AIDS e Diabetes Mellitus versus justiça distributiva no sistema público de
saúde
ENSAIO/ESSAY/ENSAYO
AIDS e Diabetes Mellitus versus justiça distributiva no sistema público de
saúde
AIDS and diabetes mellitus versus distributive justice in the public health
system
SIDA y Diabetes Mellitus versus Justicia Distributiva en el Sistema Público de
Salud
Silvia Lucia de Castro OliveiraI; Wilson Danilo Lunardi FilhoII
IPsicóloga Clínica. Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde da Cidade do Rio
Grande/RS. Mestre em Enfermagem, Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Saúde - NEPES/FURG
IIEnfermeiro. Professor Adjunto IV do Departamento de Enfermagem da Fundação
Universidade Federal do Rio Grande. Doutor em Enfermagem. Membro do Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Saúde - NEPES/FURG. Orientador
E-mail do autor: lunardifilho@terra.com.br
1 Introdução
Quando se correlacionam doenças crônicas e o sistema público de saúde, a
primeira idéia que circula, normalmente, é associada à escassez e a solução
parece estar ligada diretamente ao oferecimento de mais recursos. Essa
insuficiência é, de fato, muitas vezes, notória na avaliação das ações, porém,
há um outro aspecto, raramente comentado: a equidade na distribuição dos
recursos existentes.
Esta reflexão remete à ética da distribuição de recursos. A justiça
distributiva impõe que, "se algo deve ser distribuído, que a distribuição não
seja arbitrária, ela tem que ser justa"(1:140). Em outras palavras, requer
certa igualdade de tratamento, embora não haja uma forma universal de atribuí-
la. Por certo, depende das circunstâncias, mas, para ser justa, a repartição
deve garantir determinada proporcionalidade.
2 Ética e eqüidade na distribuição de recursos
Em termos de justiça formal, a referência maior é a Constituição Federal do
Brasil(2), que assegura como um dos direitos sociais básicos a saúde. O art.
196 - do Capítulo relativo à Saúde é específico, quando traz que "a saúde é
direito_de_todos_e_dever_do_Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso_universal_e_igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação(grifos nossos).
Analisar a distribuição dos recursos públicos em saúde é assunto complexo. Os
dados oficiais são apresentados de forma fragmentada, por relatórios de ações
isoladas. Normalmente, não estão atualizados. Por este motivo, ao buscarem-se
referências para este trabalho, obtivemos apenas algumas informações pontuais,
extraídas de fontes oficiais (notícias divulgadas pelo governo, em sites,
revistas ou jornais), comprovando que os números apresentados soltos de
referências perdem-se e são puro dado, num vácuo desligado do contexto de seu
endereço histórico e social. Os fragmentos da contabilidade oficial servem
apenas para vislumbrar a realidade, mas compreendê-la exige um exercício de
atenção e análise crítica.
Num primeiro olhar, os dados impressionam pela grandeza: cifras milionárias ou
até mesmo bilionárias ilustram as ações estatais. Números que não fazem parte
da realidade da vida cotidiana, valores que ultrapassam o imaginário e
dificultam a sua visualização. Raramente, é feita uma mínima correlação na
análise dos números apresentados.
Assim, é preciso decifrar, ou "des-cifrar", desconstituir as cifras, resgatando
dos números a humanidade aos quais se referem. A escrita enigmática da
contabilidade pública pode ser melhor avaliada ao estabelecerem-se parâmetros
que balizem a compreensão. É, neste sentido, que alinhavamos, aqui, algumas
idéias.
3 Des-cifrando os números da AIDS e do Diabetes
Buscando estabelecer algumas conexões, nossa proposta é a de refletir sobre
ações públicas que têm sido desenvolvidas em relação a duas grandes epidemias:
a Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (AIDS) e Diabetes mellitus.
Esta escolha não foi casual ou aleatória. As duas doenças estão relacionadas à
mudança do perfil epidemiológico do Brasil, ocorrida nas últimas quatro décadas
do século XX, em que as doenças infecciosas transmissíveis tiveram uma
progressiva queda na morbimortalidade, enquanto que as Doenças e Agravos Não
Transmissíveis (DANTs) sofreram elevação acentuada,conforme estudos da Fundação
Nacional de Saúde (FUNASA), publicados em seu site oficial(30. Essa "transição
epidemiológica", como a mudança é denominada, provocou repercussões que
necessitam ser consideradas no planejamento das ações de saúde.
Conforme dados do Ministério da Saúde(4), o número de casos de AIDS no Brasil é
de 277.141 pessoas (de 1980 a setembro de 2003). Cerca de 50% dessas pessoas já
foram a óbito.A estimativa, em 2000, era de que 600 mil pessoas estariam
vivendo com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) no Brasil, liderando o
ranking da epidemia em número absoluto de casos. Entretanto, na comparação do
número de casos pelo número de habitantes, o Brasil situava-se na 14a posição,
com 0,57% da população adulta contaminada.
Em relação ao Diabetes, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), 5
milhões de brasileiros têm a doença, o que coloca o País em 6º lugar no mundo
em casos dessa doença, mas esse número pode ser ainda maior, o que demonstra a
sua magnitude e importância. A OMS também divulga a previsão de que, em 2010, o
número de pessoas com Diabetes chegue a 11 milhões. Somente com a realização do
Estudo Multicêntrico sobre Prevalência de Diabetes Mellitus no Brasil5,
realizado no final da década de 80, em nove capitais brasileiras, passou a ser
conhecida a sua prevalência.
Foi constatado, então, que o coeficiente de prevalência no Brasil na população
urbana de 30 a 69 anos, era de 7,6%, magnitude semelhante a de países
desenvolvidos. Em relação ao sexo, a prevalência do Diabetes é semelhante para
homens e mulheres, aumentando consideravelmente com o progredir da idade. Dados
brasileiros mostram que a prevalência varia de 2,7% para o grupo etário de 30 a
39 anos, até 17,4% para o grupo etário de 60 a 69 anos(5).
A partir de 1996, o governo começou a distribuir gratuitamente a terapia anti-
retroviral de alta potência (High Active Antiretroviral Therapy). Conhecida
popularmente como "coquetel", a terapia é o esquema terapêutico composto por 2
Inibidores da Transcriptase Reversa - ITR (zidovudina - AZT) e 1 Inibidor de
Protease, que foi apresentado pelo Dr. David Ho, em 1996, na Conferência
Mundial de AIDS em Vancouver. A partir da sua distribuição, o crescimento da
epidemia estabilizou-se, numa média de 20 mil novos casos por ano, até 1999. Em
2000, houve indício de declínio, com o registro de 15 mil novos casos, com a
estimativa da existência de 600 mil pessoas entre 15 e 49 anos vivendo com o
HIV (coeficiente de prevalência de 0,65%)(6).
No primeiro semestre de 2001, confirmou-se a queda, embora os números só possam
ser considerados definitivos, após três anos de notificação. Atualmente, cerca
de 100 mil brasileiros recebem o tratamento gratuitamente. O decréscimo agudo
da letalidade é um dos indicadores mais efetivos da eficácia das ações de
tratamento desenvolvidas pelo governo brasileiro. No Brasil, a mortalidade por
AIDS teve uma queda de 50% e a qualidade de vida das pessoas portadoras do HIV
alcançou uma melhora significativa, como sinal da eficácia da política de
distribuição gratuita e universal dos anti-retrovirais(7).
Em relação ao Diabetes, a evolução foi inversa, tendo sido registrada acentuada
progressão na mortalidade: em 1998, era a 7ª causa de morte e, em 1999, passou
a ser a 6ª. Anualmente, mais de 25 mil pessoas morrem devido a esta doença. A
situação ainda é agravada pelo fato de que, segundo estatísticas do Ministério
da Saúde, 50% das pessoas não sabem que têm diabetes e 23% conhecem seu
diagnóstico, mas não fazem qualquer tipo de tratamento(6). Em relação às
principais causas de mortalidade no Estado do Rio Grande do Sul, estão as
doenças isquêmicas coronarianas, cérebro-vasculares e hipertensão arterial. É
importante observar que estas e outras doenças, por vezes, estão associadas ao
Diabetes, embora no registro de óbito conste apenas o nome de uma delas como a
causa imediata(8).
4 Recursos aplicados no tratamento da AIDS e do diabetes
No ano de 2000, a Coordenação Nacional de DST/AIDS, do Ministério da Saúde,
informou ter gasto 1 bilhão de reais no tratamento e prevenção do HIV/AIDS. O
compromisso do governo brasileiro em relação à AIDS destaca-se em nível
internacional, tendo chegado a destinar R$ 2,5 milhões para financiar projetos
de prevenção à AIDS e tratamento de portadores do HIV em países da África,
Ásia, América Latina e do Caribe.
O destaque da ação brasileira pode também ser avaliado diante do fato de que,
em 2002, 90% das 40 milhões de pessoas vivendo com HIV e AIDS viviam em países
em desenvolvimento e apenas 250 mil pessoas tinham acesso gratuito aos
medicamentos anti-retrovirais. No Brasil, os pacientes com HIV e AIDS recebem
todo o tratamento de que necessitam, havendo cerca de 100 mil brasileiros que
utilizam anti-retrovirais(7).
A prioridade do custeio das despesas com DST/AIDS é noticiada pelo Ministério
da Saúde, que informa que, no ano de 1998, seus_gastos_totais_com_saúde
sofreram_um_decréscimo_de_cerca_de_1%,_enquanto_os_gastos_com_DST/AIDS
apresentaram_um_crescimento_real_de_28,3%, comprometendo de 2,0% a 2,6% do
total gasto nos anos de 1997 e 1998, respectivamente(7).
A política de prioridade do atendimento aos doentes de AIDS, estabelecida por
Lei Federal, em 1996, que garantiu a medicação necessária a essas pessoas, tem
determinado que mais de 25% dos gastos do Ministério da Saúde destinados à
aquisição centralizada de medicamentos venham sendo absorvidos com medicamentos
para a AIDS, desde 1997(7).
A maior parcela dos gastos foi destinada ao tratamento: 73% (U$ 247,7 milhões),
em 1997, e 80,8% (U$ 352,3 milhões), em 1998. Os gastos com prevenção
representaram 13,2% e 9,6% do aplicado, respectivamente, em 1997 e 1998,
enquanto os gastos com o desenvolvimento institucional corresponderam a 12,4% e
9,3%. Por seu turno, os dispêndios com Vigilância Epidemiológica representaram
1,4% dos gastos, em 1997, e apenas 0,3%, em 1998.
Os gastos nacionais com DST/AIDS, incluindo estimativas sobre a participação de
estados, municípios, universidades, outros órgãos governamentais, empresas e
famílias, alcançaram o montante de U$ 634,3 milhões, em 1998, ou seja, o
equivalente a 0,07% do PIB e um per capita de U$ 4,05(8). Este cálculo per
capita, apresentado pela burocracia oficial, considera o montante gasto em
relação ao total da população brasileira, o que é um equívoco matemático. É
preciso atentar que estas despesas, especialmente as de natureza curativa, que
representam o maior gasto, destinaram-se a um universo inferior a 80 mil
pessoas que, naquele ano, utilizavam anti-retrovirais.
Buscando o significado dos números, na matemática humana que aqui propomos,
verificamos que, em 1998, o valor gasto em nível federal, exclusivamente com o
tratamento das pessoas com HIV/AIDS, foi de U$ 359.270.000,00 que, dividos por
80 mil pessoas que utilizaram o tratamento naquele ano, resulta em U$ 4.490,00
per capita(9). Para transformar o valor em moeda corrente nacional, que baliza
o cotidiano, convertemos esse valor pela cotação do dólar de 11 de junho de
2003, (R$ 2,853)(10), o que resulta no gasto de R$ 12.825,93 per capita/ano.
Os expressivos gastos com AIDS estão diretamente relacionados com os bons
resultados obtidos, como referido no Relatório de Pesquisa de Pio Marins e
colaboradores(11). Este relatório apresenta que as possíveis diferenças
existentes na sobrevivência causadas por diferença de sexo, situação
socioeconômica, idade e categorias de exposição foram anuladas, quando foi
garantido o mesmo acesso ao tratamento a todos. Textualmente, o relatório
conclui que
esse fato (o acesso ao tratamento anti-retroviral) é de grande
importância, pois demonstra que, independente dos fatores
socioeconômicos e culturais, o uso da terapêutica muda a história
natural da doença e proporciona maior eqüidade na sobrevivência dos
afetados(11:44)(grifos nossos).
Também é de salientar-se que esse fato traz uma outra evidência de grande
relevância para o nosso País e para outros países em desenvolvimento, pois a
maior parte dos nossos pacientes tem baixo nível de escolaridade e baixo nível
socioeconômico. Os resultados ora apresentados demonstram que essas
condições inadequadas vividas por pessoas afetadas pelo vírus não são
impedimentos para que se beneficiem do tratamento em iguais condições
àqueles que vivem de maneira mais favorecida(11:44)(grifos nossos).
Em relação ao Diabetes, a situação é exatamente oposta. O Diabetes é uma doença
que, hoje, tem recursos científicos e tecnológicos sofisticados para o seu
tratamento, mas esses avanços não estão democratizados pelo Sistema Único de
Saúde (SUS). Os pacientes do SUS são tratados como se fossem todos iguais:
recebem um kit básico de seringas (muitos municípios nem sequer as distribuem)
e insulina NPH (mista ou humana, dependendo unicamente de escolhas
burocráticas). O monitoramento glicêmico é disponibilizado descontinuamente nos
postos de saúde, não sendo oferecidos recursos para o controle domiciliar.
Todos estes aspectos colaboram para o surgimento de agravos, pois a condição de
pobreza contribui, negativamente, para a evolução da doença, como refere a
Declaração_das_Américas_Sobre_Diabetes (DOTA)(12), ratificada em julho de 1996.
Este é um documento firmado por vários países das Américas, entre os quais o
Brasil, que descreve um plano estratégico sobre Diabetes para as Américas e
representa também a coalizão das organizações que lutam pela implementação dos
objetivos enunciados.
Esta declaração registra que o Diabetes, especialmente quando inadequadamente
controlado, pode representar um pesado encargo econômico para o indivíduo e a
sociedade. A maior parte dos custos diretos do Diabetes relaciona-se com as
suas complicações que, muitas vezes, podem ser reduzidas, retardadas ou, em
certos casos, evitadas. Dependendo do país, as estimativas disponíveis indicam
que o Diabetes pode gerar de 5% a 14% das despesas de atenção à saúde. A
pobreza exerce efeito negativo sobre a atenção ao Diabetes, restringindo a
probabilidade de ser diagnosticado corretamente, a qualidade da educação
recebida, a adequação da atenção, a capacidade de pagar o tratamento e
agravando o risco de manifestar complicações graves.
ACampanha Nacional de Detecção de Suspeitos de Diabetes, executada pelo
Ministério da Saúde em março de 2001, realizou testes de glicemia capilar em
20,7 milhões de pessoas e identificou 3,2 milhões de casos suspeitos. Para a
campanha, o ministério gastou R$ 31 milhões, na compra de 30 mil glicosímetros
(medidores dos índices de glicose) e R$ 1 milhão, na capacitação de
profissionais de saúde para fazerem os exames(12). Buscando-se estabelecer
paradigmas matemáticos, dividimos o total do valor aplicado (R$ 32 milhões)
pelo número de pessoas que realizaram os exames ( 20,7 milhões). Verificamos
que a campanha de Diabetes teve um custo_de_R$_1,54 por pessoa (teste). A
campanha detectou 15,45 % de pessoas testadas suspeitas de diabetes.
Já com relação à hipertensão, condição que muitas vezes está combinada com o
Diabetes, o Ministério da Saúde realizou, em novembro de 2001, a Campanha
Nacional de Detecção de Hipertensão, quando foram feitos 11 milhões de exames e
identificados 4 milhões de suspeitos (36,3%). O Ministério comprou 34,5 mil
tensiômetros (aparelhos usados para medir a pressão arterial) ao custo total de
R$ 2 milhões. O valor investido corresponde a R$_0,18_por_pessoa/exame,
observando-se que os tensiômetros são equipamentos e que continuarão a ser
utilizados, reduzindo ainda mais sua relação custo-benefício(12).
"Além da prevenção, o Ministério investe forte no tratamento, distribuindo
gratuitamente os medicamentos necessários aos pacientes" (grifos nossos), diz a
nota oficial. O gasto previsto, em 2001, foi de R$ 63,2_milhões com
medicamentos para Diabetes e R$_100_milhões com remédios para Hipertensão. O
valor previsto para o gasto anual (R$ 63,2 milhões) dilui-se, quando analisado
em relação ao número de pessoas com Diabetes estimado pela OMS (5 milhões).
Verificamos que o gasto previsto em medicamentos por pessoa correspondeu a R$
12,64 anuais ou R$ 1,05 mensais. Ainda que se considere nessa estimativa que
50% desconhecem a doença e que aproximadamente 25% dos que sabem seu
diagnóstico não se tratam, restariam 1.875.800 de pessoas para as quais foram
destinados os R$ 63,2 milhões em medicamentos: o investimento ficaria em R$
33,69 per capita/ano ou R$ 2,80 mensais.
Os números oficiais apresentados pelo Ministério da Saúde indicam a situação
registrada na DOTA(13), de que milhões de pessoas com Diabetes não recebem
tratamento adequado. Devido ao inadequado controle, correm um risco
consideravelmente maior de complicações cardíacas, derrame cerebral, cegueira,
insuficiência renal, amputação de membros inferiores e morte prematura.Vale
referir que apenas 30% dos Ministérios de Saúde do mundo destinam verbas para a
redução de DANTs. Para o representante do Brasil na Organização Pan-Americana
de Saúde (OPAS), o Brasil tem o melhor programa de prevenção de Hipertensão e
Diabetes do mundo13.
5 Reflexões necessárias sobre a justiça distributiva
Ao trazer-se dados da situação da AIDS e do Diabetes, ao comparar-se a evolução
dessas epidemias e os recursos aplicados no tratamento de cada uma delas,
constata-se uma inversão na proporcionalidade. AIDS é a única doença que tem
recebido a atenção que garante o artigo 196 da Constituição: todos os
pacientes, de modo igualitário, têm acesso de forma gratuita aos tratamentos
que necessitem para manter sua saúde, independentemente de seus custos. Houve
um enfrentamento das iniqüidades e foi garantida a universalidade e os direitos
constitucionais aos cidadãos que têm AIDS.
Cabe novamente trazer que a Constituição Federal é para todos os cidadãos, sem
discriminações ou preferências. É a lei magna, superior a todas as demais, mas
a realidade mostra que outros dispositivos inferiores podem funcionar de modo
mais imperativo - como é o caso da Lei 9.313, de 13 de novembro de 1993(14),
que garante que os pacientes de AIDS do País tenham acesso a todos os avanços
terapêuticos disponíveis no mercado mundial, a despeito de seus altos custos
(11:38).
Quando determinados grupos organizados obtêm a garantia do cumprimento de seus
direitos constitucionais e tais direitos, no seu cumprimento, ficam restritos
apenas a estes grupos organizados, a justiça obtida é individualista. "A ética
individualista é conservadora das desigualdades sociais"(1:151).
A ação governamental desenvolvida em relação à AIDS tem sido exemplar, mas,
infelizmente, esgota-se em si mesma. Por este fato, tem tornado os pacientes
com HIV/AIDS privilegiados em relação aos demais pacientes. Não que haja
privilégio na doença, mas no atendimento a ela oferecido, em detrimento de
todas as demais doenças.
Os números aqui apresentados comprovam, também, que tem havido insuficiente
distribuição de recursos para as doenças não transmissíveis, como é o caso do
Diabetes, que tem sido negligenciada nas ações governamentais. A silenciosa
discriminação dos pacientes com DANTs - vítimas da injustiça distributiva, tem
suas conseqüências não somente no aumento dos custos em atendimentos de alta-
complexidade (amputações, hemodiálises, internações hospitalares), mas,
principalmente, no sacrifício de muitas vidas humanas.
Um exemplo recente reforça a comprovação dessa negligência: no dia 26 de junho
de 2003, o governo emitiu a Medida Provisória (MP) 123, publicada no Diário
Oficial da União de 27/06/2003, visando a redução do preço de medicamentos.
Nesta MP, o governo esqueceu de incluir na lista os medicamentos anti-
hipertensivos e remédios para Diabetes, além de muitos outros essenciais(15).
A matemática pública parece desconhecer o drama humano gerado pela injusta
distribuição dos recursos. O potencial humano sacrificado pelo precoce
afastamento do trabalho, as vidas ceifadas por doenças evitáveis, os destinos
de pacientes e dos familiares não entram nas contas do governo. A burocracia
desconhece essas minúcias, ocupada com o funcionamento da grande máquina
estatal. A leitura atenta dos dados oficiais comprova a situação trágica
vivenciada por usuários e presenciada pelos profissionais do sistema público de
saúde: algumas patologias, principalmente da categoria das doenças não
transmissíveis, têm sido preteridas em relação a outras.