Reflexões acerca da morte: um desafio para a enfermagem
INTRODUÇÃO
Por que a morte atormenta? A morte não faz parte do ciclo vital humano? Por que
o simples fato de falar no tema causa medo, tristeza ou desconforto? Até o
Século XIX, tão familiar e natural, a morte se tornou na atualidade um fenômeno
a ser eliminado, um tabu pouco ou nada discutido(1-2).
Nesse sentido, a morte não seria somente um acontecimento biológico, visto que
perpassa, necessariamente, pelo social. Com efeito, o organismo cessa em
definitivo suas funções, todavia é o contexto cultural que terá função de
significar este acontecimento. Deste modo, o fim da vida envolve questões
psicossocioculturais(3).
Quando a palavra "morte" é pronunciada arranca expressões de espanto, inclusive
de enfermeiros e outros profissionais de saúde. Nesse sentido, não seria um
retrocesso, o comportamento aversivo em relação à morte diante dos infindáveis
avanços tecnológicos, principalmente em épocas de desmitificação de muitos
tabus? Por que enfermeiros, assim como outros profissionais de saúde evitam
falar sobre o tema, ou quando falam, o abordam com palavras substitutivas que
possuem, na realidade, outros significados? Muitos destes profissionais, tais
como enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, psicólogos, ao ouvirem acerca do
tema, relatam que não gostam de discutir os assuntos relacionados à morte, pois
foram formados para salvar vidas.
Assim, a morte foi esquecida, sem que a sociedade percebesse que as pessoas
sofrem, por não discutirem o tema; por ser algo inconveniente e proibido. Nessa
lógica, não se podem expressar os sentimentos reais diante da morte, mesmo
quando se perde alguém próximo, nem mesmo da saudade(4).
A mídia também fortalece a negação da morte, pois o fim da vida é tratado com
eufemismos, tais como "sono profundo", "partida", "passagem para outra vida"...
Diante de um acidente, assalto ou cirurgia, "o indivíduo não resistiu". No
hospital o paciente não morre, ele "vai a óbito"(2).
Tendo em vista as novas necessidades que surgem em torno do contexto do
paciente terminal e sua família, a morte, contemplando o processo de morte e
morrer, necessita urgentemente ser debatida, assim como se discute o nascimento
e o desenvolvimento humano. Umas das estratégias para atender essas
necessidades, são os cuidados paliativos que estão sendo introduzidos
discretamente em algumas regiões do Brasil, ofertados em alguns serviços de
internação domiciliar ou espaços cedidos em hospitais.
Entretanto, a formação acadêmica dos enfermeiros e dos outros profissionais de
saúde ainda é direcionada e intensificada no cuidado para a promoção,
recuperação e preservação da vida(5), deixando-os despreparados, técnica e
psicologicamente(6), para os enfrentamentos referentes à morte, a partir do
entendimento de que ela não faz parte da vida(7-8). Nesta perspectiva, a
introdução dos cuidados paliativos nas práticas profissionais torna-se, de
certa forma, dificultada, pois para desenvolver os cuidados paliativos, é
preciso a aceitação da morte tanto pelo paciente, quanto pelos familiares e
profissionais da saúde.
É de questões como estas que este artigo de reflexão pretende tratar, a fim de
que o tema seja reinserido no cotidiano dos profissionais de saúde. A
literatura referida neste trabalho foi amplamente debatida nos encontros da
disciplina de tanatologia, do mestrado em Psicologia, bem como nos encontros do
Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Saúde (NEIS) da
Universidade Federal de Santa Maria.
Com isso, objetiva-se com este artigo, realizar uma reflexão sobre as
desafiantes questões de morte e morrer enfrentadas pelo enfermeiro e outros
profissionais de saúde em suas práticas. Para fazê-la, inicia-se a discussão
com um breve histórico sobre a morte, focando desde quando sua ocorrência de
forma natural e familiar até sua chegada no hospital, quando se torna
obrigatoriamente um acontecimento técnico. Em seguida, retomar-se-á algumas
reflexões acerca do porquê que a morte é temida e do por que ela deve ser
discutida, na possibilidade de se viver mais intensamente, bem como a
efetivação de planejamentos de ações, por meio das reflexões no cotidiano
profissional acerca da morte, por parte dos enfermeiros e outros profissionais
da saúde, visando o cuidado na perspectiva do conforto ao doente terminal.
REFLEXÃO E DISCUSSÃO
Da "morte natural e familiar" à "partida técnica e hospitalar"
A morte, não é mais familiar nem natural. Morre-se no hospital, sozinho, em
lugar de o evento ocorrer em casa, no contexto familiar (2). Muitas obras de
reflexão e pesquisa(1,2,9-11) demonstram que as mortes têm ocorrido no âmbito
hospitalar desde que se criou a obsessão em "curá-la". Nesta ótica, a morte
carrega a conotação de doença. O doente terminal é encaminhado ao hospital
apenas para morrer ou para prolongar um pouco mais o seu fim de vida. Por que
isso ocorre? O homem atual desaprendeu a conviver com a morte quando comparado
ao homem da Idade Média até meados do século XIX? Como ocorreu o fato de as
famílias não saberem o que fazer com seu ente querido em fase terminal?
A idéia da morte como natural e familiar, que ocorria como uma certeza da vida,
e a compreensão da sua inevitabilidade, em que todos assistiam, de maneira
natural, um moribundo se despedir e partir, era difundida na Idade Média, entre
os séculos V e XV, durante os quais estas idéias eram compartilhadas por todos,
pois tinham consciência de que a morte era certa. É relevante ressaltar que as
pessoas, nesta época, sentiam a morte por meio de "avisos" fornecidos por
convicção íntima. Assim, o indivíduo se organizava para resolver suas
pendências, com intuito de morrer com serenidade. A morte, então, era esperada
no leito e organizava-se como um ato público: familiares, amigos, vizinhos e
crianças se despediam da pessoa em suas últimas horas de vida(1).
A partir do Século XIX, o homem já se ocupa menos de sua morte e preocupa-se
mais com a do outro, pois esse é o que deixará saudades e lembranças. Esta
atitude permanece nos dias atuais, contudo, no Século XIX não existia a negação
da morte, uma vez que continuava ocorrendo em casa. A partir do Século XX, a
morte se torna um fenômeno técnico, transferindo-se para o hospital, ficando à
mercê da decisão médica e da equipe de saúde(1).
Consequentemente, a sociedade produziu uma fantasia de onipotência sobre a
morte, permitindo que esta crença aumentasse consideravelmente, em decorrência
das alterações sociais e tecnológicas que culminaram na saúde, proporcionando
diagnósticos e terapias especializadas. Nesta dimensão, essas tecnologias
fizeram aumentar as expectativas tanto dos pacientes quanto dos profissionais
da saúde, na medida em que tornou possível intervir e modificar o corpo e, até
mesmo, adiar questões que se relacionam com o final da vida, determinando a
hora da morte(6,11).
Nesse contexto, a morte recebe o estigma de fracasso e ao paciente terminal são
negadas informações sobre seu verdadeiro estado, potencializando o tabu. Os
familiares não conversam sobre o assunto e se obrigam a demonstrar ao doente
que está tudo bem(2), ocultando a morte(8).
Observa-se, assim, o início da obsessão em adiar a morte, concretizada no
investimento terapêutico excessivo com este objetivo. O doente não morre mais
"em sua hora", mas no momento em que a equipe determina(6). O hospital passa a
ser o templo da morte solitária, pois a repulsa pela morte e seu adiamento
indefinido proporcionou o deslocamento do quarto do moribundo para o leito do
hospital(2).
Nesse cenário, a morte, tão corriqueira, foi abortada. Ou seja, é dito que "o
paciente ficou na mesa de cirurgia", ou "ele não resistiu"(2). E nesse ambiente
de cura, a morte não deveria ter lugar. Na verdade, ela não poderia ocorrer
neste cenário por três aspectos: o primeiro, por ser um ambiente de cura, e
como a morte não a possui, o paciente terminal não teria lugar neste contexto;
o segundo, pelo fato de o paciente não receber o atendimento de suas
necessidades em seus últimos momentos, já que nem familiares nem equipe abordam
o fim da vida; e, por último, há uma suposição de que médicos e enfermeiros
sintam-se constrangidos quando um paciente morre, envolvendo sensações de
fracasso e impotência(10).
Além disso, as famílias confiam seu doente ao médico e à equipe de saúde por
não se sentirem aptas para tal enfrentamento, "engessando" os últimos momentos
de vida da pessoa segundo as rotinas da instituição. Nesse ambiente, a negação
da morte faz com que familiares, enfermeiros e profissionais de saúde, pensando
em poupar o moribundo, omitam os fatos, que, muitas vezes, são obviamente
claros para o próprio paciente(4). Entretanto, o que ocorre, verdadeira e
inconscientemente, é uma forma de defesa para que os profissionais se protejam
da fortíssima perturbação que seria causada por uma conversa em torno da morte.
Assim, o moribundo é forçado a desempenhar o papel de quem não sabe que vai
morrer(2).
Todas estas questões, são demonstradas neste estudo biblio-gráfico(12), o qual
mostra quatro aspectos de abordagem da morte pela enfermagem, que foram
organizados em períodos. A primeira delas, "a morte silenciada e ocultada",
predominou no período de 1937 a 1979, no qual a enfermeira não podia se
envolver ou demonstrar sentimentos. A segunda abordagem estabelecia uma luta
contra a morte, no período de 1980 a 1989. Neste período, a enfermagem,
especialmente em unidades de terapia intensiva, começou a presenciar a morte de
forma mais rotineira, contudo, com a possibilidade de prolongamento da vida a
partir do emprego de inúmeros aparatos tecnológicos. Em se tratando da terceira
abordagem, denominada de "a morte em cena: multiplicidade de facetas", que
ocorreu no período de 1990 a 1999, os enfermeiros eram questionados sobre o
término da vida, desvelando mecanismos de defesa, tais como a negação e a
racionalização, utilizadas para enfrentar o cuidado ao paciente terminal, por
meio de um relacionamento frio, rotinizado e regulado. Por fim, no período de
2000 a 2005, aborda-se a morte e os cuidados paliativos, apresentados como uma
importante mudança de paradigma assistencial no contexto do cuidado no fim da
vida, o qual considera a chegada desse período como um processo inteiramente
natural(12).
Desse modo, na atualidade, em torno das necessidades do paciente terminal e sua
família, existe a possibilidade de oferta dos cuidados paliativos, os quais
necessariamente, todos os envolvidos, paciente, família e profissionais de
saúde, devem aceitar a morte com parte da vida. Nesta perspectiva, o enfermeiro
e os profissionais de saúde devem planejar formas de abordar claramente o tema
da morte, tanto com os pacientes terminais, como com seus familiares, fato este
que poderia implicar nas mais diversas reações, uma vez que os significados
incorporados ao processo de morrer e morte são construídos e vivenciados
histórica e culturalmente ao longo da vida de cada indivíduo. Para tanto, deve-
se ter a sensibilidade de analisar se a abordagem do tema é conveniente, bem
como investigar o desejo e/ou necessidade dos doentes e seus familiares de
discutirem o processo de morrer e morte.
Perspectivas: a morte como um abismo ou como uma aliada à vida?
Na hodierna sociedade, onde as pessoas buscam freneticamente êxito na vida como
suprimento de respostas à nossa existência(2), a morte não é comentada ou
refletida e parece não fazer parte do ciclo vital. A materialidade funciona
como um escudo, onde todos escondem seus sentimentos e receios. Quando a
palavra "morte" é pronunciada, é desencadeada uma grande tensão emocional(2),
além das mais diversas reações, tais como medo e tristeza, podendo gerar
comportamentos inadequados.
As pessoas trabalham, compram, buscam adquirir bens materiais. É nesta
perspectiva capitalista que talvez a morte apresente a conotação de abismo, com
sentimentos de angústia, culpa e raiva. Pesquisas sobre o tema mostram que as
pessoas queixam-se do sufoco da rejeição da morte(2,10). Neste aspecto, a vida
repleta de sentimentos e emoções, parece inacabada e superficial, e chegando ao
final dela, toma-se consciência de que poderia ter sido algo mais fenomenal(2).
A sensação de que não se viveu intensamente, atormenta tanto o indivíduo que se
encontra no fim de seus dias, quanto àquele que acompanham o doente terminal,
ou, ainda, os que não estão diretamente relacionados ao doente ou à sua
família. Nestas ocasiões, observa-se estresse, ansiedade, angústia e culpa,
fazendo com que as pessoas não aproveitem o cotidiano de suas vidas de forma
intensa e com amor.
Neste entendimento, acredita-se que evitando falar na morte evita-se pensar na
vida. O não falar na morte, não dá possibilidade ao paciente terminal para
pensar e aproveitar a vida que ainda tem a viver, pelo contrário, a
possibilidade da morte estar mais próxima, passa a ocupar a totalidade da
existência do sujeito, o qual, a partir desse momento, vive na espera da morte
(2).
Nas entrevistas efetivadas por Klüber-Ross(10), os doentes terminais sentiam-se
lisonjeados pela oportunidade de relatar seus sentimentos nos últimos momentos
de suas vidas. Tais entrevistas proporcionavam-lhes um último sentido de
utilidade, uma vez que, nesta perspectiva, o moribundo se sentia improdutivo e
socialmente morto, na busca do significado de sua existência, mesmo que esta
estivesse no fim.
A partir da escuta dos doentes terminais, é que foi sendo construída a ciência
dos cuidados paliativos. Esses abrangem o tratamento de pessoas portadoras de
alguma doença sem possibilidade curativa, cujo objetivo das ações é centrado na
melhora da qualidade de vida e do conforto do paciente e de sua família. Para
isso, neste tipo de atendimento, é preconizado o desenvolvi-mento da escuta das
necessidades do paciente e sua família, os quais são entendidos como um núcleo;
a comunicação efetiva para orientações e decisões terapêuticas entre
profissionais de saúde, paciente e família; controle, por meio de medicamentos,
da dor e de sentimentos como angústia, ansiedade que permeiam o processo de
morte e morrer, entre outros. Além disso, essa prática entende a morte como
parte da vida, não adiando, nem prorrogando o momento dela(13).
Estas reflexões poderiam permitir e sensibilizar enfermeiros e outros
profissionais de saúde para que não considerem a experiência da morte como algo
frágil, vergonhoso, envolto de sentimentos de culpa, mas, como uma
possibilidade de ampliar o cuidado, na perspectiva do conforto, fornecendo
apoio efetivo e resolutivo, e ouvindo as necessidades do paciente que está
morrendo(9).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A morte é uma das únicas certezas da vida, e deveria ser natural, no sentido de
sua aceitabilidade, por ocorrer a todos os seres vivos e, logicamente, por ser
parte integrante do ciclo vital humano. Aceitá-la, por parte do paciente
terminal, bem como da família, e também pela equipe de saúde, favoreceria a
ciência dos cuidados paliativos nos serviços de saúde. Isto porque, atender
nesta abordagem, implica em não prorrogar a vida daquele que está em situação
de terminalidade, significando que o paciente não será reanimado. Por outro
lado, os cuidados paliativos também não adiam a morte, ou seja, não são
aplicados procedimentos que acelerem o processo de morte e morrer. Esta ciência
preocupa-se com o conforto do paciente e de sua família, aplicando-lhes
tecnologias de relações como a escuta, a comunicação, a atenção, além de também
utilizar tecnologias como medicamentos para auxiliarem no alcance do objetivo
de conforto.
Com estas reflexões, pode-se inferir que a morte deveria tornar-se pauta no
cotidiano dialógico das pessoas, em locais como nos serviços de saúde, nas
escolas, em ambientes religiosos, entre outros. De modo especial, dever-se-ia
retomar discussões e estudos concernentes ao trabalho dos profissionais de
enfermagem e de saúde em geral, a fim de desmitificar o tema, e possibilitar
melhor preparo no planejamento das ações ao doente terminal e sua família.