(9:29), compondo o que se
caracteriza como Fases Evolutivas das Relações Grupais.
Esse modelo segue um "curso probabilístico"(3:09) das relações grupais. Desta
forma, "reconhecer, respeitar e facilitar essas tendências 'naturais' dos
grupos é tanto uma estratégia de ação como um instrumento de compreensão dos
movimentos que tendem a ocorrer no desenvolvimento dos trabalhos".
As convergências encontradas nos dois hospitais em estudo possibilitaram
entender como é tratado este aspecto no processo de trabalho em enfermagem.
Desta forma, apresenta-se, no início de cada categoria, o referencial teórico
da dinâmica das relações grupais, baseado no SAV e, sinteticamente, as
principais convergências referentes às relações interpessoais e grupais
sinalizadas no cotidiano do trabalho das enfermeiras, nesses dois hospitais.
3.1 Dinâmica de inclusão...ou de exclusão?
Esta fase, considerada como a primeira fase neste processo relacional, seja
pelo surgimento de um grupo como todo, no qual as pessoas se incluem no sentido
de iniciar um relacionamento, ou pela inclusão de um novo integrante em um
grupo já composto, passa muitas vezes desapercebida, podendo ser geradora de
muitas dificuldades posteriores.
Ainda nessa fase, os contatos interpessoais "caracterizam-se inicialmente pelo
fato dos indivíduos estarem em busca do estabelecimento de temas comuns a
todos, procurando definir e/ou identificar os padrões e as regras validadas
para a interação"(5:31). Para que essa fase se complete é necessário a
[...] compreensão e o esclarecimento dos elementos que conferem
unidade ao grupo, bem como a assimilação da diversidade da sua
composição [...] para que todos os seus integrantes possam ser
democraticamente acolhidos e incluídos(5:33).
No que se refere ao gerenciamento das relações em nível institucional, e, neste
caso, especificamente para as enfermeiras, é fundamental que, enquanto líderes
das equipes de enfermagem, encaminhem efetivamente o processo de inclusão dos
novos integrantes,
estabelecendo claramente os contornos e propósitos do trabalho e atuando na
estruturação necessária para definir o contexto das relações interpessoais e o
tipo de intervenções que podem favorecer a produtividade do grupo, sem esquecer
a diversidade individual e a complexidade relacional configurada em cada
contexto e a cada momento(3:11).
Nesta categoria de análise, dois aspectos são abordados neste artigo:
- Ausência de um processo formal de inclusão das profissionais na instituição.
Evidenciou-se no estudo a ausência de um processo formal de inclusão dos
profissionais nas instituições. A profissional, por ocasião de sua inclusão no
ambiente de trabalho, ou mesmo quando é transferida de um local para outro, na
instituição, não segue um cronograma de inclusão que lhe proporcione conhecer
aspectos institucionais essenciais para o desenvolvimento de suas ações,
ocasionando, muitas vezes, sérias dificuldades a sua ambientação, ou até mesmo
a sua exclusão desse processo, não somente na forma de desistência do cargo,
mas também na forma de não comprometimento com o processo de trabalho.
É necessário que tanto quem se inclui como quem recebe, tenha a percepção de
que nada é imediato, que tudo passa por um processo de integração de ambos,
processo este, evolutivo, ao qual é preciso adicionar uma certa dose de
equilíbrio entre as necessidades do grupo, da instituição e da pessoa incluída.
A ansiedade está presente, tanto na pessoa que está chegando, como no
grupo que está recebendo esta pessoa, pois esta se coloca com sua
individualidade, a maneira de trabalhar diferente. O primeiro momento
é muito difícil(Ametista).
- Descuido da enfermeira gerente com a nova integrante, permitindo a reprodução
de "testes" para legitimar sua função.
A competitividade sempre foi uma característica do ser humano, possuindo vários
aspectos positivos e impulsionadores de melhorias. Mas, muitas vezes, a
competitividade pode ultrapassar estes limites, ocasionando sérios problemas de
relacionamento e inibindo o crescimento coletivo do grupo de trabalho.
O risco de perder o espaço de trabalho, a significação para o grupo, o
prestígio e o poder são componentes importantes na determinação de alguns
direcionamentos e posturas na recepção da nova integrante no grupo. Então, se a
pessoa que chega é competente, pode ser vista como uma ameaça à manutenção de
seu poder no local de trabalho e sobre o grupo, como retrata uma das
enfermeiras:
mas eu acho que muitas vezes acontece da enfermeira se unir com o
grupo e não recebe bem a outra colega, porque é uma competição, ela
pode tomar o meu lugar(Diamante).
Este posicionamento do grupo também é evidenciado no relatório do VTM(6:28) em
que "a atitude dos demais membros da equipe para com a enfermeira novata parece
ter sido 'autorizada' pela chefia, na medida em que, não tomando nenhum cuidado
para sua inserção na equipe, deixou-a entregue a um 'jogo'[...]".
Nesse sentido, a profissional que chega é testada em seu conhecimento e
prática, ficando exposta a um considerável constrangimento:
o recém chegado é muitas vezes cobrado por coisas tão pequenas pelo
grupo, como local das coisas, rotinas. Parece uma forma de atormentar
[...], não há um tempo para ele se adaptar ao meio (Ágata).
Fica evidente no relatório do VTM esta mesma situação, o que, segundo os
autores(6:40), evidencia os mitos organizacionais que configuram a atual
identidade profissional, ou seja, a própria equipe reproduz com seus testes, as
mesmas exigências sócio-culturais de reafirmação da legitimidade profissional
da enfermagem[...]: competência (teste do conhecimento e da formação
acadêmica), abnegação (teste da 'dedicação angelical'), precisão e eficiência
(teste do desempenho preciso) e, urgência de decisão (teste da 'agilidade para
fazer').
A caracterização da enfermagem como "anjo" (símbolo do processo de idealização
do campo profissional da Enfermagem) está presente nas análises realizadas por
Leite e Ferreira(5;6), cuja representação passa a ser denominada como "anjo
cansado", associando-o à expressão do desgaste físico, mental e emocional. Esta
caracterização, que tem suas origens no passado histórico e social da
profissão, já é criticada pelos próprios profissionais.
A inadequação do processo de inclusão dos profissionais à instituição, pode
sinalizar algumas dificuldades no processo relacional, ao mesmo tempo em que
aponta para a necessidade de se iniciar um programa de educação no trabalho ou
em serviço, que supra ou minimize todo o sofrimento gerado, justamente no
início da vida profissional das enfermeiras na instituição, podendo deixar
"seqüelas", às vezes, definitivas. Isto fica claro na afirmação:
A minha inclusão foi dramática, não quero nem lembrar!(Diamante)
3.1 Dinâmica de controle - dificuldades no exercício da autoridade gerencial
A necessidade interpessoal de controle pode ser vista como um desejo de
reconhecimento e valorização da diferenciação individual. Assegurada a
inclusão, as pessoas passam a sentir necessidade de demarcar também sua
individualidade. De modo mais geral, buscam demarcar os limites de autonomia e
de determinação individual na interação com o outro e com o mundo(5:34).
Na fase de controle, vários elementos surgem no sentido de se estabelecer
linhas de ação de um determinado grupo, para viabilizar a tomada de decisão e,
com isto, a área de poder de cada componente do grupo. Muito mais que na fase
anterior, é um momento de instalação de conflitos, mas conforme a abordagem do
SAV(5:35), apesar de parecer contraditório,
são também estas dinâmicas que podem assegurar processos verdadeiramente
democráticos de interação no grupo, na medida em que, dando expressão a
conflitos e divergências de intenções e percepções, possibilitam a definição de
regras comuns a todos, colocando limites aos espaços e condutas individuais, de
modo a compatibiliza-los com a socialização dos interesses coletivos.
Nessa fase, é fundamental o papel desempenhado pelas enfermeiras, uma vez que é
neste momento que estará em jogo a definição dos espaços de poder, bem como o
estabelecimento dos limites e possibilidades de cada um no grupo, cabendo,
então, a quem o gerencia o exercício da autoridade, quando se fizer necessário.
Como essa fase está diretamente relacionada às questões de autoridade, poder e
liderança, torna-se necessário refletir à luz de referenciais que possam
auxiliar de forma a tornar menos árdua a aprendizagem e o constante
aprimoramento, no exercício do gerenciamento.
Nesta categoria de análise, dois aspectos são abordados:
- Dificuldade em delimitar o papel gerencial
Uma das grandes dificuldades/fragilidades no gerenciamento em enfermagem reside
justamente na fase de controle, em função do preconceito em relação ao
exercício da autoridade, muitas vezes confundida com autoritarismo.
Esta não apropriação do papel gerencial foi percebida no relatório do Hospital
2(6:31) apontando que
pode-se perceber uma elevada dose de indiferenciação entre as funções
e atividades atribuídas aos gerentes e aos demais enfermeiros da
equipe, o que vem reforçar a tese da personalização das relações e da
informalização das funções gerenciais, numa certa negação do poder
inerente a esses cargos.
Neste sentido, a autoridade é confundida com autoritarismo e posta de lado como
se fosse a vilã, a causadora das dificuldades relacionais existentes. Na
verdade, "é o controle e a colocação de limites claros e assertivos (mas não
enrijecidos) que podem profissionalizar essa relação de subordinação
hierárquica, humanizando, sim, as relações profissionais, mas sem cair no
personalismo paternalista e/ou autoritário"(5:72). A dificuldade em estabelecer
limites mais assertivos é sinalizada tanto na etapa junto às enfermeiras, como
com o corpo gerencial do VTM(6).
A pessoa que é extremamente autoritária, que vê uma pessoa que é
democrata, acha que a pessoa é relapsa, não tem autoridade. Eles
confundem, acham que a pessoa tem que ser autoritária.(Esmeralda)
A concepção de que um gerenciamento participativo possa provocar "bagunça" e
falta de uma figura no "papel de comando", perpassa a visão de muitos. Na
verdade, falta ainda capacitação, tanto das gerentes como das demais
integrantes do grupo, para que este processo de gerenciamento possa ser
reavaliado e atualizado, tornando claro as competências de cada um, nos
diferentes contextos.
Outro aspecto importante são as condições inadequadas ao real papel de um
gerente, a que se submetem as enfermeiras com cargo de chefia, quando assumem,
além das funções técnicas do seu setor, o gerenciamento dos recursos materiais,
estruturais e das pessoas que ali se inserem.
O gerenciamento é, na maioria das vezes, não priorizado pelas instituições e
normalmente visualizado como uma ação burocrática e, desta forma, pesada e
desinteressante.
- Desformalização e personalização da função gerencial
Outro aspecto importante desta fase é o estabelecimento da determinação de
limites que, relevante nas relações de trabalho, não compete somente às
hierarquias superiores. Ao mesmo tempo, os limites não podem ser estabelecidos
somente quando convém a uma das partes envolvidas. É necessário que haja o
estabelecimento de critérios adequados, condizentes com a realidade, e,
principalmente, aplicados de forma a não produzir privilégios.
No cotidiano de trabalho, a ausência de um sistema organizacional que norteie
as ações dos profissionais nela inseridos, atribui pesadas responsabilidades
aos gerenciadores do processo de trabalho, provocando, muitas vezes, sofrimento
e desestímulo a quem é compromissado com as ações que executa. Este aspecto
pode levar a personalização e desprofissionalização da função gerencial, devido
à supervalorização do poder pessoal com minimização do poder funcional.
Esse aspecto gera dificuldades à manutenção do papel gerencial, no qual cada
setor da instituição é gerenciado conforme a visão da chefia:
cada um faz conforme o seu jeito, cada setor faz conforme acha
melhor. Acho que falta uma "linha mestra" e um "fio condutor" [...].
Porque eu vejo assim, que aqui cada um administra conforme a
necessidade e conforme a sua teoria, a sua linha(Safira).
3.3 Dinâmica de ajustamento: a profissionalização do trabalho em enfermagem
Os autores do SAV referem-se a esse processo como
um amadurecimento das relações internas, de forma a permitir a
aceitação e integração das diferenças, comportando assim a vivência e
expressão dos diferentes graus de afinidades ou divergências entre
seus integrantes, sem que isso ameace ou ponha em risco a unidade
grupal (5:38).
Nessa dinâmica, uma questão a ser abordada diz respeito às distorções que podem
ocorrer em função das dificuldades existentes na diferenciação das relações
profissionais e pessoais, entre os componentes de um grupo institucional. No
caso da enfermagem, cujas relações são muito próximas e, muitas vezes, ocorrem
por um longo período de tempo diariamente, essas distorções podem facilmente
ocorrer. Nesses momentos, é necessário ter a clareza de que as pessoas
[...] podem e devem relacionar-se bem profissionalmente,
independentemente das relações pessoais que mantém entre si [...]. A
função do gerenciamento dessas relações interpessoais não é a de
promover o 'amor' entre as pessoas, mas de facilitar a construção do
respeito (6:20).
Leite e Ferreira(6:42) refletem sobre a necessidade de quem exerce um cargo de
chefia ter um olhar distanciado em determinados momentos, bem como a
necessidade de "adequada diferenciação do papel da enfermeira-gerente em
relação ao restante da equipe", pois a não existência deste distanciamento pode
levá-la a "perder-se no jogo de negação (quando predomina a omissão) ou de
'amaciamento' dos conflitos (quando a atitude dominante é paternalista),
[...]".
Nesta categoria de análise percebeu-se que as relações no processo de trabalho
se dão, principalmente, por meio de contatos bipessoais, o que compromete a
unidade grupal.
No trabalho da enfermagem é importante que o grupo trabalhe com maturidade,
estabelecendo relações em nível profissional, no qual haja respeito às
diferenças e soma de forças, no esforço de desenvolver o trabalho em equipe. É
importante salientar, no entanto, que esta fase só acontece se bem trabalhadas
e resolvidas as fases anteriores, pois
a afetividade só se instala e só ganha espaço de um modo integrador,
quando resulta de um amadurecimento e enfrentamento das questões de
inclusão e controle. Caso contrário, quando essa afetividade se
superpõe a esses conflitos mal resolvidos, é mais comum que esta
tenda a acirrar ainda mais as dificuldades, na medida em que organiza
cumplicidades, cria "panelinhas" e leva as questões para o plano mais
passional, confundindo e comprometendo indiferenciadamente relações
pessoais e profissionais(5:75).
As relações, cujas características principais são os laços de amizade e de
cumplicidade, acabam por trazer um envolvimento de cunho pessoal que se
superpõe à necessidade profissional, o que pode desprofissionalizar as relações
no trabalho e trazer, ao contrário do que parece, várias dificuldades no que se
refere à tomada de decisão, tão freqüente e importante ao gerenciamento.
Neste sentido, parece que o grupo tem uma certa dificuldade em estabelecer
claramente os limites entre o profissional e o pessoal, entendendo ainda que
uma boa relação de trabalho é aquela em que se estabelecem fortes laços de
amizade, o que facilitaria a tomada de decisão e a abordagem à pessoa.
Tendo essa relação de amizade, parece ser mais fácil a gente chegar e dizer,
sinto-me mais tranqüila. (Ametista)
Mas aí tem que ser aquele amigo, amigo mesmo(Esmeralda).
Mas existem dúvidas quanto a estas assertivas, como transparece na fala:
eu acho que tanto nas relações de amizade ou não, sempre é difícil.
Até porque tu nunca sabes como a pessoa vai agir, como a pessoa
entende o fato, se percebe que faz determinadas coisas. Outro aspecto
é que não adianta, no grupo a gente tem afinidades e o grupo todo
percebe. Mas é importante ficar claro que se têm afinidades,
conversa-se mais, brinca-se mais, mas isso não quer dizer que vou
beneficiá-los dentro do trabalho(Ametista).
No relatório do VTM(6:44), os autores observaram o domínio das "relações entre
pares, ou, no máximo, entre subgrupos, com dificuldades de perceber e de viver
uma unidade grupal mais ampla e efetiva".
A desformalização do papel gerencial, minimizando pontos fundamentais para o
desenvolvimento adequado do processo de trabalho, é retratado no Hospital 2(9:
51) como uma dificuldade das enfermeiras para distinguir o "poder pessoal e
poder funcional", existindo uma " tendência de ancorar a autoridade da função
nas referências das relações familiares".
3.4 Dinâmica de avaliação: ausência de mecanismos avaliativos
Esta fase, na evolução das relações em um grupo, é muito importante, pois é um
momento de retomada, de reafirmação de estratégias e ações, ou de
transformação, podendo surgir como um momento de reaprendizado e de
transformação da realidade vivida.
Leite e Ferreira(5:42) trazem a fase de avaliação como uma
finalização integradora dos processos vividos, possibilitando a
avaliação da experiência, transformando-a em conhecimento de vida,
ampliando o repertório existencial e criando melhores condições para
se dar início a outros ciclos, a outras experiências [...]. Em
relação aos papéis institucionais, essa formalização favorece a
profissionalização, estabelecendo regras mais claras, [...]
otimizando o resultado de todo o trabalho coletivo desenvolvido.
No campo do gerenciamento, é importante viver esses processos de avaliação,
valorizando-os como momentos fundamentais para as equipes de trabalho, na
perspectiva de reapropriação das idealizações da profissão, visualizando os
limites do presente e apontando as possibilidades futuras.
A avaliação é um instrumento fundamental para subsidiar a tomada de decisão,
pois muitas vezes, ao propor-se o desenvolvimento de ações específicas, a
formalização da atividade possibilita a explicitação dos aspectos facilitadores
ou restritivos desta. Os dados obtidos fornecem também a argumentação para a
credibilidade do processo gerencial, ao mesmo tempo em que possibilitam o
encaminhamento das mudanças necessárias.
Ressalta-se na categoria de análise, dois aspectos.
- Isolamento das equipes de enfermagem, em suas unidades ou setores, por falta
de critérios de ação estabelecidos institucionalmente.
Desde a dinâmica de inclusão, o ponto chave é o estabelecimento de uma "linha
mestra", uma filosofia institucional, com critérios definidos, metas traçadas
para que todas as profissionais, principalmente as chefes, tenham sustentação
em seus posicionamentos e decisões, não dando a impressão de que cada um faz o
que quer, da forma que quiser.
Nosso grande problema com relação a critérios, é que não os temos
estabelecidos institucionalmente, cada setor cria seus próprios
critérios, conforme a concepção de cada chefia. Na hora de cumpri-
los, gera-se discordâncias [...](Safira).
Este aspecto é enfocado no trabalho realizado junto às gerentes de enfermagem
do Hospital 2, apontando que um ponto importante sinalizado no grupo, "foi a
consciência de um grande isolamento vivido cotidianamente pela categoria,
ficando 'cada uma no seu canto', cuidando da sua equipe, fazendo o seu
trabalho"(5:75).
- Ausência de mecanismos permanentes e adequados de avaliação.
A demora nas resoluções de problemas, ou na aplicação de estratégias efetivas,
provoca nas pessoas um desestímulo tal, que as desvinculam da busca de
aprimoramento do processo de trabalho.
No início entrei com todo o gás, para que as coisas acontecessem. Não
sei porque as coisas não são mais resolutivas. A gente envolve-se no
fazer, no resolver as coisas imediatas,[...]. Será que é isto?
(Ametista).
A demora nas resoluções, apesar de o diagnóstico dos problemas, ao que parece,
ser de fácil estabelecimento, é assim explicada:
porque funciona assim, nós temos problemas com a secretaria,
portaria, setores de apoio (alguém diz: temos problemas com tudo).
Muito bem. Quem são as pessoas? [...]. O que vai se fazer? Eu não sei
se emperra nas direções ou nas chefias. E aí a gente discute, fala do
problema. Estamos angustiadíssimas, querendo uma resolução. Muito
bem! No próximo mês, a mesma situação(Ametista).
Essa situação é apontada no Hospital 2(6:31), na qual questões de
interface com as demais áreas do HU (equipe médica, de manutenção, de
administração, jurídica, etc.) que geraram discussões mais vivas
nessa definição das atribuições do setor, marcadas principalmente
pela reclamação de responsabilidades dessas outras áreas que a
enfermagem acaba assumindo.
A enfermagem, pelo contato direto com os sujeitos do cuidado, acaba por se
aproximar mais das exigências de resolutividade, tornando-se o elemento
mediador entre eles, ou seja, o sujeito do cuidado e os demais profissionais.
Nesse sentido, é notória a necessidade de explicitar a política institucional,
como instrumento de sustentação e orientação das ações diárias, não só da
enfermagem, mas de todos os profissionais, indistintamente.
A informalização do processo avaliativo é explicitada nas seguintes falas:
Por exemplo, o projeto de avaliação dos funcionários, que eu achei
excelente e que a gente discutiu tanto. Foi implementado em algumas
unidades e acabou, a unidade que fez, fez e a que não fez, muito bem.
Não existe prazos determinados (Ametista).
eu até tentei, quando assumi a chefia, solicitar que eles avaliassem,
durante as reuniões. Mas acho que eles não têm maturidade para fazer
isto. "Ah! Está bom". Não é realizada uma avaliação, com pontos
positivos e negativos, juntamente com sugestões (Diamante).
O exposto até aqui consolida-se por meio do mesmo aspecto encontrado no
relatório do VTM, Hospital 2(3:46), mostrando a
importância de se estabelecerem mecanismos permanentes e eficientes
de avaliação dos trabalhos realizados e dos processos relacionais do
grupo, possibilitando a busca constante de aprimoramento pessoal e
profissional. Trata-se de tornar vivos os instrumentos de avaliação
[...], tornando-os não como mecanismos de controle e fiscalização,
mas como momentos de reflexão madura dos processos organizacionais.
No transcorrer de muitas das ações desenvolvidas pela enfermagem e por outras
profissões do setor saúde, não se estabelecem projetos de avaliação das mesmas,
gerando desconhecimento do desempenho alcançado. A ausência de "feedback" seja
da clientela ou da equipe, impede que as gerenciadoras do processo de trabalho
em enfermagem possam, realmente, avaliar a sua gestão.
A avaliação, não no sentido de rigidez e inflexibilidade, mas de compreensão e
possibilidades de aprendizagem na perspectiva de mudança e transformação,
assume um caráter diagnóstico e, por conseqüência, provoca a necessidade de
retroalimentação. Por isso, não pode ser feita em um momento apenas, é um
processo que atravessa todas as dimensões do trabalho de enfermagem, é um
processo crítico, reflexivo, devendo ser realizado planejada e regularmente.
4 Considerações finais
Ficou evidente, ao longo do trabalho, que a formação acadêmica e profissional
não instrumentaliza suficientemente as enfermeiras para o gerenciamento das
relações interpessoais no processo de trabalho. A ênfase na área burocrática do
gerenciamento, as dificuldades em lidar com a equipe e a pouca articulação do
referencial teórico com a prática, ou mesmo a inexistência dele, podem ser
grandes obstáculos à enfermeira no desenvolvimento de uma de suas principais
atribuições - o gerenciamento do trabalho dos profissionais da enfermagem.
A esta falta de preparo, pode também ser adicionada a não apropriação desta
atribuição, fazendo parecer que o problema está além de suas possibilidades,
como se as questões de comando e, por isso, de controle, ou mesmo o exercício
da autoridade, não lhe fossem próprias.
As enfermeiras, ao tentarem estabelecer uma relação coerente com as situações
cotidianas de sua prática, ao mesmo tempo em que buscam também uma coerência
com as normas institucionais, vêem-se, muitas vezes, reduzidas ao seu micro
ambiente, enfrentando, de forma isolada e solitária, a problemática do dia a
dia. Assim, a enfermeira imerge na sua prática individual, na problemática do
seu local de trabalho, estabelecendo estratégias de atuação muitas vezes
inadequadas, criando caminhos para gerenciamentos personalistas, posturas
autocráticas ou permissivas em excesso, que geram dificuldades de
relacionamento no grupo.
Para que as relações interpessoais e grupais estabelecidas no processo de
trabalho da enfermagem assumam o caráter profissional, diminuindo os traumas e
as inadequações, também é necessário que todos os envolvidos reconheçam a
complexidade e o caráter processual, sistêmico e evolutivo dessas relações.
Quanto à enfermeira, por seu papel desenvolvido frente ao gerenciamento, não só
de recursos materiais e estruturais, mas também das relações interpessoais no
interior das instituições de saúde, faz-se mister que busque, incessantemente,
atualizar-se e instrumentalizar-se, no sentido de desenvolver competências
necessárias para que ocupe, definitivamente, o lugar de destaque e o espaço
ainda existente no campo da intersubjetividade.
Conduzida cada vez mais por objetivos globais, a enfermeira deve estar atenta
aos aspectos importantes que se interligam no gerenciamento das relações
interpessoais no trabalho e, de um modo amplo, da gestão de pessoas. Pensar
neste gerenciamento é pensar que não existem fórmulas, já que o complexo
contexto relacional exige o entendimento de que se trata de relações com
pessoas, com todas as suas particularidades e generalidades.
Desenvolver estas competências exige um grande investimento da enfermeira, pois
implica na revisão de vários conceitos e práticas amplamente utilizadas na área
da saúde. Implica, também na apreensão de novas tecnologias e principalmente,
no estabelecimento de parcerias, em que seja oportunizado exercitar o diálogo
no interior das instituições, no sentido de permitir a explicitação de
dificuldades e expectativas e que as mesmas sejam negociadas, de forma a
satisfazer os três grandes envolvidos, ou seja, a instituição, os trabalhadores
e os sujeitos que são atendidos.
É importante também pensar na responsabilidade dos cursos de graduação, na
representação de docentes e discentes, em favorecer um aprofundamento da
questão relacional como uma das atribuições da enfermeira na liderança de uma
equipe de trabalho, o que exige um conhecimento adequado, muitas vezes não
priorizado durante a formação, e, também posteriormente, como profissional.