Concepção de corpo em Merleau-Ponty e mulheres mastectomizadas
INTRODUÇÃO
Atualmente, em razão da elevada incidência, o câncer de mama torna-se uma das
grandes preocupações, principalmente pelos impactos físicos, psicológicos e
sociais que acarreta para a saúde da mulher. Viver com uma doença ligada a
estigmas, conviver constantemente com incertezas, bem como com a possibilidade
de recorrência do câncer de mama constituem-se em algumas das frequentes
dificuldades enfrentadas no cotidiano feminino.
No Brasil, o câncer de mama feminino constitui-se numa patologia maligna de
maior incidência populacional, e tem seu quadro agravado por ser diagnosticado
em fase tardia, em particular nas classes com menor poder aquisitivo(1). De
acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA), a neoplasia de mama é a
segunda mais frequente no mundo e a mais comum entre as mulheres. Para o ano de
2008, o INCA estimou cerca de 49.400 novos casos de câncer de mama, com um
risco estimado de 51 casos a cada 100 mil mulheres. No País, a cada ano, cerca
de 22% dos casos novos de câncer em mulheres são de mama(2).
A eclosão desta doença na vida da mulher acarreta efeitos traumáticos, para
além da própria enfermidade, onde a mulher se depara com a iminência da perda
de um órgão altamente imbuído de representações, assim como o temor de ter uma
doença incurável, repleta de sofrimentos e estigmas(3).
A mastectomia e a terapia conservadora constituem-se como as principais
terapêuticas cirúrgicas disponíveis para a neoplasia da mama, e ambas têm
resultados semelhantes para a sobrevivência. No entanto, as consequências
destas abordagens têm forte influência na qualidade de vida subsequente ao
tratamento(4). Um estudo realizado com mulheres com câncer de mama concluiu que
o significado desta doença para as mesmas é que a percepção sobre a doença pode
influenciar as decisões na escolha do tratamento. Ao refletirem sobre a
significação desta doença, mencionaram como uma perda irreparável, afirmando
que o seio está relacionado à sexualidade, fertilidade e maternidade. Destacou-
se, porém, o termo desafio, frequentemente atribuído ao câncer de mama, pois
este foi percebido como qualquer outro obstáculo na vida que pode ser vencida
com meios e recursos disponíveis(5).
Neste sentido, este artigo de reflexão filosófica teve como objeto de estudo
mulheres que vivenciaram a mastectomia, objetivando refletir sobre a concepção
de corpo destas mulheres a partir da obra Fenomenologia da Percepção de Maurice
Merleau-Ponty e de outras obras como livros, teses, dissertação e artigos, que
abordam a concepção de corpo para a mulher que sofreu a mastectomia.
Através das reflexões abordadas, constatou-se que a concepção de corpo para a
mulher mastectomizada produziu-lhe uma série de consequências que vão além da
alteração da imagem corporal, uma vez que esta é uma vivência que ressalta uma
complexa relação humana com o mundo exterior.
MÉTODO
Para o alcance do objetivo proposto, foi utilizado como referencial filosófico,
a Fenomenologia, pois esta se constitui como uma ciência do rigor que procura
observar a experiência humana descrevendo-a tal como ela se mostra. Neste
sentido, foi utilizada para construção deste artigo de reflexão filosófica, a
obra Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, filósofo francês que tem a
sua obra centrada na percepção. Tem como preocupação principal a defesa de que
todo conhecimento presente em nossa consciência passa, previamente, pela
percepção. Sua filosofia também pode ser definida como "filosofia do corpo",
pois, é através e a partir dele que se estabelece a existência humana no mundo
(6).
Buscando uma reflexão sobre a concepção de corpo pelas mulheres que vivenciaram
a mastectomia foram também utilizados artigos e livros que discutem sobre esta
temática.
CORPO: ESPAÇO EXPRESSIVO APESAR DA SITUAÇÃO DE SER MASTECTOMIZADA
O corpo interage com o mundo e produz sentido, inserindo o ser humano em um
espaço social e cultural. Ao mesmo tempo em que, com seu corpo, o indivíduo
produz sentido e, também, integra a rede de sentidos do grupo social do qual
faz parte. Portanto, assimila as formas de relação do corpo com o mundo
impostas pelos estilos de vida e papéis assumidos ao longo da sua existência.
Essas experiências externa e internamente impressas no corpo determinam as
formas de sentir, perceber, aparecer, mostrar, ver e tocar(7). Neste sentido,
igualmente tais experiências influenciam os modos de sentir, perceber, ver e
tocar os seus semelhantes e demais entes não humanos, o que dificultam ou não
as relações do indivíduo com o mundo.
A relação que a pessoa estabelece com o próprio corpo é um elemento
constitutivo e essencial da individualidade. E a ruptura desse elemento pela
doença tem um significado especial quando nos referimos ao câncer de mama,
levando-se em consideração o simbolismo social e individual da mama feminina na
sociedade(8). O corpo biológico somente pode ser percebido através de seus
representantes os quais o constituem, e que é denominado de corpo psicológico.
Dessa maneira, sobre o substrato formado pelo corpo anatômico, constrói-se a
imagem corporal, que é, comumente, referida quando uma pessoa fala sobre o seu
corpo. Sendo o corpo orgânico o alicerce onde se apóia a imagem corporal,
quando ocorrem modificações biológicas relevantes, como no caso de uma cirurgia
mutiladora, essa mudança acarretará modificações na imagem corporal(9).
Os seios são a parte do corpo que define as mulheres e que lhes proporcionam
sensações incríveis de prazer. Soma-se a isso, o saciar a fome dos lactentes, o
estímulo ao aconchego e afeto dos filhos e, mesmo sendo reconhecidos pelo saber
científico como órgãos não-vitais, sua perda costuma golpear a mulher causando-
lhe sofrimentos(10).
As mamas são símbolos da identidade corporal feminina. Soma-se a esse aspecto a
representação do seio como condição materna, objeto de amor em que, através da
amamentação, se estabelece a relação mãe-filho. Em consequência, a sua perda
conduz a mulher recordar as lembranças das experiências positivas
proporcionadas pelos seios saudáveis.
A mama é considerada como uma metonímia do feminino, e dentro de uma espiral de
complexidade, o seu acometimento expõe as pacientes a uma série de questões: o
seu posicionamento como mulher, atraente e feminina, ou a mãe que amamenta(11).
A mulher com câncer de mama enfrenta uma situação através da qual presencia
gradualmente a perda das suas possibilidades como pessoa produtiva,
especialmente em relação à maternidade e ao seu papel de esposa e mulher (12).
Estudos realizados com mulheres mastectomizadas demonstraram que o
comportamento dessas mulheres sobre a realidade vivida é o reflexo de uma
cultura que privilegia o belo e o perfeito, priorizando as pessoas que são
aparentemente sadias e sem sequelas visíveis de doenças(13). As cirurgias
mutiladoras afetam a percepção do próprio corpo, e implicam em mudanças na
imagem corporal. Esta por sua vez é compreendida como a representação mental
que possuímos do próprio corpo, e estando diretamente vinculada à percepção e
compondo-se dos aspectos fisiológicos, psico-afetivos, cognitivos e
relacionais. Desta forma, a imagem que fazemos do nosso corpo é construída e
(des)construída ao longo de nossa vivência, a partir de experiências com o
mundo exterior(14). Nesse entendimento, "se a perda desse órgão, prescindível
dentro do corpo conhecido pela medicina provoca tantos danos às mulheres, é
porque há uma outra realidade onde ele tem significado e outro valor. Não se
trata mais da mama, mas do seio que a recobre. Perdê-lo para muitas é como
perder a vida, implica uma dor que ultrapassa as questões médicas"(10).
A mastectomia leva à uma mudança brusca na aparência, pois, tal cirurgia
representa a amputação de parte do corpo considerado como símbolo da
feminilidade. Foram evidenciadas dificuldades de aceitação das alterações
ocorridas pela cirurgia, levando a não correspondência da expectativa da imagem
corporal esperada. Uma pesquisa desenvolvida com mulheres mastectomizadas em
uso de prótese após reconstrução mamária reforça a situação acima. A mulher
sofre muito, sente que a mastectomia é uma agressividade para com a mulher e
faz com que ela se sinta inferior às outras mulheres(15).
Ainda no que diz respeito à mastectomia, esta tem repercussões emocionais
importantes que danificam não somente a integridade física, como, também, a
imagem psíquica que a mulher tem de si mesma e de sua sexualidade. Salientam,
também, que esse evento é permeado de vivências extremamente dolorosas
relacionadas com a sensação de perda interna, o que altera a relação que ela
estabelece com o seu corpo e sua mente (16).
A cirurgia e a doença vêm afetando a existência das mulheres mastectomizadas.
São grandes as transformações em suas vidas, pelo redimensionamento de seu
"vir-a-ser" e pelo fato de habitar um corpo que refletirá uma nova imagem. Todo
seu ser é ameaçado sob uma perspectiva existencial, o que parece ser uma
afronta à sua auto-imagem, o que pode levá-la à perda ou diminuição do seu
sentido de sentir-se mulher. Reportando-se a Merleau-Ponty, afirmam que a idéia
de imagem corporal é compreendida como compêndio de existência corporal humana,
uma vez que tal percepção de imagem corporal implica em corpo experienciado
(17).
A percepção de seus corpos em sua integridade já não lhes é mais possível no
que se refere ao sentido de um corpo originário, dado que algo "sujo, ruim"
passou a fazer parte deles. Dessa forma, a possibilidade de uma cirurgia que o
mutile é ameaçadora, porém, a idéia de estranheza em relação ao mesmo já está
instalada, suscitando medo, repugnância, dada essa percepção de sujidade (15).
Não é mais possível pensar que o corpo é dividido em mental e físico, ou seja,
ele deve ser visto integralmente. "Falar de corpo é falar dos sentidos, como
órgãos que situam o ser humano no seu próprio mundo em contato com as pessoas
que os cercam"(18).
No que diz respeito à situação de enfrentamento pela visualização do seu corpo,
mutilado pela mastectomia, percebe-se que mulher se sente estranha quando se
encontra em situações como as que tem que expor o seu corpo(15). Refletindo
sobre a situação humana de expor o corpo: "comumente o homem não mostra seu
corpo e, quando o faz, é ora com temor, ora com a intenção de fascinar. Parece-
lhe que o olhar estranho que percorre seu corpo rouba-o de si mesmo ou que, ao
contrário, a exposição de seu corpo vai entregar-lhe o outro sem defesa"(17). O
sofrimento psíquico sofrido pela mulher que experiencia a mutilação pode variar
de acordo com o tempo, com a vivência e a capacidade individual de cada uma em
perceber-se encarnada em um novo corpo, e neste sentido: "percepções novas
substituem as percepções antigas, e mesmo emoções novas substituem as de
outrora, mas essa renovação só diz respeito ao conteúdo de nossa experiência e
não à sua estrutura"(19).
Vivenciar uma mastectomia constituiu-se numa experiência marcante e complexa,
que se estende ao longo do tempo, conduzindo as mulheres à mudanças nos atos,
modos e estilos de vida. E sob o aspecto temporal das percepções: "No próprio
instante em que vivo no mundo, em que me dedico aos meus projetos, a minhas
ocupações, a meus amigos, a minhas recordações, posso fechar os olhos, estirar-
me, escutar meu sangue que pulsa em meus ouvidos, fundir-me a um prazer ou a
uma dor, encerrar-me nesta vida anônima que subtende a minha vida pessoal. Mas,
justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também aquilo que me
abre ao mundo e nele me põe em situação"(19).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escolha em realizar essa reflexão teórica possibilitou apreender que com a
mastectomia surgem preocupações relacionadas ao próprio corpo, uma vez que esta
desconstrói a imagem corporal abruptamente. Foram inúmeras as dificuldades
provocadas pela amputação da mama, indicando que a imagem corporal modificada é
determinante na percepção do próprio corpo e na relação deste com as demais
pessoas.
A imagem corporal constitui-se na percepção cognitiva e emocional da pessoa
sobre seu próprio corpo ou de outrem em um dado momento. Aspectos como atração
física, feminilidade e confiança em si mesma podem também ser importantes para
o conceito de imagem corporal(20).
Ao se descobrir com câncer de mama e a possibilidade de se submeter a uma
cirurgia mutiladora, conduz a mulher a uma gama de sentimentos como, por
exemplo, o medo, a insegurança, e os profissionais de saúde devem ter um olhar
atentivo para reconhecê-los, preparando a mulher para enfrentar a sua realidade
da maneira mais corajosa possível(21).
Após a mastectomia, as mulheres retomam o seu cotidiano após superarem o medo
da morte. Neste momento, quando se restabelece o convívio social através de
atividades de lazer e laborais, surgem preocupações relacionadas com o próprio
corpo, fazendo com que passem a reelaborar suas potencialidades e formas
diferenciadas de relacionar-se com os outros e consigo mesma. Sob esse aspecto,
as modificações do próprio corpo implicam, também, em transformações afetivas,
refletidas na forma de como percebem a si próprias(14).
Essa reflexão possibilitou compreender que a mutilação mamária produz
sentimentos que alteram a imagem corporal e as mulheres demonstram dificuldades
em visualizar um novo corpo ao perceberem a sua feminilidade ameaçada.
Neste sentido, não é mais possível pensar que o corpo é dividido em mental e
físico, ou seja, ele deve ser visto integralmente. Falar de corpo é falar dos
sentidos, como órgãos que situam o ser humano no seu próprio mundo em contato
com as pessoas que o cercam(18). O corpo é iminentemente um espaço expressivo,
pelo menos é ele que dá à nossa vida a forma da generalidade e que prolonga
nossos atos pessoais em disposições estáveis, ele é o nosso meio geral de ter
um mundo(19).
Considero também relevante essa reflexão pelos(as) profissionais de saúde
acerca das práticas assistenciais desenvolvidas, no intuito de valorizar essa
clientela, considerando seus valores, crenças e anseios. Todos esses fatos
anteriormente citados nos conduzem a refletir sobre a complexidade de ser
mastectomizada, situação na qual emergem conflitos na esfera psicossocial e
dificuldades de adaptação a nova situação de vida. Neste contexto, esta
reflexão torna-se relevante para a compreensão do momento vivido por essas
mulheres e para fornecer estratégias de intervenções mais eficazes às equipes
terapêuticas com elas envolvidas.