Em busca de uma visão antropológica no Programa de Saúde da Família
REFLEXÃO
Em busca de uma visão antropológica no Programa de Saúde da Família
Looking for an anthropologic vision in the Family Health Program
En búsqueda de una visión antropológica en el Programa de Salude de la Familia
Elaine Antunes CortezI; Florence Romijn TocantinsII
IEnfermeira. Mestre em Enfermagem; Docente da Universidade Estácio de Sá
(UNESA), Rio de Janeiro, RJ, e da Fundação Técnico Educacional Souza Marques
(FTESM). lainecortez@ig.com.br
IIEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Departamento de Enfermagem Saúde Pública -
EEAP/UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Por considerar oportuna a discussão acerca do Programa Saúde da Família (PSF)
como estratégia de reorientação da atenção básica com uma visão antropológica
de saúde para sua efetivação, e por estarmos envolvidas diretamente nesse
processo, desenvolvemos este estudo com intuito de aprofundar a compreensão da
temática. Ressaltamos que foi um desafio muito grande refletir sobre o tema,
pelo fato de estarmos inseridas no contexto universitário, onde ainda é
privilegiado o modelo hospitalar de assistência, temos uma certa dificuldade em
observar com clareza os meandros das mudanças que estão ocorrendo no âmbito das
políticas de saúde. Por isso, preocupadas em elaborar um recorte que
contemplasse a temática e que fosse possível a argumentação para tracejar,
ainda que em síntese, propomos analisar a perspectiva do PSF com uma visão
antropológica de saúde. Tomamos como ponto de partida o contexto atual,
mediante o qual elaboramos três questões: Como surgiu o PSF, seus aspectos
históricos? O que é o PSF enquanto estratégia de reorientação da atenção
básica? Qual é a contribuição de uma visão antropológica de saúde no cuidado de
enfermagem no PSF?
Entre as autoridades do setor saúde, os profissionais que atuam nesta área e
usuários do sistema, há o consenso de que o modelo de atenção à saúde vigente,
que prioriza a assistência curativa e individual com ênfase no atendimento
hospitalar, não consegue modificar a condição de saúde da população, por
considerar como mais importante a doença em si em detrimento dos condicionantes
sociais e epidemiológicos, que interferem no processo saúde doença(1).
A necessidade de se reorganizar a assistência à saúde partindo da Atenção
Básica, valorizando as práticas de promoção e prevenção e colaborando na
organização do Sistema Único de Saúde (SUS), fizeram com que o Ministério da
Saúde (MS) propusesse a partir de 1994, a estratégia de Saúde da Família, mais
conhecida como Programa Saúde da Família a qual segundo Mendes: deseja criar,
no primeiro nível do sistema, verdadeiros centros de saúde, em que uma equipe
de saúde da família, em território de abrangência definido, desenvolve ações
focalizadas na saúde; dirigidas às famílias e ao seu hábitat; de forma
contínua, personalizada e ativa; com ênfase relativa no promocional e no
preventivo, mas sem descuidar do curativo-reabilitador; com alta
resolutividade; com baixos custos diretos e indiretos, sejam econômicos, sejam
sociais e articulando-se com outros setores que determinam a saúde(2).
A atenção básica de acordo com o MS(3) é : "um conjunto de ações, de caráter
individual e coletivo (...) no primeiro nível de atenção nos sistemas de saúde,
voltada para a promoção da saúde, a prevenção de agravos, o tratamento e a
reabilitação".
A diferença entre esta nova estratégia, e os centros ou postos de saúde vai
muito além do nome. Os Postos ou CMS utilizam um modelo de saúde passivo,
curativo e sanitário, sem vínculo efetivo com as pessoas, sem responsabilidade
maior com a saúde da comunidade, com um atendimento individualizado, limitando-
se a encaminhar os doentes para CMS especializados ou hospitais mais próximos.
As USF identificam os problemas, as necessidades das famílias, planejando,
priorizando e organizando o atendimento.
O PSF prevê um atendimento integral e hierárquico à saúde da população de sua
abrangência, pois está inserida no primeiro nível de ações e serviços do
sistema local de assistência, a atenção básica, está vinculada à rede de
serviços para garantir a atenção integral aos indivíduos e às famílias, com um
sistema de referência e contra-referência para outros níveis de complexidade;
trabalha com a população adscrita (mapeada/definida), que é feito através de
cadastramento realizados nas visitas aos domicílios por uma equipe
multiprofissional; trabalha com a participação da comunidade na identificação
das causas dos problemas de saúde, na definição das prioridades e no
acompanhamento e avaliação do trabalho, o PSF se integra ao serviço de saúde da
região enriquecendo e reorganizando, caracterizando-se como porta de entrada do
sistema municipal de saúde. As equipes de PSF, muitas das vezes, dispõem na
maioria das vezes, de profissionais capazes de resolver as maiorias dos
problemas de saúde na própria unidade, fazendo visitas domiciliares.
Entendemos o PSF como uma estratégia de atenção à saúde que precisa de novos
olhares e saberes profissionais, para que de fato reconheçam as reais
necessidades dos usuários, a partir da identificação dos dados demográficos
(idade, sexo e origem dos membros da família), socioeconômicos (renda,
condições de trabalho, ocupação, estudo, condições de moradia, escolaridade,
meios de comunicação que tem acesso, serviços de saúde acessados e transportes
que utilizam), meio ambiente (condições das águas, terra, do ar e do clima), e
índices de mortalidade e morbidade (óbitos na família e condições de risco),
sócio-culturais (estrutura familiar, religião e participação de grupos
comunitários)(4).
Estima-se que 15% da demanda(5) são encaminhadas para unidades especializadas,
quando há a necessidade de profissionais especializados e equipamentos mais
sofisticados. Os profissionais do PSF são generalistas com atribuições e
competências para áreas de planejamento, programação, epidemiologia, o que
possibilita ações de vigilância em saúde, com a intervenção sobre os problemas
de saúde; ênfase em problemas que requeiram atenção e acompanhamentos
contínuos; operacionalização do conceito de risco; articulação entre ações
promocionais, preventivas e curativas; atuação intersetorial; ações sobre o
território; e com intervenções sobre a forma de operações.
A equipe de Saúde da Família deve ser composta, no mínimo, por um médico
generalista (clínica médica), um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de
quatro a seis Agentes Comunitários de Saúde. A condição essencial, para o êxito
desta estratégia é que todos trabalhem oito horas por dia, o que dá quarenta
horas por semana, para que a partir disso, possa garantir o vínculo, ligação
efetiva, com a comunidade, garantindo dedicação integral à Saúde da Família.
Recomenda-se que cada equipe acompanhe entre 600 a 1000 famílias, não
ultrapassando 4500 pessoas(6).
Nessa estratégia o enfermeiro desempenha um papel bastante importante, pois é
ele quem vai acompanhar, supervisionar, promover capacitações, educação
continuada com os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e auxiliares de
enfermagem, além de atuar na atividade de cuidar com ênfase na Promoção da
saúde. Destacando a ênfase na intersetorialidade nos serviços e práticas de
saúde, nas políticas públicas e no desenvolvimento regional e local.
Dentre as atividades desenvolvidas pelos enfermeiros, a educação em saúde, a
qual é uma prática onde a realidade e os discursos das pessoas deveriam se
aproximar e para tal não podemos esquecer que, ao educar, temos que nos atentar
quanto ao saber, a crença, o hábito e a cultura de cada um. A educação em
saúde, principalmente no PSF deve deixar de ser tradicional, baseada em
repasses de informações com tradição autoritária e normatizadora, com imposição
de normas e condutas. Valla e Stotz(7) discutem sobre o objetivo da prática
educativa em saúde, denominando-a de educação popular em saúde, descrevendo que
a sua função seria o de facilitar sempre que possível o poder dos indivíduos
sobre suas vidas.
Ao buscarmos uma prática educativa mais participativa, construindo saberes e
práticas junto aos usuários de saúde, com fortalecimento de diálogos,
negociação entre diversos atores, com conhecimento dos seus padrões culturais,
e a partir disso, sermos capazes de reorientar as práticas de saúde, tornando-
as mais integradas à vida local e com um cuidar de enfermagem na perspectiva da
integralidade. Concordamos com Acioli e Monteiro(8) de que não podemos falar em
cuidado integral se não começarmos a criar formas de sentir, falar e fazer
nossas práticas de modo compartilhado no campo da saúde.
O cuidado de saúde no PSF deveria ser compreendido como algo maior do que
apenas a execução de algum procedimento ou técnicas junto aos usuários dos
serviços de saúde e sim um cuidar profissional que envolve interação, baseado
em valores, em educação participativa e conhecimento tanto de quem cuida como
de quem é cuidado. Desta forma, mais uma vez, a religiosidade compõe a
expressão comportamental de valor do usuário a ser cuidado.
O "modo de andar na vida", do usuário do PSF, deve compor a reflexão e
conseqüentemente as atividades dos enfermeiros. Desta forma entendemos que a
saúde é resultante das condições de vida, biológica, social e do estilo de vida
da população que inclui a religiosidade para cuidar de sua saúde. O conceito de
saúde aqui é a busca de uma qualidade de vida de acordo com o "modo de andar na
vida" da comunidade e/ou das famílias que se trabalha, com a valorização do
cuidado integral, requisito de dignidade e de sua cidadania.
A busca ativa é um dos métodos de trabalho do PSF, a equipe vai nas casa das
pessoas, das famílias, seja para cadastrar, para captar, para cuidar e/ou para
assistir e a partir de então, vê de perto a realidade de cada família, planeja
suas ações de saúde, tomando as devidas providências para, promover a saúde,
prevenir, melhorar e/ou minimizar os problemas de saúde, atuam nos que já
existem, dá orientação para possibilitar uma vida melhor e com saúde. E é neste
momento que muitas das vezes os profissionais de saúde esbarram-se em situações
conflituosas, quando o usuário expressa a suas necessidades assistenciais, a
sua preferência pela sua prática, explicação e/ou entendimento religioso, na
sua religiosidade, para promover a sua saúde ou dar conta de seus problemas de
saúde e das suas condições de vida. Entendemos necessidade de acordo com
Tocantins, pois estas estão imbricadas no mundo da vida, na cultura e também na
crença(9).
O PSF sinaliza uma nova lógica que inclui a prevenção, promoção e a recuperação
da saúde das famílias, para que os indivíduos possam ter autonomia e co-
responsabilidade no cuidar de sua própria saúde. Esta estratégia está sendo
adotada gradativamente no Brasil, e podem ser encontradas mais de 15.000
Equipes de Saúde da Família (ESF) implantadas nos diversos estados da
federação, propiciando o acompanhamento de mais de 50 milhões de brasileiros
(10).
2. ASPECTOS HISTÓRICOS
A assistência à saúde centrada na família não é uma inovação trazida pelo PSF.
A conferência internacional sobre cuidados primários de saúde, realizada em
Alma-Ata, em 1978, ao definir cuidados primários de saúde já destacava a
família como sujeito das ações de saúde, ao afirmar que estes cuidados
"representam o primeiro nível de contato do indivíduo, da família e da
comunidade com o sistema nacional de saúde"(11).
Posteriormente, identificamos em Cruz(12), a qual observou que a enfermagem de
saúde pública utilizava vários tipos de intervenções na assistência à família.
Da mesma forma, Nascimento(13) já verificava o reconhecimento da família como
unidade de serviço em enfermagem.
A origens do PSF, nos moldes que se conhece hoje, estão nos movimentos
reformistas das décadas de 1970 e 1980, quando já se pensava em substituir o
modelo tradicional de saúde, baseado na concentração de aprimoramentos para
tecnologia de ponta em detrimento das reais necessidades da população, seguindo
um modelo sanitário hegemônico com a atenção centrada nos hospitais e serviços
baseados na doença, por um novo modelo que priorizasse a prevenção e promoção
da saúde, com a participação da população.O Ministério da Saúde afirma que,
naquela ocasião os princípios da atenção primária em saúde eram discutidos em
conferências e experimentados em alguns países, inclusive na América Latina
(14).
No Brasil, os anos 70 e 80 foram marcados por um processo longo de discussão
sobre um novo paradigma para a saúde, ecológico e holístico, com o resgate da
perspectiva da totalidade e da interdisciplinaridade, com uma nova visão de
mundo, uma democratização da saúde que colaboraram para a construção dos
princípios do Sistema Único de Saúde, instituído pela Constituição Federal de
1988, vide a VIII Conferência Nacional de Saúde e Reforma Sanitária.
A proposta do PSF não é nova, ela é a recuperação de uma série de iniciativas
que buscavam reordenar o modelo assistencial a saúde e consolidar o SUS. Em
1991, o MS criou o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), que
objetivava contribuir para o enfrentamento dos alarmantes indicadores de
morbimortalidade infantil e materna na região Nordeste do Brasil. Nasceu,
portanto, com uma clara focalização de cobertura e objetivos, considerando que
essa região concentrava o maior percentual de população em situação de pobreza
e, conseqüentemente, mais exposta ao risco de adoecer e morrer(14).
No entanto, o PACS apresentava limitações como instrumento suficiente para
provocar mudanças efetivas na forma de organização dos serviços de saúde, o que
levou ao reconhecimento da crise deste modelo e suscitou a necessidade
emergencial de uma nova estratégia estruturante, que contemplasse a
incorporação de recursos humanos e tecnologias contextualizadas nas novas
práticas assistenciais propostas(15).
Com esse propósito e considerando os elementos trazidos pelo PACS (foco na
família e não no indivíduo, organização da demanda a partir de ações de
promoção, visão ampliada de saúde e integração efetiva com a comunidade) nasce,
em 1994, o PSF, apresentado como a estratégia capaz de provocar mudança no
modelo assistencial, que rompe com o comportamento passivo das unidades básicas
de saúde e estende suas ações para e junto com as comunidades(14).
A esta nova estratégia foi então atribuída a função de desenvolver ações
básicas, no primeiro nível de atenção à saúde, mas propondo uma tarefa maior do
que a simples extensão de cobertura e ampliação do acesso. O PSF de acordo com
o MS(14) "deveria promover a reorganização da prática assistencial com novos
critérios de abordagem, provocando reflexos em todos os níveis do sistema",
integrando-se com os serviços de saúde do município da região, enriquecendo-o e
caracterizando-se como porta de entrada do sistema municipal de saúde, com uma
abordagem voltada para o atendimento integral da família com intervenções
específicas de promoção, prevenção e recuperação; com um trabalho
interdisciplinar em equipe e com ações intersetoriais.
No entanto, o PSF não encontrou cenário favorável ao seu fortalecimento, uma
vez que não foram desenvolvidas políticas que sustentassem a proposta. Os
recursos humanos existentes não atendiam às necessidades trazidas por ele e não
havia política de financiamento adequada, os repasses financeiros eram
calculados de acordo com a quantidade de procedimentos ambulatoriais, de baixa
e média complexidade realizada nos municípios, o que levou ao não estimulo das
Equipes de Saúde da Família a se dedicarem à prevenção e promoção(14).
O incentivo à consolidação do PSF somente encontrou espaço, após a publicação
da Norma Operacional Básica de 1996 que instituiu o Piso da Atenção Básica,
fortalecendo a atenção básica, definindo as responsabilidades dos gestores
municipais e estabelecendo o PSF como estratégia prioritária para a mudança do
modelo assistencial. Assim, aquele que era o projeto inicial sofreu as
inflexões das demandas do projeto de ajuste estrutural. Mendes, afirma:
a conceituação da saúde da família como estratégia de organização da atenção
primária implica a negação de algumas versões. (...) Não é (...) um programa.
(...). A sigla PSF pegou e constitui, hoje, boa marca política para a saúde da
família. O importante, aqui, é falar de um Programa de Saúde da Família sabendo
que não é um programa, mas, sim, uma estratégia. Não sendo programa, não é,
também, uma versão contemporânea da medicina simplificada, nem projeto
exclusivo para regiões e grupos sociais em situação de exclusão. Apesar disso,
a estratégia de saúde da família deve ter os excluídos e as regiões mais pobres
como prioridade e deve utilizar largamente tecnologias custo/efetivas(2).
Na verdade, desde 1993, com a Portaria nº 692 do MS o PSF vem sendo implantado
em nosso país. À época, apesar de não ter sido publicada a NOB-96, já era
possível reconhecer o caráter conservador que o PSF passou a assumir,
suavizador das tensões sociais que já iam se avolumando a época, e, de certa
forma, o "drible" para que a implantação de um PSF dava nas dificuldades
políticas, operacionais e de financiamento do SUS.
O PSF ao contemplar ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde, tem
contribuído para os indicadores sociais da população assistida, permitindo a
racionalização do uso dos serviços de média e alta complexidade do SUS,
solucionando em até 85% os problemas das famílias com redução de custos. Ele
deve ser a porta de entrada do sistema local de saúde, mas para tal mudança
exige a integração entre os vários níveis de atenção(2).
A responsabilidade de cuidar da saúde das famílias de forma universal,
integral, equânime, contínua e, acima de tudo, resolutiva, faz do PSF o caminho
de "completar" a Reforma Sanitária, no que tange ao desenho e à
operacionalização de um novo modelo de atenção à saúde. Buscando ter clareza do
significado do PSF, mas não fugindo dele como realidade concretamente
estabelecida, consideramos que a adesão consciente a este projeto poderia
representar um avanço mais propriamente do ponto de vista técnico, de
aperfeiçoamento da clínica - em relação aos velhos programas verticais para
organizar a ação no território.
3. A ANTROPOLOGIA CULTURAL
Após diversas leituras(16-18) e entendimentos sobre o que é antropologia,
chegamos à compreensão de que a antropologia cultural é o ramo da ciência que
visa essencialmente o conhecimento do homem, desde as suas origens biológicas
ao seu comportamento comunitário e social. Ela permite compreender as
diferentes formas de vida em sociedade: do ponto de vista político, facilita o
relacionamento social e cultural com outros povos.
Os antropólogos culturais estudam a cultura dos povos, em sua sociedade,
concomitantemente com suas crenças, valores e atitudes que direcionam o modo de
percepção e ação dessas pessoas que estão sendo analisadas(16).
Como cultura entendemos que seja a apreensão de significados, crenças e valores
que impulsionam a nossa maneira de se colocar no mundo e é repassada por
gerações. Assim, muitas das vezes, a cultura é idealizada como única, tornando-
se até dogmática.
Laraia(16)enfatiza que o fato do homem olhar o mundo através de sua cultura o
deixa propenso a considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais
natural. Tal tendência, na qual é denominada de etnocentrismo, e é responsável
em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos.
Os germânicos no início do século XIX utilizavam os termos Kultur para
representar os aspectos espirituais de uma comunidade. Já os franceses
utilizavam Civilizationpara representar as conquistas matérias. Porém Tylor
sintetizou esses termos na palavra Culture (inglesa) e ampliou os significados,
utilizando a etnografia e sua inserção nos conhecimentos das crenças, atitudes,
valores, hábitos, moral que são adquiridos pelo homem em determinada sociedade
(16).
Helman(17) sintetiza a definição antropológica de cultura, colocando-a como um
conjunto de aspectos que os indivíduos herdam ao integrarem uma determinada
sociedade e, esses princípios, permitem que as pessoas vivenciem e comportem no
mundo social.
Malinowski ao discutir o que é a cultura, descreve como um "conjunto integral
dos instrumentos e bens de consumo, nos códigos constitucionais de vários
grupos da sociedade, nas idéias e artes, nas crenças e costumes humanos"(18).
Acrescenta ainda que a cultura pode ser simples, primitiva, complexa ou
desenvolvida, mas é ela que possibilita o homem a lidar com os problemas
concretos e específicos que se deparam, e que suas necessidades impõe-se a
respectiva cultura, ou seja, resolvem os seus problemas, suas necessidades,
mediantes a sua cultura, o nível cultural, o padrão cultural, da comunidade
onde está inserido, e esta tradição cultural é transmitida de geração para
geração e por isso, em cada cultura, deverão existir mecanismos e métodos de
caráter educativo, pois ao satisfazerem a suas necessidades básicas, os homens
conjugam as suas necessidades culturais, e desta forma podemos perceber um
vínculo direto, bem como uma influência e dependência face as suas ações e sua
cultura, onde a crença religiosa é um bom exemplo a ser dado.
4. VISÃO ANTROPOLÓGICA DE SAÚDE E O CUIDADO NO PSF
Acreditando que a cultura reflete o modo de pensar, agir e se pronunciar
mediante as diversas situações, deve-se refletir a importância da busca de uma
visão antropológica de saúde neste novo modelo de atenção à saúde, assim como
no cuidado de enfermagem.
A cultura é um dos fatores que possa a vir determinar e/ou contribuir para os
agravos à saúde e o processo de saúde e doença, tanto de quem está sendo
cuidado, assim como de seus cuidadores. Desta forma, a compreensão da cultura
na formulação e prestação do cuidado torna-se um dos fatores fundamentais,
principalmente no PSF, visto que os profissionais de saúde estão inseridos nas
comunidades e freqüentam os lares dos usuários ao fazerem as visitas
domiciliares.
Com a prática profissional, já se sabe da dificuldade do paradigma mecanicista-
positivista (biomédico) para dar conta da saúde da população, o qual este tem
um papel significativo nas crises do setor saúde. A crise da medicina ocidental
refere-se a crise de seu paradigma dominante, que se identifica com a postura
positivista, que concebe o Ser Humano como uma máquina, fragmentando suas
partes. O papel do profissional de saúde é o de intervir na parte afetada e
que, por conseguinte, levar as especializações, a perder a abordagem do cliente
ou usuário como Ser Humano(19).
Para Queiroz(20): Existe um consenso nas Ciências Sociais, de que a compreensão
da saúde e da doença não pode prescindir de fatores sociais, culturais e
psicológicos, (..) tanto a saúde como a doença, depende em grande medida de
componentes subjetivos e emocionais relacionados à experiência de vida.
Vislumbrando uma prática de cuidado coerente com a cultura de quem cuidamos,
faz-se necessário o conhecimento e o respeito desta. A compreensão da cultura
aumenta o conhecimento do cuidador, proporcionando uma abordagem mais eficaz,
com identificação de problemas vinculados ao processo de saúde e doença muitas
das vezes não identificada em ambientes formais de atendimento.
Mauksch apud Elsen(21): "toda a família tem um `estado' de saúde (...) com as
quais seus membros contribuem dentro do contexto de sua cultura, sua
consciência sobre conhecimentos relevantes de saúde."
O Profissional que atua no PSF, ao prestar uma assistência no ambiente do
próprio usuário ao fazer visitas domiciliares, depara-se com questões sociais e
culturais, e é neste momento que ele amplia a sua visão de saúde para uma visão
também antropológica, mesmo que implicitamente. A importância de uma visão
antropológica de saúde no cuidado de enfermagem faz-se necessária para
complementar uma assistência adequada dentro de uma comunidade no PSF, e assim
contribua para a promoção da saúde, partindo desta visão, assim como na
resolução, ou minimizando os problemas diagnosticados.
Trad & Bastos(22) mencionam ser imprescindível não simplificar um objeto
tão complexo como a família no momento de definir e avaliar práticas de saúde.
É necessário perguntar de que família, falamos, (...) reconhecer a família como
espaço privilegiado de constituição, desenvolvimento, crise e resolução dos
problemas de saúde individuais e coletivos.
Não podemos nos esquecer que essa família está inserida em uma comunidade que
está inserida em uma sociedade e que possui sua própria cultura, seus valores,
crenças, significados e atitudes que irão direcionar seus modos de percepção e
suas ações. Se nós, profissionais de saúde, nos esquecermos disto, não
estaremos realizando a vigilância da saúde, a qual é: "o modelo de saúde
alternativo que entende a saúde como produção social, como um processo
construtivo que uma coletividade pode conquistar no seu dia-a-dia"(6).
Busca-se com isso, a compreensão de um processo de responsabilidade
compartilhada das ações em saúde, incluindo uma sintonia com os diferentes
setores (intersetorialidade) e participação social. As pessoas, os usuários
desta estratégia, ao adquirirem esta consciência de quem podem tomar a
iniciativa, passam a ser sujeitos capazes de elaborar projetos próprios de
desenvolvimento, tanto individualmente como coletivamente(6).
É fundamental que avancemos no caminho da saúde, na recuperação do sujeito com
seus desvios de saúde, um modelo de expansão da vida, onde teremos uma "ordem
médica mais suave". Acreditamos que ao caminharmos para essa visão mais ampla
de saúde poderemos ampliar as práticas de saúde no PSF, proporcionando aos
sujeitos participantes a possibilidade de construir sua saúde e sua cidadania.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando as reflexões assinaladas, observamos que há necessidade de
compreendermos a antropologia cultural para fundamentar a prática de enfermagem
para que não contrariemos as expectativas dos usuários e não os conduza ao
etnocentrismo, visto que no PSF trabalhase com uma população adscrita que tem
seus valores, hábitos e culturas.
Acreditamos que ao resgatarmos o que de fato é essa nova estratégia de
reorientação da atenção básica e valorizarmos a cultura dos indivíduos que
estão ali inseridos, percebendo a relação direta dos seus significados com o
desenvolvimento da prática de enfermagem estaremos dando um grande passo ao
cuidar integral.
Ao entendermos cultura como pública, como herança, tradição, premissa, teia de
significados, como sendo pública, possuindo aspectos objetivos e subjetivos,
perpassando pela satisfação das necessidades básicas, repletas de crenças,
mitos, valores e atitudes, passamos a olhar o homem como um ser que influencia
e é influenciado por essa cultura, e assim traçarmos estratégias de cuidados de
enfermagem mais adequadas a cada família a ser cuidada.
A enfermagem não pode se esquecer que ela cuida de indivíduos com as suas
respectivas famílias, não podendo assim dissociá-lo desse emaranhado de
significados que interfere no modo como o indivíduo se coloca e age no mundo, e
essas ações incluem o modo como ele promove a sua saúde, cuida de sua saúde e
de como busca caminho para a cura, tais condições interferem diretamente no
processo de saúde e doença.
Julgamos assim, que uma prática de saúde que incorpore uma visão antropológica
de saúde, ou seja, incorpore a cultura da comunidade/família/individuo seria um
grande avanço para uma nova prática e assistência de enfermagem no PSF,
fazendo-se deste, um caminho para uma ruptura do binômio saúde-doença que
focaliza a saúde como ausência de doenças sem levar em conta o meio onde o
sujeito vive, suas condições sociais e culturais, tão arraigado nos
profissionais de saúde e na sociedade. Com essa visão o PSF seria de fato uma
estratégia para o novo modelo de vigilância de saúde.
Em função do foco deste estudo endossamos a importância de buscarmos uma visão
antropológica de saúde, ou seja, adequarmos as atividades desenvolvidas pelos
enfermeiros (as) a cultura da comunidade/família/indivíduo, nesta nova
estratégia, para que de fato o PSF seja implementado efetivamente. A
participação dos enfermeiros (as) é essencial, visto estar em contato
permanente com a comunidade, com suas famílias e com indivíduos que precisam
muito de nós, dentro de suas expectativas, necessidades, desejos, culturas e
valores.
Fundamentadas em Teixeira(23) e Saboia(24) a formação de enfermagem tem como
alicerce o saber técnico e científico que privilegia a racionalidade
científica, refletindo em uma atuação profissional que pouco valoriza a
subjetividade e outras formas de saberes e práticas, e a religiosidade será
focada nesse estudo é uma delas. Consideramos assim, que estudos sobre a
temática analisando e aprofundando a compreensão sobre os conceitos de cultura
propiciará uma prática mais ampliada da realidade que é dinâmica.