Os saberes da enfermagem
REVISÃO
Os saberes da enfermagem
Nursing knowledge
Los saberes de la enfermería
Valéria Silvana Faganello Madureira
Enfermeira. professora da Universidade do Contestado - UnC Concórdia; aluna do
Doutorado em Enfermagem da UFSC. Bolsista CNPq
E-mail do autor: val@uncnet.br
1 Introdução
A Enfermagem Moderna nasceu em meados do século XIX com Florence Nightingale
que organizou a atenção a doentes em hospitais e enfatizou a necessidade de
preparo formal para as pessoas interessadas em exercer a Enfermagem.
Na Inglaterra Vitoriana, espaço-tempo em que se deu a luta de Nightingale pela
organização e valorização da Enfermagem moderna, eram grandes as restrições às
mulheres consideradas como objetos decorativos dos lares de seus pais e de seus
maridos, especialmente as pertencentes às classes mais abastadas. A figura
masculina era central no viver das mulheres; a partir dela as normas sociais
eram estabelecidas e dela as mulheres dependiam não só financeiramente, mas
também para conquistar 'respeitabilidade'. Às mulheres não era dado acesso à
educação formal e nem ao mercado de trabalho, exceto naquelas atividades de
baixo status, longas jornadas e baixa remuneração, o que as colocava na
dependência econômica de seus pais ou maridos, dificultando a sobrevivência na
ausência de um mantenedor masculino.
Naquele momento, crescia a atividade industrial, confinando os trabalhadores
por longas jornadas ao espaço físico da indústria para o desempenho de suas
funções e aumentando a aglomeração de pessoas na periferia das cidades, vivendo
em condições de promiscuidade. Além disso, a microbiologia ensaiava seus
primeiros passos, dando um novo rumo ao estudo e compreensão do processo saúde-
doença bem como ao tratamento das enfermidades.
Neste contexto, Nightingale organizou a Enfermagem como uma forma de preencher
a vida das mulheres que, com o preparo necessário, poderiam atuar na manutenção
da saúde e no cuidado de doentes, utilizando-se de recursos do meio ambiente
para manter o paciente nas melhores condições para que a natureza pudesse agir
sobre ele(1).
No século XX, a Enfermagem direcionou seus esforços para ser reconhecida como
ciência, desenvolvendo teorias de Enfermagem dentro do paradigma da totalidade
(2)e a busca por um corpo substantivo de conhecimento a impulsionou para
explicitação de suas bases teóricas para a prática(3).
Esta busca tem sido influenciada por uma filosofia tradicional de ciência, o
que se refletiu na prática e na educação de Enfermagem, influenciadas por
normas da ciência e da ciência comportamental e por normas médicas masculinas,
gerando forte ênfase no fazer, problemas com status, autoridade e auto-estima,
além de uma série de dicotomias: prática-teoria, subjetividade-objetividade,
prática-pesquisa, arte-ciência, profissão-disciplina, fazer-saber, cuidar-curar
(4).
Nas últimas décadas do século XX, a Enfermagem procurou superar as limitações
do modelo tradicional de ciência e da vertente biomédica dominante na atenção
de saúde, revalorizando aspectos não mensuráveis, não controláveis do cuidado
como, por exemplo, a experiência subjetiva, o significado pessoal desta
experiência, as diferentes formas de enfrentar as situações envolvidas no viver
cotidiano, o ser-estar junto com o outro, o saber do outro, as diferenças
culturais, dentre outros.
2 Os saberes da enfermagem na literatura
No final da década de 70, um artigo tratando dos padrões fundamentais de
conhecimento em Enfermagem suscitou uma série de análises e críticas, bem como
inspirou um bom número de trabalhos sobre o assunto nos anos que se seguiram,
sendo considerado um dos escritos mais influentes da Enfermagem no século XX
(5). Foram quatro os padrões de conhecimento identificados: empírico, a ciência
de Enfermagem; estético, a arte de Enfermagem; pessoal e ético(6).
O conhecimento empírico, sistematicamente organizado em leis gerais e teorias,
tem o propósito de descrever, explicar e predizer fenômenos de interesse da
Enfermagem. De 1950 em diante houve forte ênfase à busca de um corpo de
conhecimento empírico específico para a Enfermagem, o que gerou estruturas
conceituais que, apesar de não terem alcançado o statusde paradigma científico,
apresentaram novas perspectivas para considerar o fenômeno saúde-doença no
processo de viver humano. Isto decorre da percepção de saúde como um estado
dinâmico que se modifica em um período de tempo e de acordo com as
circunstâncias(6).
É um conhecimento baseado em fatos, descritivo e fundamentalmente voltado para
o desenvolvimento de explicações teóricas e abstratas, replicável, amplamente
formulado e publicamente verificável(6). Este padrão de conhecimento é coerente
com a visão tradicional de ciência predominante na maioria das áreas de
conhecimento que conquistaram o reconhecimento como ciência.
Muitos dos primeiros trabalhos teóricos e das primeiras pesquisas da Enfermagem
foram desenvolvidos dentro de uma perspectiva essencialmente positivista, na
qual a objetividade e a possibilidade de generalização têm grande importância
(7).
A denominação conhecimento científico é também utilizada para designar o padrão
empírico de conhecimento e a ciência positiva, ainda, dominante atualmente,
criou uma ilusão de estabilidade ao tratar assuntos humanos com intensa
racionalidade o que, afastando a sensibilidade, colocou a ciência como único
caminho para um mundo teórico(8). Com o conhecimento científico, a enfermagem
abstrai a realidade com a finalidade de sistematizá-la, permitindo o
estabelecimento de
uma 'ponte' entre o abstrato e o concreto, de maneira a construir um corpo de
conhecimento, descobrir realidades ainda não visualizadas e encontrar soluções
para problemas relativos ao cuidado na assistência à saúde(8:19).
Este tem sido o padrão dominante na sociedade e, também, na disciplina de
Enfermagem(9). Entretanto, é possível perceber uma mudança de direção nos
estudos da área, com uma maior valorização de aspectos qualitativos dos
fenômenos estudados, centrais no processo de viver humano, no qual se inclui a
experiência humana de saúde e doença que envolve muito mais do que o corpo
biológico e patologias.
É importante questionar se o padrão empírico engloba todo o conhecimento
baseado em pesquisa. Talvez a definição precise ser modificada para incluir
posições ontológicas relativistas de desenvolvimento de conhecimento visando
metodologias como a fenomenologia(10). Se esta modificação não for feita, a
Enfermagem precisará reconhecer as limitações desta definição em englobar
conhecimentos empíricos que não buscam generalizações, mas sim interpretações
ou descrições que enriqueçam a compreensão dos fenômenos(10).
Outro padrão de conhecimento é o ético, o componente moral relacionado com as
difíceis escolhas a serem feitas no contexto do cuidado de saúde, que envolvem
questões fundamentais sobre certo e errado, para as quais os princípios e
códigos de ética não oferecem resposta(6). Este conhecimento focaliza-se sobre
a obrigação ou sobre o que deve ser feito, incluindo todas as ações
voluntárias, deliberadas e sujeitas a julgamento. A Enfermagem é ação
deliberada ou uma série de ações planejadas e implementadas para alcançar metas
definidas(6), mas tanto ações como metas envolvem escolhas guiadas por
princípios e normas que podem ser conflitantes.
A ética é fundamento decisório para o profissional de Enfermagem, pois as
decisões cotidianas de vida e de saúde vêm impregnadas pelo poder instituído,
pela formação técnica e pela própria sobrevivência do trabalhador, avançando
para além de aspectos puramente técnicos(11).
As ações, as decisões, envolvem juízos de valor que se fundamentam em
princípios ético-legais, posto que se dão no âmbito do exercício profissional,
do cuidado de Enfermagem, mas que envolvem também escolhas pessoais da(o)
enfermeira(o). No encontro entre códigos de ética, leis de exercício
profissional e escolhas pessoais nascem os dilemas éticos que podem tornar-se
tanto mais complexos quanto maior for a participação, inclusão, envolvimento do
outro na assistência.
O conhecimento moral requer fundamentalmente um envolvimento interpessoal
autêntico para seu desenvolvimento(10). Este é um ponto importante a ser
considerado, pois a assistência, o cuidado e o trabalho de Enfermagem sempre se
dão na relação com o outro, compreendido não somente como o cliente-paciente
com quem desenvolvemos o cuidado, mas também como a equipe de Enfermagem, a
equipe de saúde e a instituição de saúde com seus elementos administrativos e
organizacionais que concorrem para aumentar a complexidade do contexto no qual
as decisões devem ser tomadas e as escolhas devem ser feitas.
O elemento subjetivo individual do profissional presente no componente moral da
Enfermagem vincula intimamente o conhecimento ético com o conhecimento pessoal
também identificado(6). Este conhecimentoé o mais difícil para dominar e
ensinar e, talvez, o mais importante para compreender o significado de saúde em
termos de bem-estar individual. Refere-se ao conhecimento do self, ao
autoconhecimento e evidencia o uso terapêutico do self, o que implica que a
maneira como as(os) enfermeiras(os) vêem a si próprias(os) e aos clientes é
central em qualquer relação terapêutica(6).
No uso terapêutico do selfé importante o estabelecimento de um autêntico
relacionamento pessoal entre duas pessoas, o que requer a aceitação do outro e
o reconhecimento de que cada pessoa está constantemente engajada no processo de
vir a ser(6). Este conhecimento estende-se não somente aos outros, mas também
às relações de cada um para consigo próprio, expressa a singularidade do
indivíduo, promove o engajamento e nega a orientação impessoal manipuladora(6).
É preciso que a(o) enfermeira(o) conheça suas próprias forças e fraquezas para
ser expertno cuidado. Este conhecimento é subjetivo e inclui estar consciente
de si próprio e de como se relacionar com os outros. Sem este conhecimento do
selfque permite abertura para o conhecimento de outra pessoa, a Enfermagem
reduz-se a assistência técnica(7).
O conhecimento de suas forças e fraquezas pode permitir à(ao) enfermeira(o)
colocar-se no cuidado, percebendo o outro, envolvendo-se no cuidar, usando
terapeuticamente a si próprio. Será isso sinônimo ou pelo menos um componente
indispensável da hoje tão discutida humanização da assistência?
Este conhecimento tem um espaço primário e central em todos os conhecimentos,
assim a prática da Enfermagem é a expressão de conhecimento pessoal(12). A
credibilidade deste tipo de conhecimento é determinada pela reflexão individual
informada pelas respostas dos outros(9). Parece haver aqui referência a um
conhecer-se a si mesmo para expressar na relação com o outro, procurando
perceber na resposta do outro se aquilo que se expressa na relação é
equivalente àquilo que se é ou que se acredita ser; se há congruência entre o
que se diz e o que se faz, entre o que se faz e o que se sabe, entre o que se é
e o que se aparenta ser.
A relação com o outro remete ao quarto padrão de conhecimento, o estéticoou
arte de Enfermagem. Neste conhecimento, a empatia é importante para que se
possa conhecer a experiência particular, singular de outra pessoa. Envolve a
percepção de particularidades abstratas, de singularidades mais do que
universalidades. Quanto mais hábil for a(o) enfermeira(o) em perceber e
empatizar com o viver dos outros, mais conhecimento e compreensão ela(e)
alcançará de realidades diferentes, ampliando suas possibilidades de escolha
para um cuidado efetivo. Entretanto, uma maior consciência da multiplicidade de
experiências subjetivas aumentará a complexidade e dificuldade da tomada de
decisão(6).
O conhecimento estético é subjetivo, individual, singular, único e habilita a
aceitar a existência de fenômenos não quantificáveis, explicáveis por leis e
teorias existentes(7). Existe um debate na literatura de Enfermagem sobre a
adequação do termo empatia(6), considerado pouco apropriado por muitos.
Entretanto, independentemente do termo usado, a exigência de um engajamento
efetivo e autêntico permanece e o designdo cuidado combina todos os padrões de
conhecimento na formaestética(10). Parece estar aqui implícita a idéia de que
conhecimento estético refere-se à maneira como o cuidado se mostra à percepção
e à experiência do outro.
O conhecimento intuitivo, forma ou dimensão do conhecimento pessoal, refere-se
ao saber não racional, intimamente vinculado à noção de conexão e troca de
energia entre enfermeira(o) e cliente(9). O conhecimento intuitivo é um
componente importante do perceber e do vislumbrar, presentes também no
conhecimento estético(10).
Há indicação, na literatura, de um quinto padrão de conhecimento a ser
reconhecido na Enfermagem: o desconhecido, considerado como uma condição de
abertura, e de acordo com o qual a arte de desconhecer é um processo de
descentralização dos princípios próprios, organizadores do mundo de uma pessoa,
essencial para que se compreenda a subjetividade e a perspectiva de outrem(13).
O espaço para esta arte de desconhecer necessária à compreensão do outro, é o
campo perceptual formado quando duas ou mais pessoas se encontram, trazendo
suas perspectivas subjetivas para este encontro. Este campo perceptual é
denominado de espaço intersubjetivo do qual podem emergir compreensão humana,
empatia e conflitos(13).
A arte de desconhecer implica saber que não se sabe algo, que não se compreende
alguém de quem se está ao lado, situar-se na vida do outro baseando a interação
na admissão de que ele não é conhecido, o que traduz um estado de abertura.
Talvez paradoxalmente, dependa da introspecção que possibilita a compreensão do
outro (cliente/paciente) como um ser desconhecido, e de si próprio como um ser
diferente dele(13).
É possível perceber na proposição da arte de desconhecer elementos dos
conhecimentos pessoal e estético e do conhecimento intuitivo. Ao mesmo tempo, é
possível vislumbrar a presença do conhecimento empírico, indispensável no
cuidado, e do conhecimento ético necessário em todas as relações
intersubjetivas e que toma novos contornos quando estas relações se dão no
exercício cotidiano da Enfermagem.
Além destes conhecimentos, há referências também a outras dimensões: histórico,
técnico, humanístico e político(8). O conhecimento históricorefere-se ao
processo evolutivo da Enfermagem ao longo do tempo, o que se dá em íntima
articulação com o contexto no qual ela se insere, influenciando-o e sendo por
ele influenciada. Com este conhecimento, é possível compreender a trajetória da
Enfermagem, analisando as influências por ela recebidas, bem como "os caminhos
e descaminhos percorridos permitindo assim um cotejamento do passado com a
condição presente desta profissão"(8:16).
O conhecimento humanísticopermite uma compreensão ampla do ser humano, do que
ele é, do seu sentido e do seu lugar na vida, conduzindo à redefinição do ser
humano(8). Embora pareça haver aqui uma referência ao ser humano de uma forma
geral, sem especificar o eu e o outro, fica também implícita a necessidade do
conhecer a si mesmo, suas forças e fraquezas para melhor perceber/compreender o
outro e para usar terapeuticamente o self, o que evidencia uma aproximação
destas proposições com o conhecimento pessoal.
O conhecimento político, "coloca a questão dos fins, dos conteúdos, da
intencionalidade. Habilidade de comunicação, de mobilização e de participação
em movimentos coletivos" (8:23). A política é vista como uma atitude que marca
as ações e destinações humanas. Este conhecimento é necessário para a
compreensão da ideologia subjacente às propostas de saúde, das relações entre
privação econômica-saúde nas instituições, assistência-aliança com os usuários,
dos movimentos organizados da sociedade, entre outros.
O conhecimento sócio-político, também citado na literatura, é considerado
essencial para compreensão de todos os outros(10), o que vem ao encontro da
descrição de conhecimento político. Os demais conhecimentos orientam-se para
"quem", "como" e "o que" da prática de Enfermagem, enquanto que o conhecimento
político dirige-se ao "em que lugar"(10), deslocando o foco da relação
enfermeira (o)-paciente para situar a(o) enfermeira(o) no contexto maior em que
têm lugar a Enfermagem e o cuidado em saúde.
Este conhecimento inclui compreensão do contexto sócio-político das pessoas
(enfermeira e paciente) e do contexto sócio-político da Enfermagem, incluindo a
compreensão que a sociedade tem da Enfermagem e também a compreensão que a
Enfermagem tem da sociedade e de suas políticas.
3 Considerações Finais
Neste trabalho, a literatura consultada permitiu a identificação de diferentes
conhecimentos, deixando claro a importância e o reconhecimento atribuídos pela
enfermagem aos padrões de conhecimento propostos no final da década de 70(6).
Assim, o padrão empírico do conhecimento é também referido na literatura como
conhecimento científico e técnico; o padrão pessoal inclui o conhecimento
intuitivo e o humanístico proposto por outros autores; os padrões ético e
estético parecem consensuais entre os diferentes autores, inclusive na forma de
denominá-los .
A literatura faz referência também a outros conhecimentos, os quais parecem
ultrapassar a proposta de Carper(6) para compor outros padrões de conhecimento.
Este seria o caso do conhecimento sócio-político(10), do conhecimento político
(8),do conhecimento histórico(8)e do desconhecer(13).
Estes achados parecem apontar na direção de uma ampliação da proposta de Carper
(6) com a inclusão de outros três padrões de conhecimento: o padrão sócio-
político, o padrão histórico e o padrão desconhecer.
Entretanto, esta proposição merece reflexão mais profunda para que se evite
conclusões apressadas. Como exemplo, o padrão desconhecer poderia ser
considerado no padrão pessoal proposto por Carper(6), especialmente se tomarmos
em conta o exercício de estranhamento necessário a quem deseja perceber algo
para além das aparências. Assim, pensar o desconhecer parece indispensável para
o estabelecimento de um relacionamento interpessoal com aceitação e
conhecimento mútuos, nos moldes do que propõe o padrão pessoal(6).
Embora o conhecimento empírico tenha recebido maior atenção no último século em
função da busca do reconhecimento como ciência empreendida pela enfermagem, é
preciso ter clareza que, apenas com ele, é impossível dar conta da riqueza e da
complexidade do trabalho da enfermagem.
Todos os padrões de conhecimento se entrelaçam e se articulam de tal forma que
nenhum deles é suficiente sozinho e nem tampouco são mutuamente excludentes. Ao
contrário, o cuidado requer conhecimentos da ciência da Enfermagem, mas a
imaginação criativa é também importante na descoberta científica e no
desenvolvimento de habilidades para imaginar as conseqüências potenciais de
escolhas morais.
Os padrões de conhecimento revelam-se, todos, no exercício cotidiano da
Enfermagem e, neste exercício, a(o) enfermeira(o) emprega sua perícia, sua
habilidade, sua sensibilidade para entrelaçá-los, entremeá-los na construção da
arte e da ciência de Enfermagem.