A questão da morte e do morrer
REFLEXÃO
A questão da morte e do morrer
The issue of death and dying
Una reflexión sobre la muerte y el morir
Paula Vanêssa Rodrigues de AraújoI;Maria Jésia VieiraII
IEnfermeira. Mestre em Saúde da Criança. Mestranda em Ciências da Saúde.
Professora Assistente do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de
Sergipe
IIEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de
Enfermagem da Universidade Federal de Sergipe
E-maildo autor:mvjesia@infonet.com.br
1 A questão da morte e do morrer
Este estudo objetiva contribuir com a discussão sobre a "morte e o morrer", o
que não seria possível sem que houvesse a compreensão do que se pensa sobre
estes fenômenos.
São várias as formas de definir morte e morrer. Semanticamente, morte significa
"destruição, ruína, fim. Ato de morrer. O fim da vida animal ou vegetal"(1:
947). No sentido figurado esse mesmo autor define morte como "uma grande dor.
Pesar profundo. Uma entidade imaginária da crendice popular representada em
geral por um esqueleto humano armado de foice com a qual ceifa as vidas", e
define morrer como "perder a vida, falecer, findar-se, expirar, perecer".
Do ponto de vista filosófico, determinados autores(2-4) discutem a morte como
uma condição inerente ao ser vivo, sendo esta a única certeza que se tem do
desdobramento da existência humana. Assim, "morrer não é tornar-se outro, mas
vir a ser nada ou transformar-se em absolutamente outro"(2:17-18).
Outros autores(5-7) a definem como um referencial para o estudo da compreensão
da vida, não significando apenas a destruição, mas, mostrando que o ciclo da
criação e da destruição é eterno. É um acontecimento que completa a existência
humana o que significa que cada pensamento, cada emoção, cada gesto e cada
passo na vida aproxima o homem da morte.
Verifica-se que há uma diferenciação semântica entre esses fenômenos, em geral
falados como se fossem um único, sendo entendida a morte como um fenômeno
individual e único, um momento em que se encerra a vida biológica. Ela pode ser
acompanhada por outra pessoa, mas é vivida apenas por quem está morrendo(8). Já
o morrer é um processo que ocorre ao longo da vida e que precisa ser
compreendido existencialmente(9). Assim, ele pode ser experimentado, mas a
morte nunca. Seguindo esta linha de pensamento, "o morrer está pontuado por
sucessivas mortes que antecedem a morte final"(10:367), ocorrendo, desse modo,
a cada momento da vida. Sendo assim, essas duas questões devem ser
compreendidas e respeitadas da mesma forma que se tenta compreender a vida e
suas fases.
Entretanto, no dia-a-dia tem-se dificuldades para entendê-las e enfrentá-las,
como um acontecimento integrante de nossa existência que, tal como o nascer,
será vivido por todos: uns mais cedo outros mais tarde(11). O ser humano não
está preparado para aceitar a imposição de que seu destino é morrer e prefere
acreditar que a morte é o começo de uma nova vida infinita(12).
A vida é sempre vista separada da morte, a qual é concebida e vivenciada como
um fracasso. Com essa visão, há o esquecimento de que a partir do momento em
que se nasce, tem-se idade suficiente para morrer pois que a vida e a morte
chegam juntas ao mundo(8).
Esta idéia não é fácil de ser assimilada pela lógica natural, biológica do ser
vivo que nasce, cresce, torna-se adulto, reproduz-se, envelhece e morre. É esta
lógica que torna particularmente difícil por um lado, entender e aceitar o
"ver" a criança presa ao leito, cheia de tubos e demais aparatos da tecnologia
moderna, ao invés de estar a pular e a saltitar pelos parques e jardins.
Aceitar o morrer da criança torna-se difícil e mais difícil ainda é o ajudá-la
a enfrentar a morte, como se a ocultação e a interdição pudessem poupá-la do
sofrimento(13).
Apesar da morte estar presente na vida de cada ser humano, atualmente
representa a "conspiração do silêncio", o medo do sofrimento, da degeneração,
da solidão, do abandono. É a imagem do homem privado de sua morte, de sua
humanidade(14,15). Fala-se dela o menos possível usando-se de eufemismo ao
fazer-lhe alusões, no intuito de mantê-la distante do mundo dos vivos. É um
tema interditado, supostamente ignorado, negado por uma sociedade adoradora do
mito da juventude e que está orientada para o progresso, tendo no entanto,
significados diferentes de pessoa para pessoa(12,16,17). De uma forma geral,
faz-se sua representação através de figuras mórbidas, nebulosas, sombrias. O
silêncio, a negação, a dissimulação, envolvem-na como se fosse possível
eliminá-la da vida.
Ao situar-se dentro da questão, a autora faz uso da definição que coloca a
morte além da destruição. Esta é a que mais se aproxima de pensá-la, levando-
a a crer que a vida não finda com a morte do corpo, que existe algo além desta
passagem pela Terra, apesar desse "algo" não estar bem definido.
O silêncio relativo em torno da morte e do morrer, acrescenta a autora, levou-
a a não pensar sobre estas questões, até que viesse a formação profissional.
Esta trouxe para bem próximo o morrer e a morte, até então considerados
sinônimos. A proximidade, quase que diária, com eles incumbiu-se de estabelecer
a diferença entre ambos. Fez também com que passasse a questionar o porquê da
criança vir a morrer, contrariando a lei natural da vida, provavelmente devido
à recusa em aceitar essa realidade. Trouxe consigo, o medo. Não o medo da morte
em si. Mas, o medo do morrer.
Acredita-se que o vazio da morte seja menos sentido que o morrer. Essa talvez
seja mais amena, menos dolorida, especialmente quando se acredita que ela leva
ao encontro da paz tão almejada pelo homem durante sua vida. Já o ato de
morrer, este sim, é doloroso, às vezes cruel, pois envolve as perdas diárias da
caminhada da vida que, de um modo geral, levam ao sofrimento tanto físico
quanto emocional. O que se deseja é que ele venha sem dor, sem a tão temida dor
física, e que traga consigo a morte repentinamente. Assim, a tão temida morte
súbita, considerada amaldiçoada pelos antepassados se transforma, na
contemporaneidade, na morte desejada para si e para os que lhe são afetivamente
mais próximos.
A crítica dos estudiosos sobre a maneira de morrer, a desumanidade e a
crueldade da morte solitária nos hospitais tem crescido nos dez últimos anos.
Tem sido também causa de preocupação, o novo modelo de morte, a "morte
aceitável", na qual a morte se torna uma decisão voluntária dos médicos(as) em
cumplicidade com a família, que prevêem a hora da morte e estabelecem a
trajetória da agonia. Se o doente se conforma, tudo normal. Caso isso não
ocorra e o doente venha a morrer de modo diferente do previsto, surge a "morte
embaraçosa" ou seja, aquela que ao quebrar o equilíbrio normal do meio
hospitalar, cria um estado de crise para os profissionais e de desequilíbrio
para o hospital de um modo geral(25).
Ao se questionar as conseqüências e os valores ditados pela sociedade
industrial capitalista, é compreensível esse súbito interesse pela morte. Este,
sugere uma ruptura do silêncio imposto por essa mesma sociedade restituindo-se
a dignidade da morte que só será reconhecida, quando ela for considerada como
um acontecimento essencial, que não permite ser escamoteado.
Todas estas críticas procuram reconduzir a morte ao discurso de que fora
banida. Apesar deste silêncio, desta interdição, a morte não se deixa vencer
com facilidade(5,23). Rejeitada, expulsa da sociedade, negada, a morte volta
pela janela, sempre em sua ronda implacável. Volta tão depressa como
desapareceu. E assim, possa ser que ela volte a ser algo de que se fala,
achando-se o interdito também ameaçado.
O primeiro passo para a quebra do interdito, apesar da repressão, negação e
expulsão da morte e do morrer da consciência coletiva, é o fato dessas
temáticas voltarem a ser objeto de reflexões, análise e discussões entre os
estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento. Neste início de século com
o surgimento do "home care" talvez se possa num futuro muito próximo,
reconduzir a dignidade da morte, deixando ao doente a opção de morrer em casa
ou no hospital. Isso leva à crença de que existe a esperança de que a sociedade
atual reaprenda que a morte é parte essencial da vida e que a livre discussão
do processo do morrer e da perda, possam contribuir para uma melhoria da
qualidade de vida/morte.