A participação do enfermeiro na implantação do Programa de Saúde da Família em
Belo Horizonte
PESQUISA
A participação do enfermeiro na implantação do Programa de Saúde da Família em
Belo Horizonte
The nurse's participation in implementing the Family Health Program (PSF) in
Belo Horizonte
La participación del enfermero en la implantación del Programa de Salud de la
Familia (PSF) en Belo Horizonte
Cláudia Maria de Oliveira PereiraI; Marilia AlvesII
IEnfermeira. Mestre em Enfermagem
IIEnfermeira. Doutora em enfermagem. Professora do Departamento de Enfermagem
Aplicada da Escola de Enfermagem da UFMG. Líder do Núcleo de Pesquisa em
Administração em Enfermagem
E-maildo autor: arturelisa@aol.com
1 Introdução
Como resposta às discussões levantadas no Brasil desde o Movimento da Reforma
Sanitária (MRS) que culminaram com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS),
novas estratégias em busca da efetiva implantação dos princípios doutrinários e
operacionais da atual política de saúde têm sido propostas pelo governo e
adotadas pelos serviços estatais, tais como o Programa de Agentes Comunitários
de Saúde (PACS), em 1991, e o Programa de Saúde da Família (PSF), em 1994.
Reconhecidas como importantes para o aprimoramento e consolidação do SUS, a
partir da reorientação da assistência ambulatorial e domiciliar(1),
reorganizando a Atenção Básica na lógica da Vigilância à Saúde (VS), foram
implantadas em todo o país, inicialmente nos pequenos municípios, e,
atualmente, nas grandes cidades e capitais dos Estados.
Nesse sentido, dando continuidade ao PACS, o Ministério da Saúde (MS), ao
lançar o PSF, valoriza a territorialização, estabelece vínculo com a população,
reforça a garantia de integralidade na Atenção Básica, dá ênfase à promoção da
saúde com o fortalecimento das ações intersetoriais, promove a participação da
comunidade e o trabalho de equipe sustentado pela atuação multidisciplinar(2).
O enfermeiro, como membro da Equipe de Saúde da Família (ESF) desempenha
importante papel na implantação e condução tanto do PACS quanto do PSF em todo
o território nacional. Em Belo Horizonte, uma das primeiras capitais a iniciar
aimplantação do PSF, percebe-se uma intensa participação do enfermeiro em todas
essas frentes de trabalho apesar das dificuldades políticas e operacionais
encontradas. No entanto, ainda não se empreenderam estudos sobre a forma como
ocorre esta participação no processo de implantação do PSF, principalmente por
se tratar de implantação em uma metrópole.
A vivência profissional das autoras permite verificar que o enfermeiro tem
ampliado o seu campo de atuação, absorvendo novas ações de cuidado, de natureza
individual e coletiva, responsabilizando-se pela coordenação, supervisão e
educação permanente dos elementos da equipe de enfermagem e sendo reconhecido
pela sua experiência de administração, tanto da assistência como do serviço.
Esse reconhecimento, em parte, parece decorrer da facilidade em lidar e de se
relacionar com clientes antigos, que são a família e a comunidade, engajando-se
nessa proposta.
No entanto, apesar do enfermeiro ter assumido a coordenação do PACS,
supervisionando as ações e a capacitação dos ACS e dos Auxiliares de Enfermagem
(AE), com vistas ao desempenho de suas funções(3), o mesmo enfrenta problemas
relacionados à valorização do seu trabalho no PACS, à diferenciação salarial e
de tratamento diferenciado entre médicos e enfermeiros e, ainda, sobrecarga de
trabalho, por ser obrigado a assumir, ao mesmo tempo, atividades das Unidades
Básicas de Saúde (UBS), do PACS e PSF.
Assim, torna-se relevante o estudo da participação do enfermeiro na implantação
do PSF em um grande centro urbano a partir da visão daqueles que já estavam
inseridos no PACS e envolvidos no processo do PSF como participantes ativos e
fundamentais na reorganização dos serviços de saúde.
Outra premissa importante é que o PSF é uma oportunidade para o enfermeiro
desenvolver ações que lhe são próprias, entre, elas a clínica,"campo principal
onde se operam as tecnologias leves"(4:107), em que já existe uma marca da
competência desse profissional na assistência aos indivíduos e famílias, em uma
perspectiva centrada no usuário e que se potencializa com o trabalho da ESF.
Investigar tais questões permite entender a participação do enfermeiro no
programa, bem como favorece reflexões a respeito do fenômeno, como subsídio
para ampliar as perspectivas dos que lidam com o PSF e a formação de novos
profissionais.
Em Belo Horizonte, o processo de reordenação da assistência iniciou-se com o
PACS/Programa BH VIDA, através de uma equipe composta por ACS e enfermeiro. A
partir de 2001, iniciaram-se as discussões sobre as ESF, "enquanto alternativa
de ampliação de serviços e reorganização da rede básica"(5:11). Segundo o
sistema de informação ARTE-BH, Belo Horizonte contava em 2002 com 302 ESF
básicas, constituídas por um enfermeiro, um médico, dois auxiliares e quatro a
cinco ACS, e 13 equipes de apoio formadas por profissionais de outras
especialidades, em regime de vinte horas semanais, e, de acordo com o risco,
cada ESF atendia de 600 a 900 famílias cada.
Assim, este estudo foi realizado com o objetivo de analisar a participação do
enfermeiro no processo de implantação do PSF em Belo Horizonte a partir da
perspectiva dos mesmos, visando a compreender sua inserção e suas expectativas
como agente que contribui para a organização dos serviços de saúde e para a
superação dos problemas encontrados na implantação do PSF em uma cidade de
grande porte.
2 Origem e evolução do Programa de Saúde da Família
Vários programas e estratégias foram implantados no Brasil com o intuito de dar
encaminhamento aos princípios do MRS. Inspirado em iniciativas anteriores que
visavam a mudanças no modelo assistencial e consolidação do SUS, o Governo, em
1991, através do Ministério da Saúde (MS), lançou o PACS com o propósito de
conter os elevados indicadores de morbimortalidade infantil e materna no
Nordeste do Brasil(2).
Em 1994, o MS lança o PSF como estratégia que prioriza as ações de promoção,
proteção e recuperação da família e do indivíduo, tanto adultos como a
crianças, sadios e doentes, de forma integral e contínua(4).
O Programa ressalta a importância das conexões entre saúde e cuidado de saúde
para superar a hegemonia dos enfoques biomédicos e criar e manter os enfoques
primários como forma de melhorar as condições de saúde dos indivíduos em um
ambiente saudável. Porém, o ideário e as concepções intrínsecos à nova
estratégia não garantiriam, por si só, que haveria ruptura com o modelo médico-
centrado. Na realidade, ainda não existem dispositivos com energia para tal,
pois:
O programa aposta em uma mudança centrada na estrutura, ou seja, o
desenho sob o qual opera o serviço, mas não opera de modo amplo nos
microprocessos de trabalho em saúde, nos fazeres do cotidiano de cada
profissional, que em última instância é o que define o perfil da
assistência(6:3).
Nessa perspectiva, a principal concepção do PSF se estabelece nos princípios de
promoção da saúde e da atenção à família, como unidade programática de atenção
à saúde. Está apoiado na epidemiologia e na vigilância à saúde, ambos
relacionados à medicina comunitária e aos cuidados primários de saúde inscritos
como "cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e técnicas práticas
[...] colocados ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade"(4:
16).
Alguns elementos favoráveis ao desenvolvimento e à consolidação do PSF passam:
a) pelo espaço político e institucional, ocupado por uma estratégia
estruturante da Atenção Básica, capaz de contribuir para a reorganização dos
sistemas locais; b) pelo incremento de recursos orçamentários, inclusive
externos, com a inclusão de novos parceiros gestores e instituições de ensino e
por último, c) pela incorporação da NOAS 01, que dá mais resolutividade à
Atenção Básica, organizando os serviços de forma hierarquizada e regionalizada,
e possibilitando uma assistência integral(7).
Se, por um lado, há elementos favoráveis, por outro, a prática tem revelado a
incapacidade de se oferecerem respostas aos problemas de capacitação das ESF
que demonstram despreparo técnico e clínico, além de insegurança, devidos à
mudança para uma atenção orientada para a vigilância à saúde. As condições de
trabalho são precárias, também, no que diz respeito aos recursos materiais e
físicos, pois se utilizam os recursos já existentes e não há na rede suporte
para assegurar os princípios de integralidade e eqüidade(8).
No estudo Perfil dos Médicos e Enfermeiros do PSF no Brasil(9), os
profissionais relatam como geradores de desgaste, em primeiro lugar, o vínculo
precário e, na seqüência, o excesso de trabalho, a falta de recursos humanos,
materiais e medicamentos, a dificuldade de acesso, a baixa remuneração e as
falhas no sistema de referência e contra-referência.
Sob esse enfoque, o PSF procura construir uma prática baseada no trabalho de
equipe, prática esta ancorada nos princípios da integração entre as famílias, a
comunidade e o sistema de saúde para identificar os fatores de risco e manter a
vigilância epidemiológica. Assim como alcançar melhor qualidade de vida,
valorizando as crenças e valores dos atores envolvidos. Essa prática deve,
ainda, ser realizada em território definido, com famílias previamente
determinadas, com a entrada das equipes no domicílio das famílias. A proposta
implica troca intensa e próxima que merece cuidado, pois o propósito é formar
vínculos entre os envolvidos.
As novas práticas na comunidade e nas UBS devem ser desenvolvidas por uma
equipe multiprofissional, que é considerada o elemento chave para o
desenvolvimento do trabalho na Saúde da Família. O MS pressupõe em relação às
ações entre profissionais de áreas diferentes, que,
Além das ligações tradicionais, a possibilidade de a prática de um
profissional se reconstruir na prática do outro, transformando ambas
na intervenção do contexto em que estão inseridas. Assim para lidar
com a dinâmica da vida social das famílias assistidas e da própria
comunidade [...](3:74).
O trabalho em saúde tem uma complexa configuração tecnológica que produz e
reproduz as intervenções para atuar nos problemas e satisfazer as necessidades
de saúde. Assim,
há uma relação entre os três tipos de tecnologia que podem produzir
qualidade no sistema, alcançar a maior defesa pela vida do usuário e
controle dos seus riscos de adoecer e morrer e agravar o seu
problema, bem como desenvolver ações que permitam a produção de um
maior grau de autonomia(4:106-107).
Portanto, o PSF ao propor alteração no modelo assistencial aposta na mudança de
comportamento dos profissionais de saúde, até então marcado pelo distanciamento
em relação aos interesses do usuário, pela ausência de um trabalho em equipe
que realce a interdisciplinaridade e pelo predomínio das modalidades de
intervenção centradas nas tecnologias duras(6). Desta forma, é importante
incentivá-los a priorizar e operar tecnologias leves, que podem resolver
problemas de saúde a baixo custo, reaquecendo as relações de equipe e com o
usuário, no ambiente da família e das UBS.
A proposta do PSF aposta nas ESF responsáveis por determinado número de
famílias. Porém a formação das mesmas é ameaçada em sua operacionalização pela
cultura do usuário e dos profissionais que mostram preferência pelo modelo
tradicional e o atendimento por especialistas.
No entanto, a implantação do PSF está abrindo um novo e promissor mercado de
trabalho para os profissionais de saúde, ampliando a capacidade de absorção
para todos os municípios com incentivos do governo federal. Mas, exige-se
adequação do perfil para atuação em saúde comunitária e carga horária de oito
horas diárias, em troca de salários mais compatíveis. Essas proposições
significam dedicação integral ao PSF e possibilidades de reestruturação dos
serviços evitando, assim, o conflito de interesses existente hoje entre o
público e o privado, em virtude dos múltiplos vínculos empregatícios. Para tal,
a adesão dos profissionais torna-se fundamental e tem significado mudanças
importantes no perfil de empregos em saúde no país e na cultura das corporações
profissionais.
A estratégia do PSF para colocar em prática as mudanças do modelo assistencial
que completem o ciclo de transição do SUS deve considerar alguns determinantes
da dinâmica do mercado em saúde, tais como a formação e a capacitação, a
educação continuada, a oferta de postos de trabalho e novas formas de
remuneração capazes de gerar estímulo para novos padrões de prestígio
profissional(10).
3 Percurso metodológico
Utilizou-se, neste estudo, uma abordagem qualitativa, tendo como base o
Materialismo Histórico Dialético e estudos sobre o modelo de assistência com
foco na Atenção Básica.
O cenário da pesquisa foi a UBS do Distrito Sanitário Noroeste - DSN, uma das
nove regionais do município de Belo Horizonte, por uma questão de opção
metodológica, cujos critérios foram baseados no fato do DSN apresentar o maior
número de ESF implantadas e pela facilidade de inserção da pesquisadora.
A coleta de dados foi realizada no período de setembro de 2001 a março de 2002
e teve como sujeitos dez enfermeiras de dez Unidades Básicas de Saúde (UBS) do
Distrito Sanitário Noroeste e uma enfermeira da Secretaria Municipal de Belo
Horizonte, coordenadora do PSF em Belo Horizonte. Para a coleta de dados foram
realizadas entrevistas, a partir de um roteiro básico de questões abertas, que
foram gravadas e transcritas, após anuência dos sujeitos, sendo finalizada
quando se observou a saturação dos dados, ou seja, nenhuma informação nova
estava sendo acrescentada. Dos depoentes se obteve o consentimento livre e
informado.
Os dados foram submetidos á análise de discurso a saber, com a ordenação dos
dados a partir de leitura horizontal dos relatos, classificação e agrupamento
desses por temas, e, finalmente, cotejamento dos dados com a literatura e as
questões da pesquisa(11).
4 O Programa de Saúde da Família em Belo Horizonte na ótica do enfermeiro
Em relação às concepções que os enfermeiros têm do PSF a análise dos dados
permitiu apreender que tais concepções são expressas ao definirem as
características do programa, seus objetivos, princípios e práticas, como nos
enunciados a seguir: Mudança no processo de trabalho e deixar de ser
curativista, modelo médico centrado(E.7);Objetivo maior de ser mais preventivo
e criar vínculo (E.7); que o PSF realmente dê assistência às famílias (E.8).
As falas das entrevistadas expressam a percepção da necessidade de mudança no
modelo assistencial, no processo de trabalho e na forma de assistir, para o
atendimento daqueles que procuram os serviços de saúde, como se verifica na
fala a seguir apresentada: A integração no todo, porque o PSF não é só a saúde.
[...] um projeto aí que visa à saúde, à saúde bucal, à saúde mental, ao aspecto
social (E.1). Busca da humanização, de organização de serviços, utilizando
todos os dados [...] (E.9).
Percebe-se que os enfermeiros reconhecem suas inseguranças e ansiedades, como
elementos normais no contexto de mudanças, pois,
rejeição e aceitação da novidade dependem, em grande parte, do papel
desempenhado pelo indivíduo, manifestando-se de formas diversas de
acordo com as características pessoais e as possibilidades do
contexto(12:196).
Nesse sentido, se por um lado a inovação é inevitável, nem tudo pode ou deve
ser alterado todo o tempo, pois é necessária alguma estabilidade, até como
referência da própria mudança.
Em relação à operacionalização das açõesas enfermeiras relatam a importância e
as dificuldades de esclarecer, para a população, as formas de implantação do
PSF:
[...] eu acho que isso no início é que vai ser complicado, para
estarmos explicando para a população esse trabalho nosso, [...].
Agora, quanto à visita, é somente para aquelas pessoas que não podem
ir ao Centro de Saúde, queremos que a pessoa vá ao Centro de Saúde.
Só vamos quando a pessoa não pode vir(E2).
Nesse sentido, é importante ressaltar que o processo de construção e adaptação
das formas de assistir no PSF em Belo Horizonte passou por algumas versões, o
que torna legítima a dificuldade dos profissionais e da clientela para entender
o que é o PSF, também chamado BH-SAÚDE, BH-VIDA e, ainda, nas formas de se
efetivar a sua implantação.
Consideram o vínculo e a responsabilização como a tônica da mudança na lógica
dos atendimentos capazes de garantir a continuidade da assistência e o
acompanhamento da família no processo saúde-doença, como expresso no relato a
seguir: Eu já ouvi isto de profissional: o cliente não é meu, é do Centro de
Saúde [...] temos que estar mudando esta lógica. Vai mudar e tem tudo a ver
comigo (E9).
Percebe-se pelos relatos que existe um processo em construção e que na
transição todo o sistema deverá ser reestruturado segundo a lógica do PSF, na
perspectiva de uma integração entre os níveis de atenção e desses com o nível
central, pois
O PSF realmente começa a esbarrar nisso. Então se tiver uma estrutura
por trás disso [...] a atenção secundária, a consulta especializada,
enquanto não houver esse apoio, acho que não vai funcionar muito.
(E6).
Ainda perdura no modelo brasileiro uma proporção maior de recursos destinados à
assistência hospitalar e aos procedimentos de alta complexidade em relação
àqueles oferecidos nas UBS(13). Se o PSF busca maior resolutividade e acesso
para os usuários, deverá existir integração entre os serviços e
disponibilização de recursos técnicos e operacionais.
Em relação ao processo de implantação do PSFem Belo Horizonte, foram adotadas
algumas medidas iniciais de reordenação do Sistema de Saúde voltadas para a
Atenção Básica e que influenciaram na organização do trabalho do enfermeiro,
como a se pode verificar:
Um fator superpositivo foi a decisão de Belo Horizonte estar
implantando o PSF, principalmente por já ter o PACS, pesou também
[...]. O agente já passou por esse processo, eles já passaram por
vários treinamentos(E2).
As enfermeiras entrevistadas reconhecem a importância da implantação prévia do
PACS como elemento facilitador para a implantação do PSF, pois permitiu treinar
os ACS, estreitar laços com as famílias sob sua responsabilidade e vivenciar
experiências de trabalho em equipe.
Relatos das expectativas dos enfermeiros em relação à transição do PACS para o
PSF deixam clara a insegurança dos profissionais diante da complexidade da
implantação do programa em um grande centro urbano e da organização precária da
administração central para implantar programas de grande porte com
redirecionamento das ações e do modelo de atenção, como aponta um dos sujeitos,
Por enquanto está tudo assim, uma incógnita. Ninguém sabe. Todo mundo
que você pergunta fala: eu não sei! Os gerentes não sabem [...] acho
que até a própria coordenação ainda está muito insegura [...](E6).
Na maioria das cidades brasileiras, a implantação do PSF iniciou-se nas áreas
de maior risco ou mais carentes de Atenção Básica, localizadas na periferia das
cidades. Essas regiões se caracterizam por acesso escasso aos serviços de
saúde, população pouco informada sobre cuidados básicos de saúde e falta ou
carência de saneamento básico(3). Em Belo Horizonte o processo de implantação
das ESF foi gradativo, levando-se em conta os critérios de risco, a adesão dos
profissionais e a infra-estrutura. As ESF começaram a ser constituídas em
janeiro de 2002, perfazendo no mês de junho daquele ano um total de 272 ESF,
com a meta de se constituírem 450 ESF para atender as áreas de risco muito
elevado, de elevado risco e de médio risco com cobertura de 70% da população
(14).
Em relação à incorporação do enfermeiro na implantação do PSF, emerge dos
depoimentos a percepção do trabalho nas Unidades Básicas de Saúde como
relevante para a sociedade e que esse foi assumido, principalmente,
considerando-se a visão generalista do enfermeiro: Acho que a nossa formação
também é mais generalista e se está envolvido em todos os programas, [...]
neste processo de mudança [...] (E9).
A implantação do SUS e o processo de municipalização da saúde resultaram na
reorganização da saúde no município e o enfermeiro esteve presente de forma
significativa nas ações administrativas, assistenciais e educativas, dentro e
fora dos consultórios, marcando importante presença na evolução do SUS. Parece-
nos que foi um processo construído ao longo da década e que, no momento, traz
merecidas oportunidades para os enfermeiros, o que ocorreu com outros
profissionais, que se abstiveram de participar das experiências que hoje são
exigências da nova proposta de assistir.
Os depoimentos revelam, ainda, a avaliação do trabalho do enfermeiro,pelos
usuários, e como essa avaliação se revela importante e gratificante, por
exemplo,
[...] por que ele não está só dentro do consultório atendendo
consultas [...] é na supervisão, na visita, é no trabalho junto às
escolas, creches, então é um profissional mais conhecido e ligado à
comunidade [...](E4).
Emerge dos relatos o sentimento de satisfação dos profissionais da enfermagem
pelo reconhecimento por terem sido requisitados de forma preferencial dentre os
elementos da equipe, devido ao grau de liberdade, facilidade de comunicação e
confiança dos usuários, o que parece legitimar a sua prática, colocando-os no
lugar daquele que facilita e agiliza o atendimento do cliente, que o escuta e o
encaminha.
Um outro aspecto que se pode perceber a partir dos relatos é a necessidade de
um perfil adequado para trabalhar em equipe, considerado mesmo como questão
essencial para a integração dos profissionais e o desenvolvimento de ações
comunitárias:
Então, eu acho que o enfermeiro é fundamental na equipe, ele é o elo
que conhece [...], que vai ser o responsável técnico pelo agente
comunitário, pelo auxiliar [...], vai ser o responsável ali pela
equipe pela própria função, pela própria capacitação(E2).
Pelos relatos dos entrevistados o enfermeiro se destaca neste processo por
possuir experiências de planejamento, execução e avaliações de ações
assistenciais, administrativas e educativas, as quais, no PSF, são requisitos
fundamentais.
Abre-se, assim, espaço para repensar um novo perfil de trabalhador, adequado às
demandas da saúde da família em seus múltiplos aspectos. No entanto, como a
maioria dos profissionais das ESF não tem formação direcionada para o novo
perfil desejado, as entrevistadas relatam a importância da capacitação na
expectativa de que se forneçam os conhecimentos necessários para atuar no
programa. Nesse sentido, a SMSA do município avança ao considerar a capacitação
voltada para a saúde da família como condição para a permanência no PSF, como
explicita a coordenação do PSF:
O curso de especialização não completa essa formação, mas ele dá o
caminho, é o início, é uma semente mesmo para essa formação [...]
(E10).
Em Minas Gerais, o Pólo de Capacitação, Formação e Educação Permanente de
Pessoal para Saúde da Família (PCFEP-SF) da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) foi criado em 1998 e com o objetivo de apoiar a implementação do
PSF no Estado, atuando na formação de recursos humanos, na produção e
incorporação de novas tecnologias na assistência e na educação permanente dos
profissionais da ESF.
Nessa mesma linha de trabalho, os cursos de graduação deverão desenvolver
competências para os enfermeiros atuarem no PSF, uma vez que a maioria dos
enfermeiros incorporados pelo programa tem até quatro anos de formados e
somente 35,49% fizeram alguma especialização(9). Porém, a formação generalista
do enfermeiro não o desobriga de adquirir formação mais adequada ao cuidado, de
forma a atuar eficazmente com o novo ator que se introduz no cotidiano de
trabalho: a família.
Com a implantação do PSF no município surgem alguns fatores facilitadores e
dificultadores que auxiliam na compreensão do processo de implantação do PSF e
da forma como o enfermeiro percebe a sua inserção nesse contexto,
E ele é [...] peça importante nisso, nesse quebra-cabeça (E2).
Então, esta falta de condições de trabalho e valorização, mesmo financeira,
infelizmente é o que conta(E1).
Percebe-se que as condições de trabalho oferecidas aos enfermeiros não são
adequadas às exigências, habilidades e experiências acumuladas, principalmente
em relação à remuneração. Tais situações geram desconfiança, sentimento de
exclusão e desvalorização, apesar do desejo de mudar dos enfermeiros. Nesse
contexto, em um primeiro momento de implantação do programa, profissionais com
qualificação, com habilidades e competências desenvolvidas para trabalhar com
famílias e comunidades, além da preferência pelo trabalho em saúde pública são
essenciais e devem ser escolhidos, pois podem ser o diferencial estratégico
para o sucesso do programa em grandes metrópoles.
No entanto, cada sujeito é peça chave, assim como um trabalho em equipe, uma
maior credibilidade dos gestores, e todas as condições e os recursos adequados
para a implantação do PSF, como apontam os informantes,
Tem a questão da planta física. Aqui é completamente inadequado (E7).
Temos pilhas de consultas especializadas agendadas, vai emperrar se não tiver
este suporte (E9).
Para os entrevistados, as condições de trabalho são inadequadas e não há
suporte em outros níveis do sistema, uma questão clara de que há problemas
gerenciais como falta de planejamento, integração e suporte à implantação do
PSF, os quais chegam a ser insustentáveis, podendo dificultar, ou mesmo
impedir, o sucesso da implantação do PSF em sua totalidade. A credibilidade
necessita ser resgatada para que ocorra o envolvimento e a participação
conjunta de todos os atores envolvidos no processo.
5 Considerações finais
O processo de implantação do PSF foi facilitado pela existência anterior do
PACS, o que proporcionou maior conhecimento dos indivíduos e famílias e uma
visão geral das condições de saúde da população. A coordenação do programa pelo
enfermeiro permitiu avanços para a categoria, que estabeleceu laços com as
famílias, acumulou experiências de trabalho em equipe e aumentou a valorização
profissional. Porém, o aumento da demanda realçou as deficiências do sistema,
esgotando a capacidade de atuação desses trabalhadores, o quê, por sua vez,
repercute na implantação do PSF.
Asdeficiênciasde planejamento e as poucas oportunidades de discussão durante o
processo de implantação do PSF potencializaram as inseguranças, confrontos,
questionamentos, insatisfações e resistências. Percebe-se que existem
dificuldades nas relações entres os profissionais envolvidos e que esses ainda
não estão preparados para o trabalho compartilhado.
No entanto, o enfermeiro se destaca na operacionalização da estratégia, pois é
reconhecido pela comunidade e pelos profissionais como aquele que escuta, em
quem o usuário confia, que facilita e agiliza o atendimento e, se necessário,
vai até o domicílio. Sua inserção é favorecida por sua disponibilidade,
formação generalista, facilidade de comunicação e experiência no planejamento,
execução e avaliação das ações de saúde tanto assistenciais e administrativas,
como educacionais.
Os dados empíricos revelam que existe resistência e uma concordância passiva em
relação às diferenças salariais entre médicos e enfermeiros que são entendidas
como desvalorização profissional. Ao mesmo tempo, apesar da indefinição de
papéis, da sobrecarga de trabalho e dos salários inferiores, houve uma grande
adesão de enfermeiros ao programa. Um novo perfil do enfermeiro configura-se
para facilitar a identificação do profissional com o trabalho a partir das
novas competências exigidas pelo PSF, que se expressa por meio de ações
concretas no trabalho comunitário e de capacitação profissional.
Considerando que os enfermeiros estão sensibilizados quanto à necessidade de
mudanças no setor saúde, e conscientes da especificidade de suas ações e de sua
importância no contexto de implantação do PSF, acredita-se no potencial desse
profissional para o trabalho com a comunidade, em equipes sustentadas por
atuação multiprofissional na busca da construção de trabalho interdisciplinar e
no PSF como estratégia de reorientação da assistência à saúde.
Processos de mudança são marcados por resistências e conflitos que tendem à
adaptação e reestruturação com o decorrer do tempo. Assim, a implantação do PSF
em Belo Horizonte, como experiência piloto em uma grande metrópole do país, por
contar com o comprometimento dos enfermeiros e investimento em capacitação da
equipe de forma contextualizada, pode contribuir para a mudança do modelo
assistencial envolvendo acesso, aporte tecnológico apropriado às necessidades,
qualidade da assistência, redução de custos e aumento da satisfação de usuários
e profissionais.