Famílias cuidadoras de pessoa idosa: relação com instituições sociais e de
saúde
Famílias cuidadoras de pessoa idosa: relação com instituições sociais e de
saúde
Familias cuidadoras de un anciano: relaciones con instituciones sociales y de
salud
Families in charge of health care for elderly people: their relationship with
social and health care institutions
Marion CreutzbergI; Beatriz Regina Lara dos SantosII
IEnfermeira, Mestre em Enfermagem (EEUFRGS), Doutoranda em Gerontologia
Biomédica (PUCRS), Professora da Faculdade de Enfermagem, Fisioterapia e
Nutrição / PUCRS
IIEnfermeira, Mestre em Educação (UFRGS), Doutora em Educação (PUCRS),
Professora do Mestrado em Enfermagem / EEUFRGS e da Faculdade de Enfermagem,
Fisioterapia e Nutrição / PUCRS. E-mail do autor:marionc@portoweb.com.br
1 Introdução
A implantação e a necessidade de desenvolvimento de serviços de cuidado
domiciliar tem-se tornado um desafio atual e futuro de todos os profissionais
da saúde. Entre os motivos estão o atual perfil demográfico-epidemiológico, com
uma proporção crescente da população acima de 65 anos e fragilidades
decorrentes de doenças crônico-degenerativas; as mudanças na família, que lhe
traz dificuldades de assumir cuidados; a ineficiência e superlotação dos
serviços institucionais; a diminuição dos custos do cuidado no domicílio, em
relação ao atendimento institucional; a busca pela humanização, conforto e
segurança da assistência à pessoa e familiares; a inclusão de programas de
atendimento domiciliar nas políticas de saúde(1,2,3,4). De forma específica,
tem sido enfatizada a inclusão do cuidado domiciliar nos programas de atenção à
saúde do idoso (5,6,7,8).
Ainda que a velhice não seja sinônimo de doença e dependência, o crescimento da
população idosa indica um maior número de pessoas em situação de saúde frágil,
apresentando debilitação e dependência(9). Na maior parte dos casos, a demanda
de cuidados ao idoso debilitado é assumida pela família. Em conseqüência, há a
necessidade freqüente de recorrer a recursos sociais e de saúde. O Sistema de
Saúde Pública no Brasil não está preparado para fornecer o suporte para a
população idosa que adoece, nem à família que dela cuida(10).Assim, para que se
possa propor e implantar ações desta natureza é fundamental considerar as
vivências de famílias na relação com os serviços.
2 Objetivo
Compreender a relação de famílias de classe popular cuidadoras de idoso
fragilizado com as instituições sociais e de saúde.
3 Material e método
3.1 Tipo de estudo
Optou-se por uma metodologia que permita não só entender o fenômeno na
perspectiva das famílias, mas também incluir aspectos de seu contexto
sociocultural para a compreensão de suas vivências, uma vez que, em cada
família, circula um modo particular de viver, "uma cultura familiar própria"
(11).
Entre os métodos qualitativos de pesquisa, a metodologia escolhida foi o estudo
de caso do tipo etnográfico. Este deve ser usado quando: o interesse está em
uma instância particular e se quer conhecer essa instância em sua complexidade;
busca-se novas hipóteses e conceitos acerca de um fenômeno e se deseja
retratar, o quanto possível, o dinamismo de determinada situação em seu
ambiente natural, enfocando menos os resultados e mais o que ocorre e como
ocorre(14).
O estudo de caso é um estudo que tem a intenção de descrever fatos e fenômenos
da realidade que está sendo estudada. É uma investigação em profundidade que
conduz a um quadro da organização de determinada unidade social. O estudo de
caso do tipo etnográfico oferece insights que permitem avançar no conhecimento
e na compreensão do fenômeno. Não intenciona criar generalizações, mas é aceito
o fato de que o estudo possa ser útil na compreensão de dados de outro estudo
(12,13,14).
3.2 Sujeitos
Os participantes da investigação são famílias que cuidam de idoso no domicílio,
moradoras da área adstrita a uma Unidade Sanitária de Porto Alegre. Utilizando
o critério da saturação de dados, foram incluídas quatro (4) famílias no
estudo, perfazendo um total de vinte e nove (29) informantes, constituídos por
componentes da família e da rede de apoio.
3.3 Coleta de dados
A coleta de dados foi realizada através dos métodos da observação participante
(15) e da entrevista semi-estruturada(16).
3.4 Validação dos dados
No Estudo de Caso do Tipo Etnográfico(14:56), não se pretende apresentar, num
estudo, uma posição considerada como única e correta. Está sempre "aberta a
possibilidade para outras leituras/versões acaso existentes... aceita-se que os
leitores possam desenvolver as suas representações do real". Ainda assim,
existe a preocupação em utilizar procedimentos que aumentem a possibilidade de
que os dados tenham validade. Entre os sugeridos por diferentes autores(14,16),
foram adotados a explicitação dos critérios de seleção de sujeitos e situações
observadas; o emprego de diferentes métodos para a coleta de dados (observação
participante, entrevista, análise documental, ficha informativa), obtidos no
contato com vários informantes (várias famílias, o maior número possível de
integrantes destas e de sua rede de apoio, equipe da Unidade Sanitária), numa
diversidade de situações (domicílio em dias e horários diversos, serviço de
saúde, cartório de registros); posição aberta ao longo do processo de
investigação, diminuindo as chances de limitar-se a concepções preconcebidas.
3.5 Análise dos dados
Os dados advindos da observação participante, da entrevista e da análise
documental foram analisados a partir do método de Análise de Conteúdo(17,18).
3.6 Aspectos éticos
Respeitando os procedimentos éticos previstos pelo Conselho Nacional de Saúde
(19), o projeto foi apresentado e aceito pela Unidade Básica de Saúde. As
famílias que aceitaram participar da pesquisa assinaram um termo de
consentimento.
4 Apresentação e análise dos dados
Da análise dos dados referentes às Relação que as famílias cuidadoras de idoso
fragilizado têm com as instituições sociais e de saúde emergiram três temas: o
suporte social, a relação com os serviços de saúde, a relação com a unidade
sanitária local. Com o intuito de propiciar ao leitor a oportunidade de entrar
em contato com depoimentos, podendo fazer suas próprias interpretações, foram
incluídos alguns relatos das famílias (E) e observações das pesquisadoras (O)
ao longo da apresentação e análise dos dados.
4.1 Suporte social
A inexistência de políticas sociais que dêem suporte a famílias cuidadoras é
identificada por vários autores(10,20,21). Isto é concretamente vivenciado
pelas famílias participantes da investigação. Assim, referem que o suporte
social voltado ao idoso fragilizado pobre é inexistente, ou mínimo. Com os
baixos salários provindos das pensões e aposentadorias de familiares e dos
idosos, o desemprego e a impossibilidade de a cuidadora principal ter atividade
remunerada enfrentam, como visto, dificuldades econômicas contínuas. Assim
expressam necessitar serviços que lhes possam dar apoio material: ...perguntou
se não sei de alguma assistente social, onde possa conseguir leite, fraldas ou
alguma ajuda. Mostrou um pacote de fraldas geriátricas que alguém deu, e que só
tem duas ainda.(O2)
As famílias referem-se ao fato de que as possibilidades de lazer, integração e
participação social do idoso fragilizado são inexistentes:...área de lazer. Sei
que tem aqueles centros que fazem muito pelo idoso, e esse negócio de 3ª idade
e coisa. Mas eu digo aquele idoso adoentado que não pode se locomover. (E1)
Essa percepção trazida pela família aponta para as mudanças nas representações
da velhice(22). De uma velhice compreendida como abandono, desprezo e solidão,
passa-se a uma fase, reconhecida como terceira idade, vivida como uma fase de
experiências gratificantes. As muitas iniciativas surgidas nos últimos anos no
Brasil, com a criação de grupos de convivência, as universidades voltadas para
a terceira idade, mobilizaram de forma impressionante e "têm promovido de
maneira muito evidente a redefinição dos valores, atitudes e comportamentos dos
grupos mobilizados"(22:36). Entretanto, a autora afirma que o surpreendente
crescimento destas iniciativas, "é proporcional à precariedade dos mecanismos
que dispomos para lidar com os problemas da velhice avançada"(22:36), ou
fragilizada. O risco que se corre é que as reais limitações que podem estar
presentes na velhice sejam dissolvidas nas representações inovadoras da
terceira idade, o que pode produzir um processo que denomina de "reprivatização
da velhice"(22:36). Isso é, fecha-se as possibilidades de vida digna e
cidadania aos idosos fragilizados, e é repassada a eles a responsabilidade por
sua condição. Em conseqüência, cresce a "recusa da solidariedade pública entre
gerações" (22:36).
Além de conviverem com a baixa renda familiar, impossibilitando de suprirem
suas necessidades, não há um suporte jurídico voltado às famílias cuidadoras de
idoso com dificuldade de se locomover, para resolver questões como:...a
procuração para retirar a aposentadoria, pois precisa renová-la e só tem dois
jeitos: ou leva o pai até o cartório - o que é muito difícil; ou trás o pessoal
do cartório até ali, o que custa dinheiro.(O2)
Para compreender essa situação, essa família foi acompanhada ao cartório. A
viagem até o cartório, na cidade vizinha, no qual o idoso tinha sua
documentação, a insistência para ser atendida logo, o medo de não considerarem
o idoso apto a decidir pela procuração, significaram um desgaste para família.
A problemática da velhice no contexto brasileiro, indica para a "discriminação
nos serviços de saúde e nos outros serviços sociais para garantir os seus
direitos de cidadania" (3:104). Esta realidade é sentida pelas famílias, que
referem, num misto entre decepção e esperança, que o serviço social deveria
melhorar. O serviço social que abrangeria um todo, que incluiria saúde. (E1)
Todas essas expressões revelam o quanto a seguridade social "não tem conseguido
cumprir o seu papel, transferindo-o para os cidadãos e fazendo recair sobre a
família a cobertura de suas falhas"(10:123).
4.2 Relação com os serviços de saúde
Todas as famílias trouxeram vivências e experiências que têm com os serviços de
saúde. Ao relatar, trazem suas percepções acerca do Sistema Único de Saúde
(SUS) e as percepções do desempenho dos profissionais de saúde que nele atuam.
Revelam, em suas falas, a precariedade da Saúde Pública: Esse sistema único de
saúde está muito ruim e complicado. (O1)
Com indignação, abordam a diferença entre o atendimento que é dado a quem tem
acesso a serviços privados e a quem é atendido pelo SUS. Relatam a
discriminação que sentem na própria pele:
Dentro dos hospitais é a discriminação pelo pobre. Então a
discriminação de quem é atendido pelo Sistema Único de Saúde. ... A
diferença é incrível. Tanto com o paciente, como pelo familiar... A
discriminação pelo pobre existe. É cada vez mais discriminado. (E3)
Essa situação, além de ferir os princípios do SUS, quando nestes encontramos a
prerrogativa de "igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie"(23), gera um sentimento de humilhação e
desrespeito ao ser humano.
Além da discriminação sentida no tipo de atendimento que recebem no SUS, falam
da dificuldade que encontram na relação com os profissionais de saúde no âmbito
hospitalar:
...dificuldade que tu encontras com os profissionais da saúde pra te
tratar. A melhor coisa foi a mana ter trazido o pai pra casa. Porque
as pessoas não te tratam, elas te destratam. Como se estivessem te
fazendo um favor. Mas não é um favor. É uma falta de humanidade. (E3)
Esse desabafo da familiar de um idoso denuncia o grande caminho que os
profissionais saúde têm a trilhar na busca da ética e da humanização dos
serviços, corroborando com a percepção de cuidadores de outro estudo(10).
Quanto aos serviços de enfermagem, especificamente, contam infinitas histórias.
Chamam atenção para as experiências positivas com profissionais:
Na última internação do pai, tinha uma enfermeira ... não tem coisa
mais querida no mundo. Carinhosa com meu pai, atenciosa com meu
pai... (E3) ...disse que todos foram muito queridos (no hospital).
Que todo mundo cuidou bem dela. (O11)
Muitas histórias, no entanto, trazem à tona uma enfermagem ainda distante do
cuidado humano. Uma das famílias, a que vivenciou mais situações de
hospitalização de seu familiar idoso, destaca-se nestes relatos. Dizem que não
têm nada contra a profissão de enfermeira ... mas têm enfermeiras que deixam a
desejar.(E3)...profissionais que não tem a competência pra esse tipo de
coisa...(E3)
Entendem que a humanização do cuidado de enfermagem é necessária e esperam isto
de quem:
vai lidar com a vida humana, com pessoas que estão ali sofrendo que queriam
estar em casa, que estão socadas dentro do hospital, o mínimo que tu podes ter
é um pouco de sensibilidade em tratar essa pessoa, em lidar com essa pessoa. Só
que nem todas as profissionais fazem assim, elas chegam não te cumprimentam,
não te olham... (E3)
Muito indignadas com a situação, acusam a equipe de negligência para com o
idoso hospitalizado: E lá onde o pai tava elas não eram muito, sabe,
maltratavam ele e não faziam as coisas.(E3); Não maltratavam ele, eram
omissas... mas isso é maltratar.(O1)...a filha disse que ele voltou do hospital
cheio de escaras.(O2)
Relatam que, freqüentemente, o idoso é relegado a segundo plano na assistência:
muitas vezes é em hospital de ficar horas e horas esperando. É difícil, as
pessoas velhas parece que tem menos atendimento que as outras pessoas.(E1)
Na opinião das famílias o idoso no serviço de saúde
deveria ter mais atenção, mais atendimento. Teria que dar mais
atenção porque a pessoa velha precisa de mais atenção.(E1) Imagina um
homem velho como meu pai, estar num hospital, sabendo que tão tirando
os pedaços dele aos poucos, por causa de uma doença que ele tem, por
causa de problema de saúde, ... pelo amor de Deus, o mínimo que elas
tem que ter é um pouco de sensibilidade.(E3)
Na percepção das famílias, o processo de reabilitação está relacionado ao bom
desempenho da equipe de enfermagem. Percebem-na subordinada ao profissional
médico:
O dedo dele ficou assim por que as enfermeiras - enfermeiras, não,
aquelas atendentes não fizeram o curativo como era pra ser. No dia da
alta o médico olhou, suspendeu a alta e fez o maior furdunço1 com a
enfermagem. Aí ele fez o curativo para mostrar como queria que fosse
feito e suspendeu a alta.(O1)
Quanto à equipe médica, por sua vez, apontam igualmente para a falta de
humanização e sua postura autoritária frente aos demais profissionais e,
especialmente, aos pacientes. Percebem sua atitude de onipotência, a partir da
qual surpreendem-se ao serem criticados e questionados:
Deve estar acostumado a lidar com gente humilde como nós, mas que só
abaixa a cabeça, coloca o rabinho no meio das pernas e diz sim para
todas as grosserias dele. E aí ele viu que comigo não pode ser
assim!'. (O1)
Os familiares sentem que são pouco considerados em suas opiniões e que precisam
chegar ao limite de botar a boca para que os profissionais tomem decisões. Essa
família entende que isso está presente em várias categorias profissionais:
Enfermagem, médicos a mesma coisa, falta de interesse de comunicar o
procedimento, o familiar ali. O familiar tem que amanhecer lá, o
doutor, pelo amor de Deus doutor, e trazer eles assim. (E3) Entendem
que não são todos, mas afirmam ser um absurdo o que certos médicos
fazem. Mas eles são muito estressados. (E3)
Assim, também existem as boas experiências, nas quais se sentem respeitados:
Fui muito bem atendido. Elas levaram uma hora, por ali. Aí eu saí ali
daquela mesa, não me deu tontura, não me deu dor de cabeça, não me
deu nada nada, graças a Deus, como eu estou aqui. (E1)
Da mesma forma como em alguns momentos percebem que há agilização e
organização, com atendimento satisfatório, em outros, queixam-se da morosidade
do sistema: E levou muitos meses para me atender. (E1); contou que levou 2 anos
para conseguir fazer a cirurgia. (O2)
Diante das horas de espera nas emergências e mesmo com hora marcada e dos
atrasos do profissionais, sentem-se desconsiderados, quando nem ao menos são
avisados: Eu fui numa reconsulta, a consulta do pai era para às 10 da manhã. 1
hora da tarde eles não mandaram avisar nada. Lá pelas 4 horas da tarde mandaram
avisar que não iam descer. Imagina a falta de consideração.(E3)
As famílias têm consciência de que a saúde é um direito;que a população
contribui e não ganha gratuitamente o atendimento à saúde: de onde vem o
dinheirão que o governo investe naquele hospital lá. Sabe, dinheiro da onde, do
imposto. Que meu pai paga, que ela paga, que eu pago.(E3)
Entre os princípios do SUS, a "participação da comunidade" no controle e
gestão, é garantida(23). Entre as famílias, há quem entenda que a participação,
como direito e atitude, é fundamental para que aconteçam mudanças. Reconhecem,
no entanto, que a maioria das pessoas, por desconhecimento ou por medo de serem
humilhadas, não exercita a cidadania. A omissão e submissão da população, que
acabam fortalecendo as atitudes arbitrárias e autoritárias dos profissionais,
são também expressas pelos sujeitos de outro estudo(10).
Quanto à valorização da presença do familiar, durante as hospitalizações, têm
diferentes percepções e experiências. Há as que sentem que a equipe as percebe
como parceiras no cuidado: achei que o pessoal é bem interessado e valorizam o
familiar que tá ali junto. Não temos queixa nenhuma. (E2)
Outras sentem que a equipe as vê como um peso, atrapalhando a rotina: Lá no
hospital as enfermeiras tinham uma raiva atroz. Tinha auxiliar de enfermagem
que trocava, trocava de quarto porque não queria atender o pai por causa nossa.
(E3) Estudos revelam que a interação entre o enfermeiro e o familiar é mínima
ou pouco efetiva(24,25).
Percebem que os profissionais não sabem, nem compreendem as limitações e o dia-
a-dia das famílias que têm esse tipo de paciente em casa: O que a senhora veio
fazer aqui? -Eu não pude trazer o meu pai. -Ah, mas isso é um problema social
que eu não tenho nada a ver.'(E1) É evidente o desconhecimento, por parte dos
profissionais, das condições da família(24,25). O modelo institucional do
cuidado os impede de reconhecer a dificuldades e valorizar os esforços das
famílias no processo de cuidar. Igualmente, fazem a sua avaliação
descontextualizada, desconsiderando o sistema de cuidado familiar.
4.3 A relação com a Unidade Sanitária
A Unidade Sanitária (US) é considerada a principal porta de entrada no Sistema
de Saúde. Tanto quanto, ou mais do que qualquer serviço do SUS, deve estar
organizado de tal forma a garantir, de acordo com a Constituição Federal, o
"acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e
recuperação"(23)da saúde da população.
Os dados referentes à US, presentes nos relatos das famílias, desvelam aspectos
que estão relacionados à dinâmica e critérios de acesso à assistência a que a
população está submetida(26). Embora na US já existam programas e práticas
importantes em direção ao novo modelo de saúde preconizado pelo SUS, que se
fundamenta, entre outros, nos princípios da universalidade de acesso e da
integralidade de assistência, o processo de trabalho está centrado na atividade
médica. Em função disso, o número de consultas é pequeno para atender a
demanda. Para obter a marcação das mesmas, utiliza-se "o velho sistema de
fichas"(26:347), como o denominam os autores citados. A dificuldade em torno do
`conseguir uma ficha' ficou muito evidente na investigação junto às famílias,
seja para os idosos, seja para seus familiares:
Eu percebo que ele não tem nada em favor dele. Tem todo o atendimento
normal como os outros pacientes tem. Até nessa coisa de pegar ficha
as quatro da manhã. É, é uma judiaria essas coisas que fazem com uma
pessoa de idade. (E2)
Em geral, as pessoas relatam que o processo de municipalização melhorou, em
muito, o atendimento na Unidade. Mesmo assim, percebe-se uma certa desconfiança
e opinião negativa dos usuários em relação ao serviço e aos profissionais,
devido a situações vivenciadas.. Essa desconfiança tem origem no fato da
demanda ser maior que a oferta de consultas, o que exclui muitas pessoas que
necessitam de atendimento. Apontam para a degeneração que sofre a"relação
trabalhador-usuário" quando o "objeto de trabalho `problema de saúde'
recebe...um tratamento sumário e burocrático, numa relação impessoal com o
usuário."(26:348)
Um "estreitamento do vínculo entre as equipes de profissionais e a população"
(27) é fundamental para a humanização do atendimento e a relação de confiança
entre usuários e serviços.
A adscrição da clientela é uma das estratégias para a construção de um modelo
de saúde mais resolutivo e humanizado. Mas, a pouca disposição em ouvir o
usuário e, em conjunto, encontrar outras formas para garantir a adscrição, é
contraditório ao que se preconiza para os serviços de atenção básica. Um
"estreitamento do vínculo entre as equipes de profissionais e a população"(27)
é fundamental para a humanização do atendimento e a relação de confiança entre
usuários e serviços.
Em outra oportunidade, observou-se uma funcionária recomendando a uma família
que fizessem dois prontuários, para que tenham a autorização de marcar duas
consultas no mesmo dia. A orientação da US é que não sejam marcadas, para o
mesmo dia, consultas para mais de uma pessoa da mesma família. Assim, acaba-se
fragmentando a família e, ao mesmo tempo, ignorando seu contexto. As famílias
pobres "não escrevem suas próprias histórias ... um prontuário é aberto."(28:
29) e a sua condição, sua realidade não é conhecida, nem considerada pelos
profissionais.
Durante a investigação, foi possível perceber que, ao lado da dificuldade que
alguns profissionais demonstram na relação com o usuário, há também os
profissionais preocupados em facilitar o acesso das famílias em situações de
risco, como as que cuidam de idosos fragilizados, sem que isto signifique
desorganização no serviço. A enfermeira expressa preocupação em garantir o
acesso de famílias, com essa situação, ao posto.(O2)
Esse fato, acrescido da constatação de que as participantes da investigação, em
grande parte, encontravam-se excluídas do atendimento em virtude das
dificuldades já mencionadas, desencadeou um processo de viabilização de seu
ingresso e/ou retorno ao serviço de saúde. Essa decisão está fundamentada no
princípio de eqüidade, ou seja, a priorização de ações voltadas a indivíduos ou
grupos que se encontram em situações de risco à saúde(27).
Agendar consultas, como dito anteriormente, não faz parte da rotina da Unidade,
a não ser nos programas de pré-natal e puericultura. Assim sendo, todas as
consultas agendadas para os idosos, aconteceram com a concordância da
enfermeira da Unidade. Foi possível perceber que, com a consulta agendada, as
famílias puderam organizar-se e trazer seus idosos à Unidade, ou seja, foi
viabilizado o acesso.
Ainda que o acesso às consultas seja apenas uma flexibilização da rotina e não
uma mudança no modelo de saúde, pode ser uma alternativa dentro da realidade
atual da US.
Sabe-se que o processo de municipalização da US em questão, ampliou e garantiu
a qualificação deste serviço. Também, foi possível perceber que toda equipe
procura dar o melhor de si. No entanto, a busca contínua pela consolidação do
SUS, em toda sua dimensão, é imprescindível. Isso implica "modificações no
cotidiano do serviço em torno de um processo usuário-centrado, mais
comprometido com a defesa individual e coletiva". A "responsabilização clínica
e sanitária e da intervenção resolutiva", somente acontecerá através do
"acolher e vincular"(26:346).
O acolhimento, como diretriz operacional tem como princípios "atender toda
pessoa que procura o serviço de saúde, garantindo a acessibilidade universal" e
a resolutividade; deslocar o "eixo central do médico para uma equipe
multiprofissional", numa atitude de escuta e comprometimento; e a qualificação
da "relação trabalhador-usuário", fundamentados nos "parâmetros humanitários,
de solidariedade e cidadania."(26:347)
A flexibilização da rotina de agendamento, experimentada ao longo dessa
investigação, gerou resistência em integrantes da equipe. Um processo de
qualificação de toda a equipe é necessário diante de qualquer intenção de
mudanças(26). Diante das dificuldades que os profissionais demonstram frente às
mudanças, lembra que "é próprio da condição humana, de encarar o novo, por
excelência o desconhecido"(26:351).
Por conhecerem as dificuldades de acesso, as famílias expressavam um grande
medo em perder alguma das consultas agendadas:
E aí estavam com medo de perder a consulta que foi marcada para
dia... Tranqüilizei-os, dizendo que o resultado dos exames vem em
dois dias, no máximo, e se fizerem ...ainda dará tempo. E se não der,
adiantei, comuniquem e a gente agenda outro dia para a consulta. (O5)
Além da dificuldade de acesso à US, os entraves vão além do serviço local.
Sentem isto quando se trata do sistema de referência e contra-referência.
Embora refiram as experiências positivas, relatando que o encaminhamento via
posto funcionou não tinham lhe dito que esta era a melhor forma.(O2); Aí minha
filha veio aí no postinho e conseguiu.(E1) No caso de muitas especialidades,
levam meses para conseguir a consulta. Com isso, independente de empecilhos
como a distância ou o horário de serviço não podem deixar de verificar, toda
semana, pessoalmente, se a consulta foi marcada. Se perderem uma consulta,
ficará difícil conseguir de novo.(O5)
Ou seja, esse tipo de informação, a priori, não é dada por telefone. Também,
nesse aspecto, foi possível observar a compreensão da enfermeira, quando esta,
ao ser procurada por uma trabalhadora, sugeriu que telefonasse todas as sextas-
feiras para ela. Ao comentar o fato, disse que se dispunha porque não consegue
admitir que uma rotina prejudique uma pessoa em seu emprego.
As famílias ressaltaram a dificuldade com a falta de medicação e materiais para
procedimentos, disponíveis na Unidade: Recebeu a receita para a medicação, que
não tinha mais no posto.(O4)
Quando possível, adquirem a medicação o que, normalmente, fica para o início do
mês, após recebimento da aposentadoria. Isso, se sobrar algum dinheiro: ...às
vezes o cara vai lá e não tem remédio nenhum. Umas 2 ou 3 vezes não tinha lá
daí a gente tem que comprar. Quando tem dinheiro, né.(E1)
Outra alternativa é tentar receber a medicação em outras Unidades Sanitárias:
Quanto à receita do diurético para a mãe, que estava em falta, disse que
tentaria retirar no posto em seu bairro.(O5)
Esse aspecto da falta de materiais foi percebido ao longo da investigação:
...não foi possível fazer o HGT, pois faltava material. Expliquei que o
material chega mais para o fim do mês...(O4)
Para as famílias é um alívio quando o material chega, pois se sentem
angustiadas com o fato de não terem condições de adquiri-lo e, com isso,
prejudicar o acompanhamento à saúde do idoso: Comentei que haviam chegado as
fitas de HGT, e que amanhã de manhã viria fazer o teste. Ela gostou.(O6)
5 Considerações finais
Os achados revelam a inexistência de suporte social às famílias pobres,
cuidadoras de idoso fragilizado, que se sentem distanciadas dos recursos e, em
conseqüência, assumem, além das atividades inerentes ao cuidado no domicílio,
àquelas que deveriam ser assumidas pela seguridade social.
A vivência das famílias nos serviços públicos de saúde causa-lhes indignação.
Expressam a constante percepção quanto à falta de humanização, à discriminação,
à postura autoritária, à desconsideração do paciente e do familiar em seu
contexto, pelos profissionais de saúde, especialmente da enfermagem e da
medicina no ambiente hospitalar. O modelo institucional não tem absorvido os
parâmetros éticos contidos na Constituição Federal(29) e na Lei Orgânica da
Saúde(23).
Essa percepção remete à necessidade de reflexões e mudanças profundas nas
relações de poder entre profissionais e com a população, a busca pela
humanização do cuidado, a concretização dos demais princípios implícitos no
Sistema Único de Saúde. Há que se intensificar tais abordagens tanto entre os
profissionais, quanto no mundo acadêmico, com o intuito de comprometê-los e
motivá-los à participação política que leve à transformações no sistema e das
condições de trabalho próprias à atuação humanizada e integral.
A pesquisa possibilitou a percepção de que a municipalização da Unidade
Sanitária do contexto da investigação, ao lado do esforço e dedicação de
integrantes da equipe, amplia continuamente seus serviços, bem como a
qualificação destes.
Ainda assim, as famílias deparam-se, muitas vezes, com a dificuldade de acesso,
permanecendo numa posição de isolamento do sistema. Em várias situações,
vivenciam uma difícil relação entre equipe e população. Essa, possivelmente,
tem sua origem no pouco conhecimento que os profissionais podem ter da
realidade das famílias e no fato de a demanda por serviços ser maior que a
oferta.
A busca constante pela consolidação do SUS os princípios de integralidade,
universalidade, eqüidade, resolutividade e humanização do atendimento é, ao
nosso entender, o grande desafio que se coloca.
O redirecionamento de uma prática centralizada no médico, para uma organização
centrada na qualidade de vida das pessoas e do ambiente, é o que preconiza o
SUS. O acolhimento mostra-se como diretriz operacional própria para a inversão
do modelo, exigindo, no entanto, a qualificação de toda a equipe para que
qualquer mudança possa ser implantada.