A enfermagem e o Programa Saúde da Família: uma parceria de sucesso?
PESQUISA
A enfermagem e o Programa Saúde da Família: uma parceria de sucesso?
Nursing and the Family Health Program: a successful partnership?
La enfermería y el Programa Salud de la familia: ¿una cooperación de éxito?
Dalvani MarquesI;Eliete Maria SilvaII
IEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Servidora da Prefeitura Municipal de
Campinas. E-mail do autor: dmarques@dglnet.com.br
IIEnfermeira. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem da FCM -
UNICAMP.
1 Introdução
O Programa Saúde da Família (PSF) tem sido amplamente discutido atualmente,
principalmente como estratégia do Ministério da Saúde (MS) para reorganizar a
atenção básica à saúde no Brasil. Sendo considerado "a principal estratégia
para solucionar os males da saúde pública seja no universo político-partidário,
das corporações profissionais da saúde, no setor de formação em saúde e na
própria sociedade"(1:98).
O PSF iniciou-se no país em 1994, tendo como um de seus objetivos ampliar a
atuação do Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS) iniciado em 1991,
construindo uma parceria de trabalho na qual um programa interagiria com o
outro, facilitando e complementando sua atuação.
O PSF é uma estratégia do MS, "que prioriza as ações de promoção, proteção e
recuperação da saúde dos indivíduos e da família, do recém-nascido ao idoso,
sadios ou doentes, de forma integral e contínua"; cujo objetivo é a
reorganização da prática assistencial em substituição ao modelo tradicional de
assistência, orientado para a cura de doenças e realizado principalmente em
hospitais(2).
Através do PSF o MS pretende priorizar a atenção básica, reorganizando-a e
revertendo a forma atual de prestação de assistência à saúde. Ainda é
predominante no país o modelo assistencial caracterizado "pela prática
hospitalocêntrica"eindividualizada, pela utilização irracional dos recursos
tecnológicos disponíveis e pela baixa resolutividade, gerando alto grau de
insatisfação para todos os participantes do processo - gestores, profissionais
de saúde e população que utiliza os serviços(3).
Desta forma, propõe-se uma mudança no paradigma da saúde, não mais centrada na
assistência à doença, mas, sobretudo na promoção da qualidade de vida e
intervenção nos fatores que a colocam em risco, gerando novas práticas e
afirmando a indissociabilidade entre os trabalhos clínicos e a promoção à saúde
(3).
Segundo o MS, cada equipe de saúde da família (ESF) deve minimamente, conter um
enfermeiro, um auxiliar de enfermagem, um médico de família ou generalista e
quatro a seis ACS. Ao discutirmos a enfermagem no PSF, estamos tratando de no
mínimo 23920 profissionais de enfermagem, entre enfermeiros e auxiliares de
enfermagem, considerando que no Brasil, em fevereiro de 2003, existiam 16920
ESF segundo o MS.
O PSF se constitui em um importante mercado de trabalho para os profissionais
de enfermagem no país. A atuação da enfermagem na saúde da família vem se
consolidando na prática e na experiência adquirida pelos profissionais de saúde
na saúde coletiva, construindo ao longo dos últimos anos o Sistema Único de
Saúde (SUS).
Este estudo pretende analisar o trabalho desenvolvido pela enfermagem no PSF em
Campinas, uma cidade do interior do estado de São Paulo, com aproximadamente
970 mil habitantes, colaborando assim com a discussão da proposta do PSF em
grandes centros urbanos.
2 A Enfermagem enquanto trabalho
Ao considerar a enfermagem enquanto trabalho, estamos reconhecendo-a como uma
prática social que se relaciona com outros trabalhos na saúde, completando-os,
em resposta às demandas sociais, em um contexto histórico e social. Esta
perspectiva teórica iniciou-se nos anos 80 e tem uma produção científica
significativa com algumas referências clássicas(4).
Ao se optar pela enfermagem enquanto trabalho, como parte do trabalho coletivo
em saúde, "compreende-se as práticas em saúde articuladas ao modo de produção,
às políticas sociais, parte de um processo de trabalho histórico, coletivo,
organizado socialmente para atender aos carecimentos sociais"(7:24).
O trabalho é entendido então como um processo dinâmico, que se articula com os
outros trabalhos da sociedade e que se transforma no atendimento das
necessidades sociais(8:27).
A enfermagem, como todos os trabalhos humanos, também foi e tem sido
influenciada pelas inovações tecnológicas, o que tem favorecido sua
especialização, fragmentando seu saber. Isto tem feito com que a enfermagem se
distanciasse do seu objeto de trabalho, o homem, tanto no âmbito da assistência
individual quanto na assistência coletiva. Fragmentando seu saber a enfermagem
perdeu a noção do todo, do ser humano integral, inserido numa família, numa
comunidade(9).
...o desenvolvimento das disciplinas das ciências não só trouxeram as vantagens
da divisão do trabalho, mas também os inconvenientes da superespecialização, do
confinamento e do despedaçamento do saber não só produzindo o conhecimento e a
elucidação, mas também a ignorância e a cegueira(9:15).
No trabalho em equipe proposto pelo PSF, tanto a enfermagem como os outros
trabalhos têm uma grande oportunidade de recuperar a visão da totalidade do
trabalho, considerando que o trabalho em saúde é um trabalho coletivo.
Segundo Pires, o trabalho na saúde é coletivo pela assistência prestada ser
parcelada em diversas atividades e exercida por vários profissionais da saúde
(10).
A proposta do MS para o PSF propõe o trabalho em equipe multiprofissional,
baseado na interdisciplinaridade, permitindo uma diversidade maior de ações,
propiciando uma nova concepção de trabalho.
O trabalho em equipe multiprofissional é conceituado como uma modalidade de
trabalho coletivo que se configura na relação recíproca entre as múltiplas
intervenções técnicas e a interação dos agentes de diferentes áreas
profissionais, sendo a comunicação, o meio de articular as ações e facilitar a
cooperação na equipe(11).
A construção de um trabalho em equipe que propicie uma nova concepção de
trabalho, pressupõe a recomposição de diferentes processos de trabalho como
aponta Peduzzi, que favoreça a flexibilização do trabalho, preservando as
diferenças técnicas entre os trabalhos realizados, discutindo a desigualdade na
valoração dos distintos trabalhos e agentes, bem como nos processos decisórios
nos serviços prestados à população e considerando a interdependência dos
trabalhos especializados no exercício da autonomia técnica. Assim,
tal construção ocorre a medida em que os profissionais tomem a comunicação
entre eles como dimensão intrínseca ao trabalho, considerando efetivamente a
prática dos demais como interdependente e complementar a sua e a negociação
como via de acesso a um projeto comum de trabalho(12:145).
A enfermagem no PSF para construir um trabalho em equipe em uma nova concepção
do processo de trabalho, necessariamente enfrenta dois pontos, um "interno",
visto que já se constitui em um trabalho em equipe pela própria divisão do
trabalho, e outro "externo" como parte de um trabalho coletivo.
As relações que se estabelecem na divisão do trabalho da enfermagem precisam
como disseram as autoras anteriores, serem negociadas através de uma
comunicação entre os sujeitos, possibilitando que se construa um projeto em
comum para a enfermagem, definindo a finalidade deste trabalho, entendendo que
as atividades dos trabalhadores da enfermagem são complementares e
interdependentes.
Assim, poderemos interagir junto com outros trabalhos, rompendo a lógica do
modelo tradicional hospitalocêntrico e médico-centrado, participando da
construção de um novo modelo assistencial e recuperando a visão da totalidade
do trabalho em saúde.
O trabalho desenvolvido pela enfermagem no PSF é recente, constituindo-se em
tema cuja produção científica ainda é limitada. Ao analisarmos a enfermagem no
PSF em Campinas, estamos contribuindo para a discussão deste trabalho
desenvolvido por milhares de enfermeiras e auxiliares de enfermagem no país.
Entendendo a enfermagem como trabalho, uma prática social inserida em um
trabalho coletivo em saúde, de uma equipe em um contexto histórico, pretendemos
neste estudo analisar o trabalho da enfermagem no PSF em Campinas, no período
de 1998 a 2002.
3 A implantação do PSF em Campinas
As discussões para a implantação do PSF em Campinas iniciaram-se em 1995, sendo
que no período de 1995 a 1997, iniciou-se de forma irrisória. A partir de 1998,
foram implantadas três ESF, que até 2000, desenvolveram suas ações de maneira
diversificada, de acordo com a estrutura física e os recursos humanos que
dispunham(13).
As equipes de enfermagem das primeiras ESF desenvolveram atividades variadas,
enfrentando dificuldades e facilidades próprias à realidade em que estavam
envolvidas. De 1998 a 2000, construíram seu trabalho com as comunidades em que
atuavam, sendo as únicas ESF em uma rede básica de saúde constituída por
centros de saúde(13).
A partir de 2001, foi implantado em Campinas o projeto Paidéia/PSF, visando uma
mudança do modelo assistencial, sendo implantado novas ESF(14).
Ao final de 2002, Campinas contava com a atuação de 116 ESF e 500 ACS, atuando
em dois tipos de ESF: a chamada clássica, com um enfermeiro, três a cinco
auxiliares de enfermagem, quatro ACS e um médico-generalista; ou a ampliada,
que poderá contar com outros profissionais, principalmente médicos das
especialidades básicas como pediatria, clínica geral ou ginecologia-
obstetrícia. A ESF clássica atende uma população de até 4500 pessoas, enquanto
que a ESF ampliada atende 7000 pessoas.
4 Metodologia utilizada
Neste estudo trabalhamos com os trabalhadores de saúde da família das três
primeiras ESF, Campina Grande, Lisa/Maracanã e Vida Nova, que atuaram em
Campinas no período de 1998 a 2000, por entendermos que esses sujeitos foram
fundamentais para analisarmos o trabalho da enfermagem.
Os sujeitos que participaram deste estudo, foram selecionados através de dois
critérios: - terem atuado nas ESF, ou coordenado, ou supervisionado as equipes
no período de 1998 a 2000; e, - estarem atuando na Secretaria Municipal de
Saúde de Campinas, no momento da coleta de dados.
Realizamos entrevistas individuais semi-estruturadas, utilizando como recurso
um roteiro estabelecido e um gravador com dez trabalhadores de saúde. Para cada
entrevistado foi solicitado seu consentimento livre e esclarecido.
O que torna a entrevista instrumento privilegiado de coleta de dados é a
possibilidade de a fala ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de
valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles) e ao mesmo tempo ter a
magia de transmitir, através de um porta-voz, as representações de grupos
determinados, em condições históricas, sócio-econômicas e culturais específicas
(15:109).
Ao optarmos por este instrumento de coleta de dados estamos entendendo a
palavra como símbolo de comunicação, e considerando a vivência e a experiência
dos entrevistados, os atores sociais, como fonte importante de dados.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa da Faculdade de
Ciências Médicas da UNICAMP, no mês de maio de 2002, parecer n. 214/2002, em
conformidade Resolução CNS 196/96. Como também autorizado pelo secretário de
saúde de Campinas, ofício n. 437/02/SMS/Gabinete.
Para a análise das entrevistas optamos pela Análise Temática, que "consiste em
descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença, ou
freqüência de aparição podem significar alguma coisa para o objeto analítico
escolhido"(16:105).
A análise temática operacionaliza-se em três etapas: a pré-análise; a
exploração do material; o tratamento dos resultados obtidos e a interpretação
(15).
Para facilitar a exploração do material identificamos cada um com seu nome
fictício, na nossa opção, nomes de árvores frutíferas como abacateiro,
amoreira, cajueiro, caramboleira, goiabeira, jabuticabeira, jaqueira,
laranjeira, macieira e mangueira.
Do material explorado, agrupamos os núcleos de sentido em dois temas: o
trabalho da enfermagem e o trabalho em equipe, que discutiremos a seguir.
5 Colhendo frutos - os resultados
Utilizaremos o termo "PSF antigo" para referenciar o período de 1995 a 2000,
diferenciando do termo "PSF" usado para designar o modelo assistencial em
discussão. Já para o modelo do PSF atualmente em implantação em Campinas,
manteremos o termo "Paidéia/PSF".
O PSF em Campinas iniciou-se em 1995, mas nos primeiros anos até 1997, não teve
sua implantação efetivada, este período caracterizou-se pela idéia e os debates
da implantação do PSF no município. A enfermagem teve uma atuação limitada
nesse momento, ocorreram muitas trocas e saídas de profissionais das equipes,
todos, gestores, coordenadores, supervisores, trabalhadores e a população
estavam interando-se da nova proposta.
A partir de 1998, com a implantação das primeiras três ESF, o PSF começa a se
conformar no município, tendo uma atuação limitada as populações atendidas por
estas equipes. Em Campinas existia uma rede básica de saúde constituída por
centros de saúde.
De 1998 a 2000, destacaram-se as ações desenvolvidas pelas primeiras três ESF,
que mesmo com suas atuações de forma focalizada e restrita, experimentaram,
vivenciaram e construíram junto à sua população a saúde da família.
A enfermagem nesse período, constituiu as ESF desenvolvendo seu trabalho de
acordo com suas competências, construindo um trabalho voltado junto e para a
comunidade, tornando-se referência para sua população adscrita.
Cada ESF desenvolveu sua atuação de acordo com os recursos humanos e estrutura
física que tinham. Neste período, cada ESF deveria atender até 1500 pessoas,
contavam com um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem e um médico-
generalista. Os ACS só foram incorporados as ESF a partir de 2001 com a
implantação do projeto Paidéia/PSF.
As principais atividades desenvolvidas por estas equipes foram:
- cadastramento de sua população adscrita,
- levantamento do perfil epidemiológico e planejamento das ações,
- consultas médicas e de enfermagem para gestantes, hipertensos, diabéticos,
acompanhamento de puericultura, desnutridos, coleta de citologia oncótica;
- atendimento da demanda espontânea;
- agendamento de exames complementares ou de especialidades médicas;
- coleta de exames laboratoriais;
- atividades de enfermagem, tais como: grupos gestantes, desnutridos,
orientação de verminoses, imunização, dispensação e administração de
medicamentos, inalações, desinfecção e preparo de materiais para esterilização;
- visitas domiciliárias e consultas médicas ou de enfermagem a pacientes
acamados, realização de curativos, troca e acompanhamento de sonda vesical de
demora e outros;
- busca ativa de crianças menores de cinco anos com atraso na carteira vacinal,
e outros;
- reuniões intersetoriais com a comunidade, as instituições governamentais e
não-governamentais que atuavam no local, para discussão sobre os problemas
sociais, de meio ambiente e saúde, com a proposta de ações em conjunto para os
problemas definidos;
- atividades intersetoriais como palestras nas creches e escolas sobre dengue,
hepatite, higiene pessoal e coletiva, lixo nas ruas, DST/AIDS, sexualidade e
planejamento familiar, entre outras.
A partir de 2001, com a implantação do projeto Paidéia/PSF, as equipes locais
da rede básica de saúde de Campinas foram interando-se do projeto e redefinindo
seus processos de trabalho, alocando-se em ESF clássicas ou ampliadas, de
acordo com a necessidade da área de cobertura de cada centro de saúde. As
equipes "antigas" do PSF passaram a integrar este novo projeto.
De 2001 a 2002, a enfermagem teve modificado seu trabalho tanto pela inclusão
de outros profissionais as ESF, como os ACS e os médicos, quanto pela
readequação do processo de trabalho instituído pelas novas demandas. Destacamos
que até 2000, as ESF atendiam uma população de 1500 pessoas, com a implantação
do Paidéia/PSF, passaram a atender de 3500 a 7000 pessoas.
Sendo a implantação do Paidéia/PSF recente, optamos por apresentar as
atividades desenvolvidas e o processo de trabalho da enfermagem articulando os
dois períodos nos próximos tópicos, sendo que os depoimentos dos entrevistados
retratam o processo de construção de um novo modelo da atenção à saúde.
6 O trabalho da Enfermagem
O trabalho da enfermagem no PSF em Campinas se confunde com o próprio trabalho
do PSF visto, que a maioria das ESF, até o ano de 2000, eram compostas
basicamente por trabalhadores de enfermagem, predominantemente por auxiliares
de enfermagem.
Acho que assim, até não era nem como era o trabalho da equipe de enfermagem,
era como era o trabalho do PSF, porque ele era a equipe de enfermagem, né? O
médico nunca existiu tanto e não era nem só no módulo que eu ficava lá! Era nos
outros também. Médico sempre, às vezes tinha, às vezes não tinha, às vezes
ajudava, às vezes atrapalhava(Laranjeira).
A enfermagem por ser a ESF no PSF antigo, tendo uma população adscrita sob sua
responsabilidade, tornou-se referência para sua comunidade, desenvolvendo um
trabalho centrado no usuário, com um olhar para a comunidade.
É a gente no programa saúde da família, a gente fazia as visitas aquelas
famílias que foram consideradas de risco né? Não era todas as famílias que a
gente trabalhava né? Então tinha um cadastro já feito e a gente tinha aquelas
famílias que a gente acompanhava, né, ia na casa, tinha o pessoal da
assistência social, e eles passavam com a gente, a gente ia visita junto né?
(Amoreira).
As atividades desenvolvidas eram as ações de saúde coletiva como visitas
domiciliárias, atendimentos individuais de puericultura, pré-natal, saúde da
mulher, incluindo a coleta de citologia oncótica, atendimentos coletivos como
grupos de hipertensos, gestantes, idosos, acompanhamento de crianças
desnutridas, vacinação, curativos e outros procedimentos de enfermagem, além de
ações intersetoriais em parceria com a educação e a promoção social.
O trabalho que eu faço é o mesmo (antes e depois do Paidéia/PSF), eu sempre
fiquei na puericultura, vacina, no AE adulto, eu sempre fiquei mais nessa
parte, e, mas faço de tudo também, tô na recepção, tô no expurgo, só no CO que
eu não sou muito fã, só quando sou obrigada mesmo, aí eu vou pro CO. A gente tá
pensando em voltar a fazer grupos novamente(Mangueira).
Ao analisarmos o trabalho da enfermagem não devemos focar nossa atenção às
ações realizadas, mas à finalidade do trabalho, quais os interesses em jogo,
como o processo de trabalho se organiza.
Quanto à essência do trabalho, a enfermagem tem se voltado para o cuidado,
principalmente o aspecto educativo do cuidado, tanto o auxiliar de enfermagem
quanto a enfermeira, que também cuida da administração do trabalho:
[...] a enfermagem tem um valor muito grande no aspecto administrativo e
realmente tem feito muito, mas tá deixando, tem deixado muito de lado o
potencial que o PSF defende do aspecto educativo, do atendimento de enfermagem,
de tá orientando [...](Goiabeira).
[...] a gente trabalhando sozinha, a gente trabalha mais pra fora [...] então
acho que é um facilitador, se sai pra fora [...](Laranjeira).
Atualmente, no Paidéia/PSF, existem algumas diferenças, tais como, o trabalho
está centrado na unidade básica de saúde e a enfermeira ainda exerce
predominantemente o papel administrativo, esforços estão sendo feitos para
mudar esta prática, que é processual.
[...] a gente sabia que a demanda de médico dentro da unidade ia acabar nisso,
né? Acaba concentrando o paciente aqui dentro!(Jabuticaba)
Estes depoimentos parecem indicar que no PSF antigo, pelas ESF serem compostas
essencialmente pela enfermagem, a lógica do trabalho voltava-se para a
comunidade e suas necessidades, enquanto que no Paidéia/PSF, com a presença do
médico nas equipes, o trabalho da enfermagem torna-se complementar ao trabalho
médico, ficando mais limitado aos encadeamentos deste trabalho.
Uma dificuldade da enfermagem no Paidéia/PSF é a sobrecarga de trabalho pela
demanda e pela equipe desfalcada, o que tem gerado desmotivação para a equipe e
insatisfação com o trabalho.
[...] de uma maneira em geral a equipe de enfermagem tá trabalhando demais, tá
muito, muito! Então é uma sobrecarga de trabalho muito grande, uma cobrança
muito grande e que você tem que fazer,você tem que e não está dando conta de
fazer. E isso gera a insatisfação, gera frustração, os LTS, é verdade!
(Jaqueira).
Sabe é como eu falo pra você, a demanda é muito grande, não acho que eles vão
trabalhar assim, como a gente fazia lá. Eu acho que era melhor, lá no módulo
(Caramboleira).
O auxiliar de enfermagem desenvolve, no momento, as atividades que desenvolvia
anteriormente, com uma limitação, principalmente, na freqüência das visitas
domiciliárias, pela sobrecarga de trabalho dentro da unidade básica de saúde.
Como qualquer auxiliar de qualquer posto! A mesma coisa, né? A gente não
consegue fazer o trabalho de sair, é diferente, né? Você acaba sendo engolido
pelo CS [...](Jabuticabeira).
As enfermeiras retratam uma mudança no trabalho entre o PSF antigo e o Paidéia/
PSF, os seus depoimentos indicam que a atuação na modalidade anterior permitia
mais contato com as famílias, em uma dimensão mais assistencial.
eu tinha maior contato com as famílias que a gente trabalhava, tinha um
conhecimento maior da família, talvez, por estar no módulo mais próximo. Então,
tinha mais contato mesmo, tinha mais, assim, é, uma atuação de enfermeira, de
prevenção, de conversar, de fazer grupos, sabe!(Jaqueira).
No Paidéia/PSF, a dimensão administrativa do trabalho das enfermeiras destaca-
se, relacionando-se com o processo de trabalho em que estão inseridas. Os
centros de saúde comportam mais de uma ESF, mas como o horário de atendimento
da unidade é amplo, normalmente das 7 às 19, 21 ou 22 horas, perfazendo de 12 a
15 horas diárias de atendimento, as enfermeiras das ESF estão divididas para
cobrir todo horário de atendimento, assim, normalmente há somente uma
enfermeira na unidade, sendo responsável pelo atendimento da equipe de
enfermagem, independente dos auxiliares de enfermagem disponíveis, fazerem
parte de sua ESF ou não.
É, eu faço de tudo, né, a gente coordena a equipe, o trabalho, faz o papel de
tudo, de administrativo, de auxiliar, de enfermeira, faço tudo, faço tudo. A
enfermeira, no meu caso, faço o pré-natal, todos os procedimentos de
enfermagem, a gente faz, o que mais? Papel de administrativo, o consolidado dos
atendimentos, mesmo que se daí eles não pedem pra gente, mais eu tenho que ter
o meu pra ter controle como está saindo nosso trabalho, eu tenho feito
(Macieira).
A gente aqui é 37 mil habitantes, né, por mais que a gente esteja dividida em
equipe, né! Quando você está aqui no centro de saúde, você vai acolher, daí é
você (Amoreira).
No PSF antigo pela própria característica da equipe, do tamanho da população
adscrita, o enfermeiro teve uma ação mais assistencial, mas no momento, no
Paidéia/PSF, por ainda estarmos em transição para o modelo PSF, o enfermeiro
tem o seu trabalho centrado na gerência do cuidado e da unidade básica de saúde
o enfermeiro exerce ações de cuidado direto e, sobretudo, cuida de quem cuida
(17).
A enfermagem reflete sua insatisfação com o trabalho que está ocorrendo no
momento, referindo além da sobrecarga de trabalho, a questão salarial, não tá
vendo o retorno financeiro necessário pra isso (Jaqueira), o salário é muito
pouco pra enfermagem (Macieira).
A realização das pessoas depende também das recompensas financeiras que recebem
em troca do trabalho realizado(18:237). A noção de satisfação é social e
histórica, sendo sempre redefinida. Novos processos de trabalhos requerem
posturas diferentes dos trabalhadores, redefinindo sua relação com seu
trabalho, assim, questões como o salário e a sobrecarga, precisam ser
discutidas, avaliadas e resolvidas.
Para discutir a reordenação do processo de trabalho tanto para a enfermagem
como para os outros trabalhos em saúde, precisamos analisar o trabalho em
equipe, visto que na saúde o trabalho é coletivo.
7 O trabalho em equipe
A enfermagem se constitui em um trabalho em equipe, pela própria divisão do
trabalho, assim a equipe de enfermagem precisa, no PSF, integrar-se aos outros
trabalhadores, constituindo uma equipe multiprofissional. Tal fato não é
especificidade do programa, mas ao mesmo tempo é uma necessidade para que a
proposta se efetive na perspectiva da mudança do modelo assistencial.
A multiprofissionalidade precisa ser entendida em duas dimensões, a dimensão
objetiva e material da organização dos procedimentos dispostos de acordo com
uma dada racionalidade dominante nas práticas de saúde, e a dimensão subjetiva
da referida organização que diz respeito à formulação dos projetos de ação
pautados nas práticas e nos saberes pertencentes a cada trabalhador(19).
Para construir um trabalho em equipe multiprofissional, que, realmente, promova
uma reordenação do processo de trabalho, precisamos de uma equipe integrada, ou
seja, que articule as ações executadas pelos trabalhadores da equipe através da
comunicação e da inter-relação desses(11).
No trabalho em equipe, os diversos trabalhos que constituem o trabalho coletivo
em saúde, interagem-se, complementando-se, como cita o trecho a seguir:
...acho que tem um valor enorme o trabalho da equipe multidisciplinar. Visões
diferentes, por exemplo, o médico tem formação muito curta em administração e
educação, o pessoal da enfermagem já tem uma boa formação em educação e
administração, então se complementa, né? São propostas, assim, profissões que
se complementam. Então, você tem uma atenção à saúde mais rica, mais eficiente!
(Goiabeira).
Existem duas modalidades de trabalho em equipe: a equipe agrupamento, onde
ocorre a justaposição das ações e os agentes se agrupam, e, a equipe
integração, onde as ações se articulam e os agentes se interagem(11). Pela
própria organização parcelar do trabalho em saúde, sempre existirá uma equipe
multiprofissional, quer seja na modalidade de agrupamento ou integração.
Destacamos dois pontos encontrados sobre o trabalho em equipe neste estudo, a
equipe multiprofissional em construção e a fragmentação do trabalho.
O PSF pressupõe um trabalho em equipe multiprofissional, facilitando este
processo de construção de uma equipe integração, como relatou Macieira: [...] é
um trabalho em conjunto, a gente procura é, ter o mesmo objetivo, então a gente
procura trabalhar na mesma linha. A gente procura trabalhar junto com a equipe,
não é um trabalho individual.
A ESF ao trabalhar com uma população adscrita, tem definida sua
responsabilidade sobre os resultados do trabalho coletivo desenvolvidos, mesmo
mantendo a divisão de trabalho entre o enfermeiro, os auxiliares de enfermagem,
os ACS e o médico.
O trabalho em equipe não pressupõe qualquer idéia de apagamento das diferenças
de papéis ou de funções entre os trabalhadores, numa espécie de reedição
delirante da utopia maoísta de que todos deveriam fazer um pouco de tudo, como
se por essa via fossem apagados a separação e o conflito entre trabalho manual
e intelectual(20:158).
A idéia no trabalho em equipe é que todos são responsáveis pelo trabalho
coletivo, socializando o direito de opinião sobre a organização do serviço e de
participação na gerência, inclusive elaborando o planejamento das ações. Assim
as ações desenvolvidas seriam de responsabilidade coletiva, como exemplo a
cobertura de vacinação em crianças menores de cinco anos ou a atenção aos
hipertensos. Os médicos teriam de conhecer e opinar sobre as tarefas da
enfermagem, e esta sobre o envolvimento e desempenho deles(20:159).
Ainda estamos construindo o trabalho em equipe integrado. Mudar o modelo
assistencial requer um novo processo de trabalho, o que não é coisa simples por
requerer mudanças nos interesses e nas "cabeças".
Multiprofissional era bastante conturbada, por conta que a gente tinha um
auxiliar que tinha um pouco mais de vivencia em saúde publica, médico que tinha
pouco conhecimento em saúde pública, os que tinham o conhecimento em saúde
pública um pouquinho maior, eles conseguiam alavancar mais o trabalho,
conseguiam fazer um processo de capacitação da equipe...tinha um pouco mais de
facilidade pra agregar a equipe, pra desenvolver a equipe de forma mais
homogênea. Todo mundo construindo, fazendo um processo mais participativo.
Diferente em outra equipe onde o médico tinha uma coisa muito centrada nele,
ele fazia, ele se colocava muito como o dono do conhecimento então isso
dificultava bastante o trabalho da equipe. Agora, isso foi um processo, que foi
na verdade, ele foi aprimorando, todo mundo foi aprendendo com esse processo
(Cajueiro).
Para trabalhar em equipe precisamos entender que mesmo sendo trabalhadores, com
núcleos de competência e responsabilidade definidos, somos sujeitos de um
trabalho coletivo, atuando no campo da Saúde Coletiva, no PSF.
Entendemos núcleo como "o conjunto de saberes e de responsabilidades
específicos de cada profissão ou especialidade, e por campo, os saberes e
responsabilidades comuns ou confluentes a várias profissões ou especialidades"
(18:259).
Um desafio para o trabalho em equipe integração é vencer a fragmentação do
trabalho. Os trabalhadores precisam integrar-se, articulando suas ações, para
isso, precisam ter claro em suas "cabeças" a finalidade de seu trabalho.
[...] tinha uma participação maior na verdade, hoje nós temos um espaço bom pra
discussão de casos, mas fica muito ainda no aspecto teórico da discussão, né?
Em vez, a deliberação de ações ainda está nas especialidades, por exemplo, se
hoje se discute alguns casos, mas assim quem vai ver é o médico? Não, é o
auxiliar de enfermagem. Não, é o enfermeiro. Então assim, dificilmente a gente
tem uma ação mais coletiva, junto, tal. Vamos juntos fazer alguma coisa, e eu
acho que é importante fazer alguma vez integrada as coisas[...](Goiabeira)
No PSF, a proposta de trabalhar com as famílias, com a comunidade, em uma área
definida e adscrita, facilita aos trabalhadores superarem essa fragmentação,
esse trabalho realizado em procedimentos. Passando a trabalhar com base nas
necessidades do usuário, da família, da comunidade. Como mostra as falas a
seguir:
[...] é um trabalho junto, o que difere no nosso trabalho é assim, procedimento
de enfermagem, é da enfermagem, médico é de médico, mas o que difere é isso,
mas é todo mundo trabalhando com o mesmo objetivo (Macieira).
Tanto no PSF como nos outros trabalhos em saúde, a construção do trabalho em
equipe ainda é um desafio. Constituir projetos comuns e compartilhados é a
busca do trabalho coletivo em saúde, respeitando e valorizando as competências
de cada trabalhador da equipe, para, com base nas diferenças e na pluralidade
das intervenções, contemplar mais ampla e apropriadamente as demandas de saúde
da população(17:15).
8 Considerações finais
O PSF é um modelo assistencial em construção, que precisa ser analisado e
avaliado para que efetivamente novas práticas se constituam, consolidando a
atenção básica no país.
A enfermagem tem sua história permeada pela implantação do PSF em Campinas, ao
analisarmos seu trabalho encontramos alguns fatos que merecem destaque. No PSF
antigo, a enfermagem (tanto a enfermeira como a auxiliar de enfermagem) tinha
uma atuação mais assistencial, cuidadora, voltada para fora da unidade,
centrada no usuário, na comunidade. Atualmente, no Paidéia/PSF o trabalho está
mais voltado para dentro da unidade, sendo mais focalizado nos procedimentos, a
enfermeira tem sua atuação limitada pela dinâmica da unidade, sendo
essencialmente gerencial, e a auxiliar de enfermagem teve sua atuação na
comunidade limitada, faz menos visitas domiciliárias, estando trabalhando
dentro da unidade, enfocando os procedimentos.
No PSF antigo, o processo de trabalho construído facilitou a aproximação da
enfermagem com o usuário e a comunidade, permitindo que entendessem o homem
inserido em um contexto histórico e social. Agora, como estamos em mudança nos
processos de trabalho, este entendimento não está claro, ainda atuamos a partir
da demanda que chega nas unidades e com o que os ACS identificam.
Uma ferramenta essencial para mudar o processo de trabalho é o trabalho
integrado e articulado da equipe multiprofissional, que também, está em
construção. O trabalho em equipe facilitaria a identificação do objeto de
trabalho na saúde coletiva, permitindo que os trabalhadores focalizem sua ação
para o homem e não para o procedimento em si.
Assim, "este modelo (PSF) pode trazer, em seu bojo, oportunidades ímpares para
o desenvolvimento destas mudanças no cuidado individual e na prática clínica"
(21:109).
Esperamos com este estudo ter colaborado com a discussão do trabalho de
enfermagem no PSF em Campinas e no país, afinal, discutir o PSF é discutir o
processo que vivenciamos de construção do Sistema Único de Saúde.
Nesse sentido, a enfermagem e o PSF, são uma parceria de sucesso que precisa
ser explorada e trabalhada, realizando-se outros estudos que permitam avaliar
essa produção de saberes e fazeres, tornando possível identificar a amplitude
do trabalho da enfermagem brasileira na saúde da família e na saúde pública.