Formação do enfermeiro para o cuidado: reflexões da prática profissional
REFLEXÃO
Formação do enfermeiro para o cuidado: reflexões da prática profissional
Education of the nurse for caring: reflections of professional practice
Formación del enfermero para el cuidado: reflexiones de la práctica profesional
Ana Célia Caetano de SouzaI; Maria José Matias Muniz FilhaII; Lúcia de Fátima
da SilvaIII; Ana Ruth Macedo MonteiroIV; Ana Virgílio Melo FialhoV
IEnfermeira. Especialista em Enfermagem Médico Cirúrgica. Aluna do CMACCLIS,
Fortaleza, CE. anaceliacs@terra.com.br
IIEnfermeira. Aluna do CMACCLIS, Fortaleza, CE. Especialista em Enfermagem
Médico Cirúrgica e em Enfermagem em Cardiovascular
IIIEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora do Curso de Graduação em
Enfermagem e do CMACCLIS da UECE, Fortaleza, CE
IVEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora do Curso de Graduação em
Enfermagem e do CMACCLIS da UECE, Fortaleza, CE
VEnfermeira. Doutora em Enfermagem Professora do Curso de Graduação em
Enfermagem e do CMACCLIS DA UECE, Fortaleza, CE
1. INTRODUÇÃO
Historicamente os enfermeiros destacaram-se por cuidar bem de seus clientes e
de forma organizada, envolvendo disciplina e conhecimento científico. O
cuidado, e todos os conceitos a ele inerentes (saúde, conforto, ajuda),
nortearam sua prática clínica antes mesmo de fazerem parte do corpo das teorias
de enfermagem.
A formação do enfermeiro para o cuidado, como prática profissional, tem início
em 1860, na Inglaterra Vitoriana com Florence Nightingale, onde ocorreu a
categorização da equipe de enfermagem (Nurses e Lady-Nurses), havendo uma
fragmentação das tarefas relacionadas ao cuidado, já que às ladies cabia o
ensino e supervisão, e às nurses as tarefas manuais. Vale ressaltar que para
Florence "a disciplina é a essência do treinamento'', tendo sido ali o início
da docilização dos corpos da qual não conseguimos nos libertar até hoje(1).
Até em torno de 1940, o foco da enfermagem era centrado nas tarefas e
procedimentos, sem levar em consideração a construção intelectual, fato este
que ainda se reproduz, no que concerne, principalmente, aos técnicos e
auxiliares de enfermagem, que, dado o seu tempo de formação, são mais voltados
para a técnica.
Em 1950, a enfermagem passou a buscar princípios científicos, em outros
saberes, focados no modelo biomédico, buscando-se concretizar a dimensão
intelectual do seu trabalho. Neste período também firmou-se a figura do
trabalho em equipe.
A partir de 1960, a enfermagem iniciava a fase de construção de um corpo de
conhecimentos próprio, elaborando teorias para embasar a sua prática
profissional. As primeiras teorias foram desenvolvidas por enfermeiras norte-
americanas e difundidas para outros países.
Em 1970, no Brasil, por meio da sua primeira teórica Wanda Horta, cria a
primeira teoria de enfermagem brasileira, a qual denominou Teoria das
Necessidades Humanas Básicas. No entanto, as teorias de enfermagem, apesar de
serem consideradas importantes no ensino, uma vez que são reproduzidas nos dias
atuais em nossas escolas, sua aplicabilidade na prática não se concretizou, em
virtude não ser levado em consideração o contexto no qual se dá o exercício
profissional, ainda pautado no modelo biomédico.
É importante considerar que a formação de enfermeiros no Brasil teve seu início
em 1923, quando Carlos Chagas criou a escola de enfermeiras do Departamento
Nacional de Saúde Pública, com o objetivo de melhorar as condições sanitárias e
de saúde pública no Brasil(2).
O currículo foi então desenvolvido para atender às questões sociais, políticas
e econômicas do país, no entanto foi baseado em padrões franceses e em seguida
norte-americanos. Em 1949, a lei 775/49 uniformizou o ensino de enfermagem no
Brasil e, nesse período, as escolas de enfermagem eram dirigidas por médicos,
também responsáveis pela formação dos enfermeiros de forma que atendessem às
demandas médicas na execução de tarefas reforçando a postura dócil e servil(2).
É importante salientar que durante essa fase, a prioridade era a execução de
técnicas e a divisão de tarefas, o que contribuiu para uma fragmentação do
cuidado prestado ao cliente, concebido, na ocasião, apenas como receptor da
ação de enfermagem.
Com a reforma universitária em 1970, o currículo de enfermagem passou a ser
composto de três partes: pré-profissional, tronco profissional comum e as
habilitações. A exigência mínima era de 2500 horas, dando ênfase aos estágios
práticos, porém havia concretização na prática, contribuindo para um melhor
desenvolvimento no processo de cuidar. A partir da década de 1970, ocorreram
vários movimentos políticos e sociais como a conferência de Alma-Ata em 1978, o
que possibilitou um repensar do processo saúde-doença, levando a enfermagem a
uma mudança na postura da prática profissional com o intuito de atender às
demandas emergentes. Para isso foi necessário a enfermagem rever vários
conceitos e posturas o que culminou em mudanças curriculares, contribuindo para
um processo de transformação na profissão.
A implantação do SUS, através da promulgação da nova Constituição Brasileira em
1988, e das Leis Orgânicas da Saúde em 1990, suscitou discussões sobre novas
formas de abordar o processo saúde-doença, dentro de um contexto sócio-
histórico-político-econômico que promoveu amplos debates por parte dos
profissionais de saúde, governo e sociedade civil organizada.
Diante destes fatos, houve a necessidade de construção de uma nova estrutura
curricular, já que a anterior não mais correspondia às mudanças sócio-política-
econômicas pelas quais o país estava passando. Essas mudanças tiveram um
componente bastante importante, pois a população pôde participar ativamente por
meio de propostas e avaliação do contexto da saúde pública no país. Isto
contribuiu para uma nova forma de se ver a assistência à saúde, permitindo uma
maior aproximação entre profissionais de saúde e cliente.
As escolas de graduação de enfermagem de todo o país realizaram várias
discussões acerca da elaboração e implementação de um projeto político
pedagógico para a profissão viabilizado por oficinas de trabalho envolvendo
docentes, discentes, profissionais da assistência, entre outros atores, com o
intuito de provocar mudanças no ensino de enfermagem no Brasil a partir da
implantação de uma nova estrutura curricular.
Hoje, os Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) da enfermagem, baseados em novas
diretrizes curriculares, adotadas em consonância com a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9394/96, proporcionam mudanças no processo
de formação do enfermeiro, de modo que a ênfase, deixa de estar centrada no
modelo biomédico, caracterizado pelo estudo da doença, aprendizagem e
reprodução de técnicas e tarefas, e passa a estar centrada em um modelo
holístico, humanizado e contextualizado, formando profissionais críticos,
criativos e éticos para atuar na prática profissional.
A perspectiva das diretrizes curriculares para a formação de enfermeiros é:
"... formar enfermeiros com compreensão científica, técnica, política e ética,
capazes de intervir no processo saúde-doença do ser humano, numa perspectiva
crítico-transformadora voltada para o cuidar, o educar, gerenciar e pesquisar,
caracterizando interesses técnicos, práticos e emancipatórios"(4).
É preciso mencionar que as escolas de enfermagem, apesar das novas diretrizes
curriculares, não produziram mudanças significativas no ensino de enfermagem no
país, uma vez que ainda poucos são os profissionais formados nesta proposta,
talvez por isso são poucas as transformações ocorridas na prática profissional
que têm contribuído para um cuidado pautado no atendimento integral ao ser
humano.
2. REFLEXÃO
Podemos constatar que o processo de formação do enfermeiro evoluiu desde a
época de Florence até os dias atuais. Inicialmente, este estava ligado aos
aspectos de controle do ambiente, teoria ambientalista de Florence, passando
depois para uma fase na qual havia uma ênfase maior na aprendizagem de questões
técnicas, com o foco em tarefas e procedimentos de enfermagem. A fase de cunho
científico teve início com o ensino voltado para o desenvolvimento de
procedimentos embasados em princípios científicos.
O ensino científico direcionado para aprendizagem dos aspectos técnicos reforça
o modelo biomédico e dificulta uma maior aproximação com o cliente, pois,
quando formados, os profissionais tendem a ter uma maior preocupação em atender
às necessidades biológicas do indivíduo, colocando em segundo plano o
envolvimento com outros aspectos do ser humano.
O comum na prática profissional são os profissionais de enfermagem aproximarem-
se dos clientes quando vão realizar algum tipo de procedimento, mesmo que
estejam preocupados com outras necessidades, ligadas à manutenção da
hemodinâmica do indivíduo, pela observação rigorosa dos sinais vitais, do
funcionamento adequado dos equipamentos, aprisionam os profissionais ao aparato
tecnológico, o que geralmente é reforçado pelas instituições e pela própria
legislação profissional(5).
Ainda, o cuidado sempre esteve ligado à atividade de enfermagem, antes mesmo do
advento da enfermagem moderna, no entanto destaca que o termo cuidado na
prática profissional não tem revelado interesse no atendimento às dimensões
existenciais do ser humano(5).
Portanto, apenas a introdução de novas diretrizes e, conseqüentemente, de novas
estruturas curriculares não possibilita a formação de profissionais críticos,
reflexivos e transformadores da realidade, há uma necessidade de mudança na
visão dos próprios docentes concernentes ao papel da universidade na
comunidade, possibilitando uma aproximação entre os discentes e esta, pelo
desenvolvimento nesse aluno de habilidades em lidar com os problemas
existentes.
O cuidado é compreendido como a essência da enfermagem, transcendendo aspectos
técnicos e biológicos, psico-sociais e espirituais do indivíduo, família e
comunidade, envolvendo a provisão de ajuda, atenção, respeito, amor e
compreensão mútua. Para que o cuidado seja efetivado é necessário que o meio
ambiente físico, social e administrativo valorizem o cuidado e entendam o
significado do cuidar(6).
Na enfermagem o termo cuidado é bastante abrangente e encerra todas as
dimensões do indivíduo. Este, no seu contexto mais amplo, promove no ser
cuidado uma sensação de ser respeitado em sua individualidade e no ser que
cuida a sensação de responsabilidade pela vida do outro.
É importante destacar que existem alguns fatores que dificultam o cuidado
profissional, que vão desde o déficit de conhecimento, fator essencial, uma vez
que a educação funciona como eixo central da assistência de enfermagem
prestada, até a relação dos cuidadores em cumprimento às rotinas e divergências
quanto ao trabalho.Tais fatores perpassam ainda pela precariedade dos serviços
ofertados, jornadas de trabalho exaustivas, plantão noturno, remuneração
insuficiente, competitividade profissional, excesso de responsabilidades, falta
de identificação profissional e a falta de uma ética específica menos
dependente da ética e das decisões médicas, entre outros.
Esses fatores repercutem na integração entre o que se preconiza nas diretrizes
curriculares e o produto da formação, pois as propostas para formação de
profissionais voltados para uma prática transformadora da realidade não
encontram sustentação em uma prática fragmentada, dicotomizada e mais
preocupada em atender os interesses dominantes, dificultando o atendimento das
necessidades de saúde da população.
3.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das mudanças no currículo de enfermagem, das discussões suscitadas
dentro das escolas que culminaram na elaboração, em 1990, das diretrizes
curriculares para a profissão, ainda não produziram mudanças profundas no
ensino de enfermagem no sentido de aproximá-lo o mais possível das exigências
do mercado de trabalho e ao mesmo tempo de preparar profissionais comprometidos
com uma verdadeira transformação da realidade prática da enfermagem brasileira.
O cuidado de enfermagem está distanciado da prática profissional à medida que
os enfermeiros não têm conseguido, com poucas exceções, viabilizar ações de
enfermagem voltadas para o cuidado individualizado da clientela. A ênfase nos
procedimentos técnicos, mediante o cumprimento de regras e normas e da
priorização de tarefas voltadas para aspectos biológicos do ser humano, ainda
está presente no seu cotidiano, o que muitas vezes a torna apenas uma atividade
complementar à atividade de outros profissionais, principalmente da atividade
médica.
É preciso que o indicativo das novas diretrizes curriculares possibilite uma
mudança no contexto da enfermagem brasileira, de maneira que proporcione a
formação de profissionais críticos, verdadeiramente preocupados com as reais
necessidades da clientela. Afinal o enfermeiro deve ser agente promovedor e
defensor de saúde para todos, caracterizando-se como um profissional
comprometido com a profissão, à medida que incorpore os conhecimentos da
academia à sua realidade prática, buscando sempre estabelecer um elo constante
com essa, no sentido de melhorar seus conhecimentos práticos em benefício da
comunidade.