Reflexão na abordagem psicanalítica das representações do enfermeiro sobre si e
sobre a Enfermagem
PESQUISA
Reflexão na abordagem psicanalítica das representações do enfermeiro sobre si e
sobre a Enfermagem
Reflections on the psychoanalytic representations of nurses about themselves
and about Nursing
Reflexión de la perspectiva psicanalistica de las representaciones del
enfermero sobre si y sobre la Enfermería
Marta de Oliveira PimentelI; Daclé Vilma CarvalhoII
IMestre em Enfermagem, Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG mpimentel@ufmg.br
IIDoutora em Enfermagem, Docente da Escola de Enfermagem da Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG
1. DOS (IN)CÔMODOS QUE CONDUZIRAM AO TEMA
Ao considerarmos os caminhos evolutivos da enfermagem e sua vinculação estreita
com os postulados eclesiásticos e militares, demonstrado pela postura idealista
de se salvar a alma, tanto a de quem cuida como a de quem é cuidado e de
regras, normas e procedimentos rígidos, morais e técnicos no desenvolvimento
posterior da enfermagem, esses elementos podem ter sido geradores de atitudes
ambíguas no campo da saúde e de conflitos entre os próprios profissionais
enfermeiros. Na convivência com os mesmos, pudemos perceber os conflitos nos
embates profissionais cotidianos que ora os levam a exacerbar a onipotência da
enfermagem/enfermeiro, ora os jogam na impotência. Estes conflitos eram
repetidamente verbalizados, sentidos e somatizados. Entretanto, o que nos
incomodava era a percepção de que, mesmo frente a essa angústia, não se
conseguia mobilização suficiente para a busca de saídas dessa situação como se
a comodidade ainda fosse o refúgio mais seguro frente ao incômodo.
Provavelmente deveria haver algum ganho, psicologicamente falando, que os
mantinha nessa posição. Neste sentido, surgiram as indagações: quais seriam as
representações que teria esse profissional sobre si mesmo? Qual o discurso
desses enfermeiros sobre a enfermagem? Quais seriam as suas representações da
enfermagem?
O desconforto sentido levou-nos a interlocução com outras áreas do conhecimento
como a Psicologia, o que se configurou como de grande importância, pois
percebemos que o próprio profissional se autoriza a ser o que é, num
continuumprocessual de vida frente às contingências do seu contexto histórico-
social, buscando formas de superação. Ele busca reconhecer o seu desejo e o
lugar onde ele se encontra, visto que é desse mesmo lugar que ele se projetará
enquanto sujeito e poderá ser reconhecido no seu desejo. Foi pensando neste
indivíduo, na sua singularidade, que optamos por trabalhar com a psicanálise
como orientação teórica que norteasse o estudo.
Ao se buscar instrumetalizar o nosso saber e as formas do conhecer-se com
outros aportes teóricos, enfoca-se a importância do autoconhecimento como fator
minimizador do sofrimento psíquico das pessoas humanas tendo em vista um re-
investimento de suas potencialidades frente às transformações sociais que estão
ocorrendo, particularmente no âmbito da saúde, no qual o enfermeiro vem sendo
convocado a assumir posições de liderança, o que pressupõe posicionamentos
ético-político-filosóficos mais consistentes.
Assim, este estudo tem como objetivo analisar as representações do sujeito
enfermeiro sobre si e sobre a enfermagem, dentro do referencial teórico
psicanalítico da constituição do sujeito no âmbito do desejo que o anima, nas
instâncias do imaginário e do simbólico.
2. MARCO REFERENCIAL PSICANALÍTICO
A psicanálise se mostra como uma teoria e uma prática, que pretende falar do
homem enquanto ser singular, mesmo afirmando a sua clivagem, deixando a
subjetividade de ser entendida como um todo unitário, identificado com a
consciência, para ser uma realidade dividida em dois sistemas o inconsciente e
o consciente. O propósito da psicanálise é explicitar a lógica do inconsciente
e o desejo que a anima(1). O sujeito, no sentido freudiano é o sujeito do
inconsciente. A questão do sujeito se coloca entre o sujeito do inconsciente,
je (eu), o sujeito por excelência, que deve advir no lugar do isso (id) e o moi
(eu) a função imaginária do sujeito(2).
O Sujeito Humano percorre uma trajetória para se constituir que se inicia com
uma ausência de representação sobre si mesmo, encontra-se indiferenciado e em
um estado de pura excitabilidade instintual (algo não psíquico). Assim, uma das
primeiras investidas neste processo de diferenciação consiste na
representabilidade pulsional. A pulsão existe só e unicamente porque se
representa, portanto esta "energia" existe pela representação(3). A
representação (Vorstellung) é o elemento constituinte da vida mental e pode
tornar-se consciente ou ser inibida, mantida fora do sistema pré-consciente/
consciente, pela via do recalcamento. Esta se dá pelos seus representantes: o
ideativo (Vorstellung Repråsentant) e o afeto (Affekt), ambos representantes
psíquicos da pulsão (Psychischerepråsentanz), ou seja, a representação da
representação psíquica(1). O afeto (Affekt) é a expressão qualitativa da
quantidade de energia pulsional. Os destinos do afeto são produzidos mediante
transformações do mesmo na histeria de conversão, deslocamento (nas obsessões)
e troca de afeto nas neuroses de angústia e melancolia(4).
O recalcamento (Verdrångung) é um processo pelo qual a subjetividade do
indivíduo é clivada em instâncias distintas, sistema inconsciente e o pré-
consciente/consciente. Sua essência consiste no fato de afastar determinada
representação do consciente, mantendo-a distante. Esta representação ou idéia
ameaçadora é mantida no sistema inconsciente através da censura exercida pelo
ego por despertar sentimentos de vergonha e de dor(5). A impossibilidade de uma
conciliação entre uma representação ou grupo de representação e o ego,
constitui a defesa e transforma o ego em sujeito de operação defensiva. Todo
desprazer neurótico é um prazer que não pode ser sentido como tal, sendo
sentido pelo ego como desprazer, ou seja, sofreu processo de recalcamento, mas
conseguiu chegar por caminhos indiretos a uma satisfação direta ou substitutiva
(6).
As percepções inconscientes são absolutamente inatingíveis, só as conhecemos
enquanto representadas. Essas percepções são denominadas por Freud de
"pensamentos". Pela existência da representação de palavra é que podemos
conhecer as tramas dessas percepções que nos escapam. É, "a palavra que dota os
investimentos da qualidade de representação, qualidade essa impossível de ser
tirada das próprias percepções"(3). A palavra confere um caráter de
representatividade aos atos de investimentos pulsionais do sujeito. Para Lacan,
é a palavra que barra o gozo (da pulsão) e a linguagem o que introduz o
indivíduo humano no registro simbólico. O indivíduo suporta o campo da
realidade, via uma representação fantasmática pois, o afeto (Affekt), por não
ser passível de recalcamento, existe e insiste em se representar, exigindo do
sujeito uma representação significante.
Assim, o que se busca e o que se procura satisfazer via essa representação
fantasmática (imaginária) é uma satisfação pulsional que não se realizou e que
independe de um objeto concreto. Esse Sujeito, ao barrar o gozo, institui o
real, mas fica permanentemente ligado a essa representação fantasmática, se
constitui como um sujeito causado pelo outro (objeto fantasmático-imaginário)
ao se formular na demanda da pulsão e ao se articular no fantasma do objeto de
desejo (nome do pai, supereu, ideal do eu) ele também se apaga, apoiando-se no
sintoma(3).
Em seu texto, Inibição, Sintoma e Angústia, Freud, fala que "O sintoma é o
resultado de uma satisfação pulsional que não se realizou"(7), e denuncia o
fracasso do recalque, ele (o gozo) retorna na sua forma de insatisfação, dor,
angústia, ou seja, em forma de sintoma, que existe e insiste no recalque pela
palavra, na representação significante enquanto constitutiva de vida
interrogativa. "O sintoma é uma saída de saúde, momentânea, precária, mas a
única que pode garantir certa ordem do sujeito"(3). Todo ser humano como
sujeito se caracteriza pelo sintoma, pelas suas coincidências, coisas que
incidem juntos. "Épor coincidência que eu sou eu" (Lacan).O sintomaseria "o
quarto termo que amarraria numa intersecção de fundo, o real, o imaginário e o
simbólico"(3).
O sujeito se constitui pelas três vertentes da interseção do real, do
imaginário e do simbólico, e o sintoma seria o lugar de expressão desse real e
do imaginário buscando se representar, pois "o real suporta a fantasia e a
fantasia protege o real"(2). Assim, o eu humano se constitui sobre o fundamento
da relação imaginária que contém a pluralidade do vivido. A dimensão imaginária
articula-se ao simbólico por uma das suas vertentes.
O eu (moi) está estruturado exatamente como um sintoma, é o sintoma humano por
excelência. "O absurdo fundamental do comportamento inter-humano só é
compreensível em função deste sistema, denominado por Melaine Klein, o eu
humano, esta série de defesas, de negações, de barragens, de inibições, de
fantasias fundamentais, que orientam e dirigem o sujeito"(8).
O sintoma, como o significante (modo de expressão do sujeito) representa o
próprio sujeito, mas é a recusa desse sentido pelo sujeito que lhe coloca um
problema. Assim sendo, "Atrás de cada sintoma só e sempre está o sujeito" e o
advir desse sujeito deve comportar a reintegração de sua história e sua
assunção, mesmo que se traduza na possibilidade de convivência com o sintoma.
A angústia é a condição soberanamente humana do homem na terra, ela é
estrutural e estruturante e revela a impotência de significante à vertente
imaginária, a presença do desejo do outro causando a minha vida (a - fórmula do
fantasma) portanto, esse desejo do outro não representado eclipsa o sujeito
desejante.
A angústia do sujeito é a interrogação do ponto negro, da "sombra", do
"fantasma": "Che vuoi?" Que Queres? Ou seja, o quê quer ele de mim? Eu não sei
o que esse outro quer, mas também não posso sabê-lo, pois isso seria defrontar-
me com a castração, a falta, assim, fico tributário do "bem querer" do outro, e
essa situação é geradora de angústia. Essa pergunta endereçada ao desejo do
outro vem como resposta. Ela interroga o próprio sujeito quanto ao seu desejo e
o coloca frente ao real da falta, da impossibilidade do ter. "Lá onde eu tenho
medo eu desejo" (Lacan).
O desejo alienado no desejo do Outro só pode libertar-se na medida que, o outro
desapareça como suporte do desejo do sujeito, é a destruição desse Outro que
possibilitará a constituição do sujeito desejante, pois, se essa relação se
mantiver, não somente é impossível a constituição do sujeito como sujeito
autônomo, como também se falar em subjetividade individual. O desejo permanece
marcado pela sua função negatriz, o desejo de um necessariamente se aliena no
desejo do outro (concepção Hegeliana da dialética do Senhor e do Escravo). A
saída deste tipo de relação se encontra na possibilidade de assunção ao
simbólico. "É através do simbólico, da linguagem, que o desejo vai entrar numa
relação de reconhecimento recíproco, na troca simbólica do eu e do tu"(9).
Pelo ingresso no simbólico produz-se uma transformação no objeto através da
linguagem. A concretude e o poder das palavras para Lacan é como "a roda de
moinho por onde incessantemente o desejo humano se mediatiza, entrando no
sistema de linguagem"(8). É o simbólico que garante a constituição do sujeito.
"A palavra é a morte da coisa" (Lacan), e pela entrada no sistema simbólico,
via linguagem o sujeito consegue se distanciar das suas vivências ("das
coisas") via representação. Ao adentrar nesse universo simbólico o sujeito,
mediatizado pela linguagem, perde-se na relação de si a si ("refenda") e se
aliena no significante. O eu do sujeito passa a ser o lugar da mentira e do
ocultamento, lugar da morte do sujeito do Inconsciente (Jê), que para a sua
"revelação" necessitará de um resgate, pois se a palavra produz um corte no
sujeito e garante a sua sobrevivência no social ela o aliena de si mesmo. "Pela
palavra eu me encontro (sujeito do enunciado) e nela me perco (sujeito da
enunciação)" (1:124-5; 190-3). A ordem simbólica é a ordem humana,
transindividual na medida em que precede o sujeito. A linguagem se coloca numa
relação de exterioridade em relação ao sujeito, ou seja, como um conjunto
estrutural independente do indivíduo que fala, como o grande Outro.
E nesta aposta fálica, ao renunciar ao desejo de ser, em prol do desejo de ter
(enquanto falta, vazio, buraco) o indivíduo se situa, segundo Lacan, numa
encruzilhada estrutural de amplas conseqüências, que se fracasse (introdução de
processos psicóticos) que se tenha sucesso, como algo que aliena o desejo do
sujeito na dimensão da linguagem ao instituir uma estrutura de divisão
subjetiva, ele se separa de uma parte de si mesmo(10). Assim, "o que o sujeito
não sabe é sobre o seu desejo", pois o mesmo encontra-se entre as vicissitudes
da demanda e a exigência de amor, nesta hiância em que se situa a experiência
do desejo, apreendida no início como desejo do outro, e no interior da qual, o
sujeito tem de situar seu próprio desejo.
2.1. Das expressões representativas do sujeito
A análise se processa numa produção de sentido em posição epistemológica
definida aqui em termos de processos e produção. Desse modo, "aprofunda-se no
mundo subjetivo dos sujeitos na busca das representações que orientam suas
ações e suas relações humanas"(11). Este estudo fez uso das práticas
discursivas para a apreensão do conhecimento dado pelos sujeitos pesquisados
(11). Reconhece-se desta forma a polissemia intrínseca às práticas discursivas.
Estas práticas têm um caráter essencial de discurso, e este termo, "designa de
um modo rigoroso e sem ambigüidades, a manifestação da língua na comunicação
viva. Implica a participação do sujeito na sua linguagem através da fala do
indivíduo"(12). A mensagem destinada ao outro é, num certo sentido, destinada
em primeiro lugar ao mesmo que fala, donde se conclui que: falar é falar-se.
O discurso provoca a emergência da subjetividade e é nesta instância em que o
"eu" designa o locutor, que o mesmo se enuncia como "sujeito". O eu se refere
ao ato de discurso individual no qual é pronunciado e "é verdade ao pé da letra
que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua, não há outro
testemunho objetivo da identidade do sujeito que não seja esse, que ele mesmo
dá sobre si mesmo"(13).
Consideramos os discursos individuais dos enfermeiros, sujeitos da pesquisa,
geradores das representações das quais eles são portadores. As representações
são aqui consideradas como um produto que subsidia a análise do próprio
processo de produção das mesmas, isto é, seus aspectos constitutivos,
relevantes e reveladores de um sentido portado pelos discursos dos enfermeiros.
3. PERCURSO METODOLÓGICO
O percurso metodológico pauta-se no pressuposto de que conhecer é dar sentido
ao mundo, é buscar entender a processualidade intrínseca da atividade de
significação. Dar sentido é sempre uma atividade cognitiva, que implica na
utilização de conexões neurais, habituais desenvolvida pela experiência no
enquadre das contingências do contexto social e cultural, as quais pressupõem o
tempo histórico e o tempo vivido subjetivamente e objetivamente nos processos
de socialização primária e secundária. Os processos sócio-cognitivos que
sustentam o conhecimento não são autônomos, dependem intrinsecamente da
história, seja no âmbito do indivíduo ou das formações discursivas próprias à
cultura em que ele se insere.
A trajetória desta pesquisa iniciou-se com uma interpelação aos enfermeiros que
se desdobrava em duas perguntas norteadoras: O que vem à sua mente quando eu
falo a palavra enfermeiro (a)? E o que lhe vem à mente quando eu falo a palavra
enfermagem? Cada pergunta referia-se a um roteiro temático, que estava
subdividido em dois blocos: Representações do enfermeiro sobre si e
Representações do enfermeiro sobre a enfermagem.
Deste estudo participaram oito enfermeiros como sujeitos genéricos. Assim
denominados na metodologia das práticas discursivas e se apresenta como: o
indivíduo no grupo sujeito da abordagem epistemológica do estudo das
representações, é um símbolo vivo do grupo que ele representa como o grupo no
indivíduo, contanto que se tenha adequada compreensão do seu contexto social
(14).
Uma primeira aproximação com os sujeitos genéricos foram os dados levantados na
parte inicial da entrevista no intuito de apresentá-los, assinalando de quem
são essas representações. São enfermeiras, na sua maioria mulheres casadas,
inseridas nos diversos tipos de serviços de saúde e instituições
universitárias, nos três níveis de atenção à saúde, desempenhando funções
regulamentadas em Lei, com tempo igual ou superior a cinco anos no exercício
profissional e numa faixa etária produtiva.
Os encontros para a realização das entrevistas foram acordados previamente e
gravados após consentimento formal dos entrevistados através da assinatura do
termo de esclarecimento e compromisso pós-informado. Foi utilizado como
instrumento entrevistas semiestruturadas, individuais, baseadas nas associações
de idéias. A entrevista iniciada após a introdução das perguntas norteadoras,
foi se construindo a partir do conhecimento pré-reflexivo gerado na realidade
experienciada pelos sujeitos pesquisados em direção a um conhecimento
reflexivo, pois, a partir das primeiras associações efetivadas pelo enfermeiro,
retornava-se à linguagem do discurso do sujeito, interpelando-o, com o uso dos
próprios termos na exposição das suas experiências (1as associações). Esse
procedimento abria possibilidades para outras associações ou para re-
significações das anteriormente dadas, pois o pesquisador vai procurando pistas
que lhe permitam formular novas questões (Associações secundárias).
O modo de proceder descrito denomina-se, técnica de associação de idéia, "gera
discursos que possibilitam acessar conteúdos compartilhados e narrativas
voltadas ao posicionamento do eu"(11). Tem aderência ao manejo técnico da
teoria psicanalítica que impõe uma regra fundamental, a da livre associação, "o
fluir livremente das suas associações sobre um assunto que está sendo tratado
no momento"(15). Essa técnica vem sendo utilizada em estudos centrados no
processo de elaboração das representações, com o objetivo de entender as
construções dos significantes utilizados pelo sujeito, na interface entre
explicações cognitivas, investimentos afetivos e demandas derivadas das ações
no cotidiano(11).
Concluída a série de entrevistas, processou-se às transcrições, procurando-se
manter na integra a linguagem, as expressões utilizadas e as manifestações não
verbais risos, hesitações, ênfase das palavras, tom de voz, pausas (Associações
Qualificadoras). Cada enfermeiro, sujeito genérico, desta pesquisa ganhou um
nome substituto por respeito à sua identidade, pois, da sua subjetividade dão
testemunho os discursos. Para organização e análise dos produtos buscou-se
apreender as representações atribuídas pelos enfermeiros em relação aos
roteiros temáticos: Representações do enfermeiro sobre si e Representações do
enfermeiro sobre a enfermagem(14).
Foram elaborados Mapas de associações de idéias nos quais foi transcrito o
conteúdo integral de cada discurso, em quatro colunas distintas: Objeto,
primeira associação, associações secundárias e associações qualificadoras. Isso
permitiu apreender as representações, bem como as narrativas nas quais elas
adquiriram significações (anexo_1). De cada discurso, elaborou-se gráficos das
representações dos dois roteiros temáticos: Sobre o enfermeiro e sobre a
enfermagem. Das representações apreendeu-se as significações reveladoras,
delineando-se duas vertentes, do sujeito de quem se falava e do objeto do qual
se falava, os quais foram transcritos em quadros (anexo_2).
Passou-se a seguir, à análise processual dos produtos dos discursos. As
análises dos textos dos discursos engendraram novos textos que revelaram
expressões significantes portadores de sentido representacional dos enfermeiros
e elemento motriz dos seus desdobramentos, isto é, efeitos dos sujeitos na sua
dimensão simbólica.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A) Salete, 41 anos de idade, enfermeira casada, está com quinze anos de
exercício profissional. É coordenadora geral do serviço de enfermagem de uma
instituição hospitalar de grande porte e, portanto, exercendo uma função
administrativa relata a sua luta e sofrimento constantes para tornar a sua
atividade algo grandioso aos olhos do outro. Eu achei que tinha de ser a mulher
maravilha, tipo um espírito para estar em todos os lugares.
B)Alberto, 37 anos de idade casado, enfermeiro em exercício profissional há dez
anos, exerce atualmente a função assistencial em uma unidade de internação de
uma Instituição Hospitalar pública e fala do desconhecimento do seu desejo e da
diferença do saber daquele que não é bem visto, nem bem vindo nos altos cargos
do cenário político da saúde apesar de sua mestria e de ser um "expert" na
assistência à saúde. Ser enfermeiro exige muito da gente porque é uma tarefa
muito difícil, é um universo muito amplo.
C) Esmeralda, 51 anos de idade, casada, enfermeira docente, exerce a função
educativa numa instituição universitária do setor privado. Está em exercício
profissional há vinte e nove anos e relata a sua angústia em se ver como o
negativo do retrato revelado do enfermeiro, daquele que sabe da enfermagem para
negá-la na sua prática com uma vestimenta de profissional de nível superior
parecer/para ser enfermeiro, pois gravita a uma certa distância do outro que
deveriam cuidar. Assim, mesmo com toda a vestimenta profissional não se
conseguiu mudar a cultura social.
D) Violeta, 36 anos de idade, casada, enfermeira está em exercício profissional
ha quatorze anos e atualmente, docente numa instituição universitária do setor
privado, portanto, no desempenho de uma função educativa, fala da sua busca do
objeto sedutor da enfermagem enquanto objeto desejável e desejante, que poderá
sustentá-la na enfermagem como sujeito desejante. Uma profissão muito pouco
sedutora, estática, que não reflete o cotidiano dela com as outras pessoas.
E) Carolina, 45 anos de idade, casada, enfermeira exerce função administrativa
na gerência de serviço de enfermagem num estabelecimento de saúde da rede
básica nível secundário e é profissional há cerca de vinte anos. Ela fala sobre
a enfermagem como a carreira que eu escolhi para vivenciar a minha vida
profissional, da Enfermagem e de sua imagem pública, social e cultural
banalizada, já que a sua prática é tida como aparentemente simples ao olhar do
outro, muito elementar, um simples negociozinho. E de como o enfermeiro por
medo ou timidez avaliza o mesmo discurso da banalização no seu cotidiano, que o
puxa para baixo, ao desempenhar o "script" social que lhe deram, de estar sendo
enfermeiro sem o ser realmente, apenas na aparência, na imagem, esperando que o
outro lhe diga: Ah, você é demais!
F) Semíramis, 44 anos de idade, divorciada, é enfermeira há vinte anos, e
atualmente, exerce a função educativa como docente numa instituição
universitária do setor público. Relata aqui como aquilo que entrou
acidentalmente na sua vida passou a ser vivida numa confusão de sentimentos no
nível das emoções, no sentido do prazer e do desprazer que se destacam frente
às situações dadas. E que a enfermagem, como profissão é expressão do sujeito e
as suas perspectivas futuras é um enigma, pois dependem dos próprios sujeitos,
estes que ainda estão em estado de sonolência, vivendo no instante mesmo do
despertar.
G) Elba, 35 anos de idade, casada, é uma profissional enfermeira há nove anos.
Atua na rede básica de saúde no nível secundário e sua função é assistencial.
Ela fala como a enfermeira/enfermagem pode ser uma grande profissão desde que
se comece a trabalhar com mais vontade, pois muitos enfermeiros ainda não
despertaram para a enfermagem, para a abordagem cuidadosa do outro. Alguns
sentem vergonha de cuidar.
H) Samantha, 31 anos de idade, solteira, é enfermeira há sete anos. Exerce a
função assistencial num serviço de saúde, nível primário da rede básica. Fala
aqui da sua intenção de ajudar o outro com o seu saber, das tentativas diárias
de sustentar essa ajuda e do sofrimento que isso implica, pois há uma confusão
no desempenho das ações do profissional no contexto organizacional das
instituições de saúde e também no social, exigindo todo um esforço do mesmo
para equacioná-la diante das demandas internas do sujeito. Ele vai se
escondendo e se acostuma tanto com isso que não tem mais coragem de mostrar a
potência do enfermeiro como profissional.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Das nossas co-incidências
Ao adentrar no momento mesmo de concluir, aludimos aos três tempos lógicos de
Lacan Olhar, compreender e concluir que implicam a destruição subjetiva de
representações, imagens que nos movem por meio de re-significações portadoras
de significantes que possibilitem mudanças na posição subjetiva do sujeito
perante o desejo, renomeando-o. Tendo em vista, que a problemática do sujeito
consigo mesmo está em conjugação com o sentido do sintoma é a recusa desse
sentido pelo sujeito que lhe coloca um problema, pois ao negar a reintegração
de sua história e a sua assunção, isso o impede de tornar-se sujeito desta e
realizar ultrapassagens. Assim, é o universo subjetivo do ser humano que
engendra símbolos, num proceder ativo em que há um poder criador na intenção
imaginária, ligada à afetividade e à dimensão simbólica, que se expressa no
poder das representações que se articula com a eficácia funcional da linguagem,
que viabiliza a expressão de laços sociais mais satisfatórios.
Depreende-se das análises dos textos dos discursos dos sujeitos, ou seja, das
coincidências, das representações que incidem juntas, as seguintes reflexões: O
sujeito confusionado com o objeto estabelece uma relação dual imaginária.
Indicando um colamento entre o enfermeiro e a enfermagem, uma transitividade e
a ausência de elementos que venham mediatizar esse eu e o outro. Um não
consegue reconhecer o outro via um significante simbólico. Há uma sutura e pela
não existência de espaços, para a ocorrência de representações significantes,
não há um reconhecer sobre o conhecimento conhecido. O enfermeiro é a
enfermagem e a enfermagem é o enfermeiro.
Essa fusão, essa indistinção é geradora de angústia, de sofrimento, uma vez que
presentifica o sujeito atrofiado, que pode se imobilizar perdendo a capacidade
de emitir um sentido que faça sentido para si. Existe nesta posição apenas
signos, um sinal de economia; e o sujeito nessa completude imaginária refere-se
ao objeto de desejo como ao próprio desejo. O sujeito capturado no discurso do
outro se vê privado da possibilidade de interrogar o significante. Quais são as
suas questões? O sentido que vigora já está dado. E vemos isso nas seguintes
enunciações reveladoras nos discursos dos enfermeiros: "A confusão, a mistura,
o sem limite, o muito abrangente, o tudo, o todo, o muito amplo, o universo.
Ninguém sabe o que esperar dele. Nem ele sabe o que é enfermeiro. Nem o papel
dele dentro da instituição hospitalar. Ele não sabe que profissional ele quer
ser".
Por desconhecer-se no seu desejo, o mesmo se apresenta como desejo do desejo do
outro, como no movimento primeiro do aparecimento do desejo. Desejo imaginário,
sem contorno, que sustenta um objeto fálico, detentor de um poder, de um ter
para doar, possuidor imaginariamente do objeto, sem falta. Para sustentar essa
posição, o sujeito mantém o grande Outro onipotente, não barrado, equivalente
ao seu desejo e no qual aliena o seu desejo. Instituindo-se nessa posição numa
farsa para constituir-se como sujeito desejante. Esse desejo do outro sem lei,
que só conhece e reconhece a sua própria lei, mergulhado numa grandeza, numa
potência imaginária e que se apresenta caprichoso, arbitrário, imperativo,
tirano que lhe demanda nada menos que tudo, a sua vida. Assim, esse grande
Outro pede sempre, solicita, ordena, manda, quer que ele faça tudo, que dê
respostas a solicitações diversas e abrangentes, que providencie todas as
coisas, ou seja, que o enfermeiro tenha uma presença como objeto, sem saber o
que representa no desejo desse outro, tornando-se invisível como sujeito. Esse
grande outro que se irrita quando o enfermeiro demonstra conhecimento
científico (ordem simbólica), quando questiona, situação na qual não será bem-
visto nem bem-vindo.
Nessa redução do sujeito a objeto de desejo do outro, nesse estado de carência
de significantes, nesse apagamento, introduz-se a dor, à medida que ser nada
quando se espera ser alguém, é um desprazer insuportável; e ser nada e ainda
ser mandado é mais doloroso, e o sujeito se vê lançado numa indizível
frustração. Como o sujeito se esfumaça, se esgarça diante desse grande Outro
tirano, que não se importa com suas expectativas, com suas representações, mas
que é sustentado pelo sujeito, visto onipotente, sem falta, não existem
aberturas para que o imaginário possa se articular com o simbólico de maneira
diversa. Fica-se na repetição do mesmo, isto é, na concretude da lei, na sua
aspereza e aridez.
Nesse estado de sofrimento o sujeito não se representa no mundo do discurso,
apenas se apresenta, se manifesta fora do significante, faz laço no Outro.
Machuca-se; deprime-se; desinteressa-se e desmotiva-se. Tudo vai mal, há um mal
estar e nada funciona. O enfermeiro busca um sentido para se representar por
meio de uma subversão da representação via linguagem, via uma metáfora,
nomeando-se pela impotência, como vítima; ou pelo excesso de potência, como
vitimado, posições geradoras de medo do fracasso, de insucesso. Individualiza-
se no contexto da enfermagem aderindo ou fugindo ao discurso cuja expressão não
lhe permite representar-se como sujeito e, por não se achar implicado ali o
desejo como significante do próprio sujeito, não consegue decifrá-lo, não
consegue imprimir nada dele mesmo na atividade que desempenha, não se exprime.
Diante das co/incidências que se apreendem das representações dadas pelos
enfermeiros sobre eles mesmos e sobre a enfermagem, representações ainda
incipientes, pois, pouca sustentação oferece aos sujeitos, mas consideramos que
não existe nada que seja humano que não seja pensado, sendo o pensamento algo
interior, e se ele constrói pontes, acessos, se ele se abre, se dá e recebe se,
em uma palavra, ele se comunica o faz dentro de um universo simbólico
articulado ao imaginário e ao real da sua subjetividade. É nessa expressão
humana, como capacidade do sujeito de apostar no seu desejo e, em si, como
possibilidade de constituir-se, de romper com a repetição do "natural", do
"habitual", do "sempre foi assim", da enfermagem "é isso mesmo", "um tudo", e
do enfermeiro como aquele que "tem de dar conta desse tudo" que, algumas vezes,
se traduz num nada, pode-se introduzir nessa seqüência representações que
consiga referenciá-lo.
Creio que o enfermeiro não fugindo ao seu compromisso, à sua vocação e sendo o
seu objeto constituído nos limites do biológico, do psicológico e do social
continua a ter pela frente o desafio de se inserir socialmente como aquele que
detém um conhecimento de uma ciência, com uma prática teórica investigativa,
compreendendo e interpretando os seus determinantes históricos e sociais, não
somente a sua produção social, mas especificamente a sua organização e inserção
social, buscando a reestruturação de suas coordenadas, trazendo para o seu
interior, as dimensões imaginária, simbólica, ética e política, entrelaçadas o
que indubitavelmente revitalizará o seu discurso enquanto práxis social.
Consciente de que é o "discurso do sujeito que faz laço social" (Lacan), são as
suas buscas de e para um sentido o que, ao mesmo tempo, nos tira do engodo da
estabilidade e nos incomoda, o que corresponde a uma necessidade: a de pensar,
e a um desejo: o prazer de criar.