Fragmentos da história: a enfermeira tornando-se sujeito de si mesma
HISTÓRIA DA ENFERMAGEM
Fragmentos da história: a enfermeira tornando-se sujeito de si mesma
Fragments of history: the nurse becoming a subject of herself
Fragmentos de la historia: la enfermera volviendose sujeto de si misma
Valéria Lamb CorbelliniI; Marilú Fontoura MedeirosII
IEnfermeira. Doutora em Educação. Professora Adjunta e Coordenadora de
Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, RS. vlamb@pucrs.br
IIPedagoga. Doutora em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, RS
1. INTRODUÇÃO
Até a década de 1950, o ensino da Enfermagem estava centrado no fazer. Os
manuais de técnicas(1) eram as bíbliasdos estudantes. A habilidade manual, a
capacidade de memorização, a postura na realização das técnicas, além do
capricho, organização e perfeição, eram aspectos imprescindíveis, avaliados no
ensino.
A partir da década de 1960, a Enfermagem(2) buscou a cientificidade, por meio
das técnicas, mas a sua base científica era fundamentada no saber da Medicina.
Foi um período(3) em que o ensino e a prática se tornaram cada vez mais
distantes."(...) há uma barreira separando os que ensinam a prática e os que
praticam a prática, favorecendo as contradições e o agravamento da crise de
identidade da Enfermagem".
A partir da década de 1980, vários autores(1,3-5) marcaram em suas produções
intelectuais o que poderia ser caracterizado como a produção de um "despertar
crítico", conduzindo a uma reflexão de como as relações de poder influenciavam
o ensino e a prática da Enfermagem.
A partir daí, outros estudos(2,6-8) têm referido o ensino como um dos fatores
determinantes na "domesticação" da Enfermagem, em detrimento da formação de uma
área de conhecimento crítica e específica para a profissão.
Se fizermos uma análise desse período, até a década de 1980, observamos que a
técnica prevalecia no fazer da enfermeira; entretanto, existia um saber, como
bem diz Foucault, sujeitado, que foi construído ao longo da sua trajetória
profissional e que partiu de uma prática, por ter sido uma profissão fortemente
alicerçada no fazer, considerado no campo da Saúde como um conjunto de "saberes
hierarquicamente inferiores", "saberes desqualificados pela hierarquia do
conhecimento ou da cientificidade requeridas"(9).
A enfermeira, ao mesmo tempo em que se sujeitou a essa prática, também sujeitou
outros saberes, tanto com sua equipe, nos cuidados dos pacientes, como, também
com alunos, entre outros. São práticas que instituem saberes e teorias.
Essa relação teoria/prática, Foucault visualiza como relação muito mais parcial
e fragmentada, ou seja, para ele, uma teoria só forma um corpo, quando há
revezamento de uma prática à outra e a prática só se constrói como saber,
quando esse revezamento ocorre de uma teoria para a outra. E ao lhe dar voz,
ele pontua: "(...) é por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não
aplicará uma prática; la é uma prática"(9).
Com base nessas constatações, advindas da análise da literatura e de vivências
como docente, emergiram alguns questionamentos: como (re)construir um ensino
voltado para problematização de uma área de conhecimento, geradora de pesquisa
e preparada para mudanças? Quais são os jogos de verdade que permeiam na
Enfermagem? Será que esse discurso vigente de gerar corpos dóceis,
disciplinados, domesticados não é uma forma de se beneficiar, até de uma forma
inconsciente, dos jogos de poderes?
A contribuição que os estudos históricos têm para nos proporcionar se dá pela
possibilidade de um repensar, a partir de uma prática, dando visibilidade aos
conhecimentos produzidos em suas relações de saber e poder e das nossas ações
como enfermeiras e docentes, pois: "A experiência continuada de repensar e de
fazer análises críticas do passado, atribui àqueles que a vivem a capacidade de
refletir criticamente sobre a realidade e de ter uma visão menos simplista dos
nexos entre passado, presente e futuro"(10).
Desta forma, para ir em busca das visibilidades, nesse processo, julgo
importante, através da Arqueologia, Genealogia, da História oral e fundamentada
nas obras de Foucault, compreender como se deu o ensino, a partir das práticas
discursivas presentes desde a primeira Escola de Enfermagem, no Brasil e no Rio
Grande do Sul, e, por meio de momentos, mesmo que dispersos, conhecer as várias
interfaces do ensino que perpassaram esses anos.
Assim, ao desenvolver um trabalho genealógico, o estudo teve como objetivo
resgatar, a partir da década de 1950, práticas discursivas e não discursivas,
na perspectiva do ensino, pelas quais pudesse compreender algumas inquietações,
e questionando os saberes instituídos.
2. UM CAMINHO A PRECORRER....
A metodologia desenvolvida foi baseada na Arqueologia, Genealogia e na História
Oral. Pelo método arqueológico as ordens de saber são encontradas na formação
discursiva de uma determinada época. Pelo método genealógico, pode-se criticar
e descrever a trajetória das transformações discursivas. A História oral dispõe
de um meio de transformar tanto o seu conteúdo quanto sua finalidade, revelando
novos campos de investigação.
2.1 Acontecimentos que orientaram essa caminhada...
O estudo envolveu enfermeiras com idade acima de 60 anos, que foram ou são
docentes de uma Faculdade de Enfermagem, para ir à procura da regularidade na
dispersão, ou seja, "(...) ir à busca de uma nova regularidade na proliferação
dos saberes"(11).
2.2 Buscando novos discursos nesta geografia a ser trilhada...
A entrevista narrativa foi uma das modalidades de coleta. Outras formas de
trilhar em busca de novos enunciados foram por análise documental em alguns
Anais dos Congressos Brasileiros de Enfermagem, Congresso Brasileiro de Higiene
e Sul-Riograndense na década de 1950, assim como, análise de reportagens em
revistas, jornais, da década de 2000, entre outros, sempre a partir de
questionamentos do presente.
2.3 Análise Foucaultiana de Discurso
Ao escolher Foucault como fio condutor, não poderia deixar de eleger como
análise documental, o discurso. Para tanto, realizar a análise de um discurso
exigiu, por parte do pesquisador, uma atitude, no mínimo, de arqueologista, ou
seja, a de esquadrinhar os enunciados, sejam eles de entrevistas, de
documentos, revistas, jornais, de interlocutores anônimos, da mídia etc.
2.4 Considerações Éticas
Antes de iniciar as entrevistas, respeitando os aspectos éticos, conforme
Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(12) e aprovado pelo Comitê de
Ética da Universidade, apresentei a cada enfermeira o termo de consentimento
livre e esclarecido. Após a leitura, o termo foi assinado pela participante e
pela pesquisadora, em duas vias, para que cada uma ficasse com uma cópia. As
entrevistas foram gravadas e transcritas pela pesquisadora.
3. EM BUSCA DE FRAGMENTOS DOS DISCURSOS
Ao falar de como a enfermeira tornou-se sujeito de si mesma questiono: que
sujeito é esse que se instituiu na Enfermagem? Que modos de subjetivação o
constituiu?
Ao refletir sobre essas questões, reporto-me aos três domínios do saber, do
poder e da ética, que Foucault coloca como estabelecimento nas relações do
sujeito sobre as coisas, dos outros e sobre si. Para ele(13) a questão central
está focalizada em como nos constituímos como sujeitos de nosso saber, que
exercem ou sofrem relações de poder e, a partir daí, que ações nós tomamos como
sujeitos morais, como estilo de vida, uma ética, uma estética da existência.
Nessa tríade, a enfermeira foi se constituindo e tornando-se sujeito de si
mesma, numa relação de poder/submissão/dominação, exemplificado na fala de Sol
quando nos verbaliza o seu primeiro emprego como enfermeira:
No dia que me formei eu recebi três convites de trabalho(...)resolvi
aceitar o hospital do turno da tarde (...)Neste hospital havia
residência, de três enfermeiras, duas dormiam no hospital, pois não
tínhamos enfermeira à noite, não tínhamos UTI e não tínhamos sala de
recuperação. Todos os pacientes que estivessem mal, eu como era do
turno da tarde, entrava no turno da noite cuidando deles, caso
houvesse alguma complicação. Com muita freqüência eu entrava às 15h e
saía às 7h do dia seguinte, porque os pacientes que estavam mal, nós
não delegávamos para os práticos, os coordenadores do plantão
noturno, que eu estou lembrada, todos eles eram práticos de
enfermagem. Não havia auxiliar e nós ficávamos e isso era um acordo
entre nós e todo o paciente em estado crítico, nós cuidávamos, nós
supervisionávamos direto. Se havia urgência clínica à noite ou se
baixava um paciente em urgência, nós éramos chamadas para ficar
junto. Como tínhamos um acordo entre nós três que nunca o hospital
ficaria sem enfermeira, inclusive no Natal, Ano Novo, feriado e nós
trabalhávamos com muita harmonia, a nossa jornada de trabalho era de
8h, mas nós cobríamos o plantão noturno e não me lembro de ter tido
hora extra, o que existe hoje, não tinha na época. Era uma questão de
dever e para não perder o nosso espaço, pois estávamos começando a
adquirir. Parece, que eu me lembro bem, eu fui a primeira enfermeira,
neste hospital, que abriu a vaga do turno da tarde para enfermeira.
Nós não queríamos perder e por isso nós tínhamos grande compromisso
de mostrar que era importante ter enfermeiros no hospital e à noite
nós ficávamos. (SOL)
O que nos quer dizer esse discurso? Poderia discorrer sobre algumas questões
importantes, ou seja, a enfermeira ao começar ocupar um espaço geográfico na
área hospitalar precisou encontrar estratégias de poder que a legitimasse,
neste primeiro momento, como uma profissional importante na área da saúde e uma
das formas encontradas foi a de assumir um trabalho pastoral, onde o pastor
(enfermeira) precisava estar vigilante, disponível a qualquer hora do dia e da
noite, disciplinador e atento ao seu rebanho (paciente, práticos/auxiliares de
enfermagem), para que o "dever" fosse cumprido.
Ao referendar o "trabalho pastoral", trago à luz o que Foucault referiu sobre
poder pastoral(14), ao fazer uma analogia uma analogia em relação ao pastor que
guia e vigia o seu rebanho de ovelhas, cuidando, protegendo cada uma delas com
disciplina, abnegação, docilidade e preocupação constante. Foi uma metáfora
utilizada por ele para mostrar como essa tecnologia de poder age sobre as
pessoas, a sociedade, o Estado.
E esse zelo, esse cuidado pastoral esteve presente na fala de Sol ao colocar:
(...) nós à noite, nos plantões, nos quartos, só ficavam a luz acessa
do corredor, mas nós usávamos o foco para visitar os pacientes e
usávamos, acho, que a lâmpada da Florence, o farolete e fazia parte
da bandeja do plantão noturno e nós caminhávamos, o sapato tinha que
ser de sola de borracha, era para evitar ruídos e nós visitávamos
paciente por paciente, baixinho, com aquele farolete e nós até éramos
orientadas de como tínhamos que utilizar. Começávamos pelo pé da cama
e víamos o abdômen, se estava respirando bem, baixava, seguia um
ritual assim e indiretamente observava a face do paciente e não se
ouvia barulho, não se ouvia essas vozes horrorosas. Os pacientes
dormiam profundamente, víamos que realmente havia um descanso (...)
Além de assumir esse papel vigilante, pastoral que apascenta o rebanho e quer
vê-lo descansado, foi instituído todo um ritual de como vigiar esse paciente,
sem acordá-lo no seu momento de repouso. O "farolete", com o tempo, foi extinto
dos materiais utilizados pela enfermeira, porém outras estratégias foram
instituídas, no sentido de manter esse controle, como por exemplo, a
verificação dos sinais vitais, no mínimo, uma vez por turno, tendo que acordar
o paciente, por volta das 5h, 6h da manhã e em algumas situações
incompreensíveis, banhá-lo nesses horários, para cumprir uma "tarefa".
Esses exemplos demonstram que o hospital, assim como a prisão, a escola, o
quartel, passa a ser uma instituição disciplinar, controladora, produzindo
sujeitos submissos e esquadrinhando comportamentos:
(...) tínhamos que ter um censo de vigilância para com o paciente.
Quando havia qualquer situação que se poderia imaginar ou questionar
que tinha havido um descuido por parte da enfermagem, nós (alunas)
éramos severamente advertidas, isso era uma coisa muito séria(SOL).
E esse senso de vigilância que a enfermeira institui como um "dever", ainda na
Graduação, faz com que ela, depois de formada, assuma o posto de "síndica/
zeladora/guardiã" de todo o ambiente hospitalar.
Ainda ouço, com freqüência, que a "dona" da unidade é a enfermeira e a ela
todos tem que se reportar. Quando o outro profissional, da área da Saúde, a
procura para saber informações de como o paciente passou a noite ou se fez
determinado exame, está, mesmo que sutilmente, pedindo licença para poder
transitar em seu espaço geográfico de dominação. Foi um modo de subjetivação
que ela encontrou para sobrepor o poder médico, fazendo com que ele se torne
dependente deste conhecimento que ela detém, por passar 24h no hospital.
Percebe-se que a enfermeira, ao criar o seu espaço e mostrar esse modelo de
competente e importante como membro da equipe de saúde, acabou incorporando
outros atributos como insubstituível, vigilante, disponível a qualquer hora do
dia e da noite, disciplinadora, o que nos faz, ainda hoje, responder por esse
modelo.
Cabe ressaltar, mais uma vez, que esses atributos, já estavam instituídos no
ensino de Graduação, formando corpos disciplinados e disponíveis, a qualquer
hora do dia ou da noite, para atender a uma ordem estabelecida no hospital e
pelo modelo preconizado na formação da enfermeira:
(...) às vezes nós íamos bem mais cedo, com freqüência nós íamos às
5h, 6h, porque, por exemplo, se havia procedimentos que tínhamos
fazer de enfermagem, uma sondagem vesical, era comum, até às 7h,
passar a sonda para encaminhar as urinas dos pacientes para o exame
laboratorial e como não havia enfermeiras, todos eram atendentes de
enfermagem, a professora de enfermagem delegava para nós e íamos de
manhã cedo fazer todas as sondagens e com freqüência também colhíamos
o sangue dos pacientes. (SOL)
E essa disponibilidade, se justificava, muitas vezes, por estarem recebendo,
"gratuitamente", moradia, alimentação e, inclusive, uniforme:
Era uma carga horária elevada (no campo de estágio) (...) Mas como
nós tínhamos residência, uniformes e tudo gratuitamente, acho que era
uma contrapartida para os campos de estágio(BRISA).
Paradoxalmente, ela trouxe um saber qualificado pela academia, sendo
reconhecido e aproveitado pela equipe médica. Mas, como modo de se fazer
presente, assumiu outros trabalhos, tais como pesar alimentos e, esse
assujeitamento se constituiu um modo de subjetivação, como nos sinalizou Sol:
A relação com os outros profissionais era muito natural. Eu percebia
que a equipe médica precisava dos nossos cuidados, porque, por
exemplo, na clínica médica, não havia utricionista, não havia
fisioterapeuta, não havia nada, só assistente social, por causa dos
casos sociais. Eles avaliavam muito o nosso trabalho pelo sucesso do
paciente, por exemplo, as pessoas internadas por nefropatias, não
existia hemodiálise, não existia UTI, então o paciente com uremia ou
coma urêmico, eles ficavam na própria unidade. As dietas, quem pesava
grama, de proteína, de glicose, éramos nós.
Entretanto, no momento em que elas foram sendo contratadas e se fizeram mais
presentes no hospital, naturalmente, conflitos começaram a surgir, tanto com a
área médica, como com os práticos de enfermagem, pois nessa época, o número de
práticos era alto, havia poucos auxiliares de enfermagem e eles assumiam todas
as atividades de cuidado, com pouco embasamento científico, apenas adquirido da
prática diária, como verbaliza Sol:
Ali sim, eu comecei a sentir o conflito profissional médico e
enfermeira. Aqui comecei a sentir por que existia uma relação muito
forte entre alguns médicos e os práticos de enfermagem. Inclusive
práticos de enfermagem que trabalhavam nos consultórios deles e que
faziam enfermagem particular na clínica deles. Eu me lembro que um
dia nós tínhamos um paciente que estava com meningite, hospitalizado
na ala particular e estava muito mal e eu estava no posto e esta
pessoa era um homem, prático de enfermagem, telefonou para o médico e
na minha frente o médico deu ordem, por telefone, para ele modificar
a medicação e eu disse: "eu vi que você estava pegando uma ordem
médica por telefone e esta ordem só a enfermeira pode receber" e ele
disse: "agora eu já recebi" e bateu o telefone e escreveu no
prontuário que era ordem do médico e administrou. Era uma situação de
extrema emergência, onde caso eu intervisse prejudicaria o paciente
na demora da administração do medicamento. Mas depois levei para a
chefia. Por isso era um dos motivos que nós não deixávamos o hospital
descoberto, nós éramos três e chegávamos a fazer jornada de 20, 24
horas. Isso era exatamente para construir uma enfermagem científica,
que eles nos chamavam de 'alto padrão' e o que nós comunicávamos e
discutíamos que era a nossa atividade e que não deveríamos deixar
brecha para que nenhuma outra pessoa nos substituísse. Ali foi uma
jornada que nós investimos muito, não sei se chamo amor à profissão,
mas aquela questão de instituir uma enfermagem e não regredir mais no
que nós acreditávamos que era.
A enfermeira permanecia no ambiente, mas à época, qualquer um da equipe,
independente da formação, atravessava-se e, desde que tivesse a "ordem" e mesmo
que fosse só verbal do médico, podia "prescrever". Era a figura do pastor, do
guardador do rebanho para um dono. Era contra isso, mesmo que não visível, que
se davam às lutas.
Os espaços de saberes que se constituíam na área hospitalar, nesta época,
estavam limitados ao do médico e dos práticos de enfermagem. Com a entrada da
enfermeira, novas delimitações geográficas precisaram ser compartilhadas e isso
não ocorreu, naturalmente, de forma tranqüila. Como se fez? Foucault nos diria
que foi preciso novos disciplinamentos desses saberes, pois a organização
interna que circulava como verdade, não incluía a enfermeira. Para tanto foi
preciso, como verbalizou Sol, "(...) não deixar brecha, para que nenhuma outra
pessoa nos substituísse", no caso, os práticos de enfermagem.
Desta forma, ao ocupar um espaço, nessa rede de poder, ela o fez como um modo
de subjetivação e de construção de saber com o doente, com a equipe e com o
hospital, tornando-se "vigilante, presente 24h", a serviço do outro. Foi um
trabalho submetido e, paradoxalmente, um modo de constituição de si, "do
cuidado de si", do qual a sociedade fez uso, inclusive sem hora extra.
Além disso, precisou mostrar que o conhecimento adquirido na faculdade faria
diferença no cuidado ao paciente. Como a equipe era formada pelo médico e pelo
prático que construíram um eixo de conhecimento e poder entre si, foi preciso
quebrar essa barreira de segredos e um dos caminhos encontrados, por ela, foi o
de não "delegar" aos práticos as "ordens" do médico em relação ao tratamento do
paciente.
A relação do médico com o prático se constituía em uma única via, ou seja, numa
ação de dominação, de subserviência, de serviço. Não era para alguém que
contestasse e é neste contexto que surge e se insurge a enfermeira, que critica
e pergunta por que não, rompendo com essa "via de mão única". Mas o que isso
quer nos dizer? Que há uma ameaça à ordem instituída e a enfermeira vem para
questionar essa ordem. Era a barreira para o científico, até pela equipe toda,
inclusive o médico.
Um exemplo desta ordem seria o que Soltrouxe em sua fala:
(...) eu me lembro que tinham uns práticos de enfermagem de 50, 60
anos que trabalhavam ali, uma história construída de mais de 30 anos
na enfermagem e tinha uma senhora de uns sessenta e poucos anos e, às
vezes, eu me lembro que uma vez eu entrei e ela, no quarto da
paciente, estava fazendo um enema na paciente em uma posição muito
inadequada e eu conversando com a paciente procurei mostrar o correto
e depois eu a chamei e ela me disse: "eu sempre fiz assim e nunca
tive problema". Mas era uma posição que não existia drenagem e esta
paciente estava retornando a água do enema, de toda a medicação e era
difícil e nós tínhamos que fazer uma supervisão muito de perto e
retornar o processo de supervisão. Mudar os procedimentos de uma
maneira artesanal para procedimentos científicos que não fizessem
infecção no paciente e confortasse.
Além disso, era preciso mudar a imagem da Enfermagem, pois como nos sinalizou
Rosa-dos-Ventos, qualquer um que trabalhava no hospital, com exceção do médico,
era considerada "enfermeira":
A luta inicial foi muito grande, não era reconhecido dentro do que
tinha enfermeira, entre ser enfermeira e faxineira era quase a mesma
coisa, era assim, a pessoa ia fazer serviços no hospital tanto
cuidava do doente como já cuidava da limpeza e até chegar o ponto de
separar bem e acabar com as atendentes, foi uma luta, eles eram um
número muito grande, eram as pessoas que tinha, não tinham culpa
nenhuma cabia a nós prepará-los um pouco, ajudar eles a se
desenvolverem. Nós trabalhamos muito com atendente também para
esclarecê-los um pouco, fomos encaminhando eles para o curso de
auxiliar de Enfermagem(...)
Os práticos/atendentes haviam ocupado um lugar de destaque de saber, mesmo que
não científico, mas reconhecido pela prática dos anos que lhes foram
concedidos. Desta forma, ao mesmo tempo em que a enfermeira os desacomoda,
também o faz com o médico, porém de forma diferente. Com o prático ela
desqualifica o seu saber e transforma esse profissional em um mero tarefeiro
que não precisa pensar, apenas executar o que lhe é mandado fazer, sem reflexão
de sua práxis. Aquele que "ousa" questioná-la é punido severamente com
penalidades como advertência verbal, escrita e suspensão do trabalho. Com o
médico a estratégia de enfrentamento se deu de outra forma, muito mais sutil,
pois, como verbalizei anteriormente, ao assumir o posto de "guardiã" da
unidade, detém um conhecimento necessário para o médico e ao enfrentar o "Deus"
no hospital, trouxe a luz às lutas que permeiam até hoje nas microcapilaridades
da tríade saber/poder/verdade.
Cabe também ressaltar que, ainda hoje, a relação enfermeira/técnico/auxiliar de
enfermagem, apesar de serem da mesma equipe profissional, é permeada por uma
relação de dominação, de controle e subserviência. Esses profissionais, que
antes, respondiam diretamente para o médico, e mesmo sendo uma relação de
dominação, não havia conflitos, mesmo porque, os saberes não competiam. Ao
passarem a responder para a enfermeira, começaram a surgir animosidades e as
lutas se instalam.
Foram micro redes de poderes que se instituíram na relação enfermeira/prático e
auxiliar de enfermagem que perpassam nos tempos atuais, ou seja, a maioria das
enfermeiras continua desqualificando o trabalho desses profissionais com
micropenalidades, como exemplo: a não valorização de suas atividades, a
sobrecarga de trabalho não questionável, o não compartilhamento de espaços como
na hora do lanche, do intervalo, de vestiário, entre outros.
Esta intrincada relação de conquistas e apropriações de espaços, Foucault
exemplifica como sendo uma centralização piramidal em quatro procedimentos, que
ele chama de eixo discurso-poder, ou eixo prática discursiva-enfrentamento de
poder(15), conforme segue:
a)Seleção, desqualificação e eliminação de pequenos saberes inúteis;
b)Normalização desses saberes entre si, comunicação entre si desses saberes
dispersos;
c) Classificação hierárquica desses saberes, permitindo encaixá-los uns nos
outros;
d) Centralização piramidal, controle dos saberes.
Ao exemplificar essas etapas, de acordo com o relato de Sol poderia referendar
que na primeira fase, houve uma seleção, por parte dos médicos, enfermeiras e
práticos de quem seria a competência de atividades e quais seriam as
atribuições da enfermeira e a dos práticos. Os saberes desqualificados,
naturalmente foram delegados para os práticos, como higiene, conforto, etc.
Após essa seleção, passou-se para a normalização dos saberes, ou seja, eles
precisaram, entre si, ser ajustados. Existia, nesse momento, uma ligação muito
forte do médico com o prático, como nos diria Foucault, muralhas de segredos
que precisariam ser derrubadas e tornar intercambiáveis não somente esses
saberes, mas aqueles que o detinham. Com essa normalização, foi preciso
hierarquizar o conhecimento, ou seja, o prático deixa de receber a ordem direta
do médico, passando essa atribuição para a enfermeira, derrubando assim, um
espaço de poder deste profissional e criando um conflito velado. Com essa
hierarquização, naturalmente, surgiu uma centralização dos saberes e quem
assumiu o topo dessa pirâmide, foi o médico, que até hoje detém esse controle,
na área hospitalar.
Volto a enfatizar que essa normalização, esse assujeitamento de poder, no
hospital, não se deu por acaso. Foram modos de subjetivação que fizeram com que
cada profissional encontrasse estratégias para um "cuidado de si". Para o
médico, teoricamente, não houve mudança no seu status e nas suas atividades
desenvolvidas, ou seja, continuou a ir ao hospital para realizar a visita aos
pacientes e não se envolveu com as questões administrativas da unidade.
Inclusive este ritual de visita(16) que assinalou o início do poder médico,
começou no século XVIII, conforme registros de hospitais da época, tanto que a
sua chegada deveria ser anunciada, com uma companhia, e a enfermeira, deveria o
estar aguardando, na porta, com um caderno para acompanhá-lo nas visitas dos
pacientes.
Este acompanhamento, no início, tinha como objetivo auxiliar o médico nos
registros, em que ele mandava anotar mudanças de procedimentos, tratamentos ou
esclarecer dúvidas em relação aos pacientes, assim como orientar para novos
cuidados, conforme verbalizado por Solao referir sobre a rotina de visitas aos
pacientes que realizava em conjunto com o médico:(...) nós visitávamos todos os
pacientes e discutíamos juntos para ver como estavam, o que continuava e se
haveria mudança. Era um ritual que acontecia todos os dias e quem comandava o
"espetáculo" era o médico, a enfermeira estava ali para cumprir ordens.
Mas essa norma de acompanhá-lo nas visitas já não faz mais parte da rotina de
muitos hospitais e quando há, percebe-se que ainda tem uma conotação muito mais
de informação sobre o estado de saúde do paciente, de aplicação ou retirada de
alguma técnica de enfermagem. Ainda são poucas as experiências em que médicos e
enfermeiras discutem sobre qual o melhor tratamento e, neste caso, não me
refiro a medicamentoso, mas ao cuidado de determinados procedimentos ou de
orientações específicas ao paciente.
Acredito que a enfermeira já avançou muito na conquista do seu espaço como uma
profissional que não está apenas para cumprir ordens ou executar técnicas, mas
para discutir, intervir e propor, em conjunto com outros profissionais da
saúde, um tratamento mais adequado ao paciente. Mas, esses espaços de lutas e
conquistas foram intermediados com muita negociação, como verbalizou Brisa, que
participou da implantação de um Serviço de Enfermagem hospitalar,ou seja, a
aceitação de voz da Enfermagem. É um sujeito comum que é colocado no holofote.
Tanto é que nós tínhamos uma proposta do Eu era a única enfermeira,
tinha dois médicos, que ficaram muito tempo no hospital. Nós
planejamos assim, fui pela Escola de Enfermagem, fazer parte da
Diretoria. Lá nós reivindicamos os mesmo direitos, dos outros
profissionais, pois a maior representatividade era a dos médicos.
Planejávamos muito: o que nós queríamos nos serviços do Hospital, e
qual o papel do enfermeiro. Depois íamos para o conselho, junto aos
conselheiros. Nós trabalhávamos antes com eles, nas reuniões, para
mostrar o que era a Enfermagem, como gostaríamos de desempenhar,
explicávamos que desde a década de 1940 o enfermeiro já era um
profissional liberal, levávamos pronunciamento de deputados,
senadores, elogiando a enfermagem como atividade liberal e que o
enfermeiro poderia realizar atividades independentes. Implantamos,
desde o começo, a consulta de Enfermagem e o trabalho com grupos,
procurando desvincular o enfermeiro das estruturas, mas centrado no
clienteenfermeiro acompanhar o cliente desde o ambulatório, internava
e voltava para o ambulatório com o mesmo enfermeiro, mas não
conseguimos o todo, a demanda foi aumentando, mas conseguimos muita
coisa, tanto é que temos a consulta de Enfermagem como atividade
independente, atividade terapêutica, quantificável, e que realmente
pode ser remunerada pelo SUS.
A Brisa, que fala neste discurso, nos apresenta uma faceta de lutas e
conquistas. Com certeza é um discurso político e histórico e, como tal, nos
fala de uma verdade perspectivada, permeada de muitos conflitos, pois, ela
chega para alterar uma ordem instituída. Foi preciso fazer desses
acontecimentos uma relação de forças que se invertesse, ou como nos diria
Foucault era preciso enfraquecer o dominante(9), utilizando, como estratégia, a
opinião pública, a voz dos governantes.
Em um primeiro momento, me parece que a estratégia escolhida foi acertada, pois
como diz no discurso, elas conseguiram quase tudo, mas principalmente fazer da
consulta de enfermagem um procedimento autônomo, e (...) desvincular o
enfermeiro das estruturas, propondo um cuidado mais centrado no paciente.
Diria que "as estruturas" eram as amarras que prendiam as enfermeiras às
questões administrativas, que elas foram lentamente assumindo como sua
atividade principal e delegando aos auxiliares/técnicos as de cuidado técnico,
pois de acordo com Sol elas eram muito exigidas nas questões administrativas,
(...) as unidades tinham que estar em ordem.
Ainda hoje, poderia ousar em afirmar que o trabalho da enfermeira, no hospital,
encontra fortemente amarrado às estruturas administrativas. Avançamos muito
pouco nessa área, ao contrário da Saúde Coletiva que trouxe mais autonomia a
ela, como bem nos sinalizou Sol:
Agora, vou dizer uma coisa, na área da comunidade, eu vejo como
bastante promissor, a área da saúde coletiva. Essa área está
realmente atendendo a pessoa no seu ambiente, na sua cultura, na sua
família e trabalhando em equipe. Existe um diálogo, a pessoa é
ouvida.
Todas essas questões nos fazem pensar que o espaço ocupado pela enfermeira, no
hospital, apesar de sempre ser considerado um ambiente mais nobre, de maior
"poder" do que a área da saúde coletiva trouxe a ela, em contrapartida,
submissão, dependência a outros profissionais. Ao mesmo tempo em que foram
incluídas nesse domínio de poder, foram excluídas de exercerem a tão desejada
autonomia profissional.
5. UM ÚNICO SOLO PARA O ENSINO DE ENFERMAGEM?
Os vários saberes que foram sendo constituídos na trajetória da enfermeira, a
partir da década de 1950, no RS, sejam eles denominados de sujeitados,
desqualificados, fragmentados, populares, de lutas, científicos, entre outros,
estiveram ancorados na construção histórica da profissão, imprimindo, em nosso
cotidiano atual, verdades consagradas, impenetráveis e mantenedoras de
múltiplos modos de constituição da existência, do si-Enfermagem.
Em vários momentos assumimos esse papel, seja na academia, no cotidiano da
vida, nas relações profissionais, o que nos faz analisar se é possível nos
libertar desta trama que nos aprisiona e buscar um outro caminho que nos
possibilite enxergar as múltiplas faces dos saberes como verdades que se
interligam e se tornam interdependentes uma das outras.
E nessas lutas que se travam, o ensino de Graduação em Enfermagem foi se
constituindo como uma prática alicerçada nos saberes que a enfermeira foi
assujeitando e se sujeitando como cuidado de si. Nessa rota percebe-se que as
micropenalidades, o rigor disciplinar presente ainda hoje, de forma sutil, está
alicerçado em regimes de verdade construídos para atender a uma ordem
instituída, seja ela no meio acadêmico ou nas instituições de saúde. Mas como
romper essa ordem? Quais os caminhos possíveis a percorrer para transformar uma
prática de submissão, acomodação, para uma de liberdade?
Talvez, um dos caminhos seja o de problematizar, cada vez mais, questões
referentes às relações de poderes instituídas na área da Saúde, assim como
redesenhar, no ensino de Graduação, práticas de saúde que permitam ao aluno
vislumbrar outras possibilidades como um sujeito que também é co-partícipe
dessa realidade social.
O fato de como nos constituímos, como sujeitos de nosso saber, possibilita
vislumbrar outras trilhas como práticas de liberdade, o que Foucault nos
sinaliza como sendo cuidar de si, para se conhecer e romper com estruturas, com
hegemonias de poderes.
A análise de nossas ações, o cuidado de si, como enfermeiras, que, até então,
era voltado somente para pacientes ou alunos, como uma forma de existência,
permite viver ou enfrentar de outro modo (ou não) o significado que imprimimos
nesses relacionamentos, assim como, constatar quais os jogos de verdades que
permeiam as relações de saber-poder, propondo, com isso, a constituição de um
outro sujeito, mais ciente das suas ações.
Outros foram os enunciados evidenciados ao longo deste estudo e merecedores de
análise, que tiveram a sua gênese no ingresso da enfermeira, na área
hospitalar, quando ela se constitui e se torna sujeito de si mesma, numa
relação de poder/submissão/dominação, assumindo um trabalho pastoral. Ela
utiliza essa estratégia para ocupar um espaço que era a do prático/atendente/
auxiliar de enfermagem e inicia todo um ritual de controle, disciplinamento
para com o paciente e equipe de saúde que permanece, nos tempos atuais. Foram
modos de subjetivação que fizeram com que cada profissional encontrasse
estratégias para um "cuidado de si". São práticas de liberdade que possibilitam
à enfermeira uma maior projeção nas instituições de Saúde, e, dentre elas,
destaco a efetiva integração academia/assistência, tendo como uma das vias a
pesquisa integrada.
O ensino de Graduação em Enfermagem, a partir da primeira escola no RS e no
Brasil, iniciou a sua rota, pautada no fazer e no saber da área médica. Aos
poucos foram-se incorporando práticas que mudassem, em parte, esse fazer e
saber, porém, o ensino continua fragmentado, à margem das políticas de Saúde e
gerando, ainda, em algumas situações, corpos dóceis e disciplinados.
Ao continuar trilhando, nesse espaço geográfico, encontramos brechas, fissuras
que possibilitam outros jogos de verdades, no universo acadêmico, entre eles,
mesmo que incipiente, a vivência de conceito ampliado de saúde e a articulação
de saberes nessa área; o desenvolvimento da integralidade do cuidado como um
dos eixos norteadores nas práticas de saúde, propiciando ao usuário/paciente a
efetiva participação e escolha do tratamento como um direito seu; maior
responsabilidade, por parte dos alunos, docentes e enfermeiras em relação às
redes de serviços, não somente na atenção básica, mas em outros cenários,
mudando a perspectiva de que o retorno deva pertencer ao usuário/paciente e não
ao profissional da Saúde; formar profissionais com capacidade para a
integralidade de atenção à saúde, para atuação multiprofissional e com
apropriação do SUS.