As várias formas de amar e o nosso trabalho ou sobre amores decentes e o nosso
trabalho
AUTORES CONVIDADOS
As várias formas de amar e o nosso trabalho ou sobre amores decentes e o nosso
trabalho
The several ways of loving and our work
Las diversas formas de amar son nuestro trabajo
Flávia Regina Souza Ramos
Enfermeira
Correspondência
1 Das lembranças - ou da relação do escritor com seu tema
Lembro-me claramente quando, ainda aluna de graduação, ouvi um conceito de
saúde mental que dizia que esta significava a capacidade de amar e trabalhar.
Esta afirmação, não importa sua consistência conceitual e independente de
qualquer análise que se possa dela fazer, acompanhou minha vida. Ora como um
desígnio ("e viverás para amar e trabalhar"), ora como uma maldição
incontornável (do amor e do trabalho jamais se libertará e neles tampouco serás
livre"), ora como onipresente imagem no espelho ("sou ou não sou capaz de amar
e trabalhar?"),ora como alvo de deboche ("amar e trabalhar? ninguém merece!) ou
de indignação fundada nas mais diversas fontes de contestação. A verdade é que
o fantasma do amor e do trabalho sempre esteve lá, nos momentos em que suas
formas mais vivas podiam parecer mais presentes ou ausentes. Também é verdade
que, do alto da sabedoria dos meus 18 anos, o check list de minha 'inteireza'
mental, com estes dois itens, não me ameaçava. Cheguei a achar que se tinha
algo um pouco mais complicado era, sem dúvida, o trabalho (pelo menos no
sentido de que "podia dar trabalho"). Quanta ingenuidade! E de quanta
ingenuidade ainda somos capazes sobre nós mesmos e sobre este insofismável amor
e trabalho.
Se o inicio deste texto não esconde seu tom "pessoal", ainda insólito em meios
científicos, quero cedo culpar o tema e adiantar minha intenção de me valer
desta irreprimível forma de expressão para, a partir dela, voltar à forma
habitual (a forma séria da academia), com a qual tenho estudado este grande
tema de minha vida: o trabalho. Permitindo-me outra confissão posso dizer que
em tudo que lembro ter "produzido" ou mesmo quando pensava sobre "outras
coisas" - a educação, o poder, o sujeito, o sofrimento ou a ética - o trabalho
estava lá. Eu estava lá, me confrontando com aquela frase de meus 18 anos.
Nunca me ausentei deste oráculo e continuava à sua porta. Frente a ela, depois
de alguns anos, comecei a dizer que o motivo de estudar o trabalho era o fato
dele me incomodar, de "não gostar" de sua "cara". E também que, ao contrário do
que imaginei anteriormente, entre o amor e o trabalho, o primeiro era a parte
mais complicada da minha vida, o trabalho "não me assustava". E ainda, escrevi
nesta porta o lamento de um operário;
"Você me pergunta como vai minha vida: como sempre. Choro no momento devido a
uma dolorosa reflexão sobre mim mesmo. Permita-me esse movimento de vaidade
pueril; parece que não tenho vocação para ficar martelando o ferro"
a
.
Com o trabalho e com o amor venho encenando a vida até aqui. Com eles construí
minhas batalhas, histórias, sonhos e metáforas. Fiz romances, tragédias, dramas
e comédias, de tudo um pouco e quase tudo não muito bem. Nesta posição me
encontro ao apresentar este manuscrito.
Olhando para um lugar - ou para uma delimitação do objeto
O trabalho que aqui quero tratar é aquele se expõe em duas novas expressões,
originadas em discursos diferentes, embora bastante comunicáveis e solidários
entre si: a expressão trabalho decente, situada em discursos e projetos de
governo, e a expressão worklover, encontrada no espaço acadêmico e suas formas
de divulgação.
No primeiro caso se fala de um adjetivo ao trabalho; no segundo caso se fala de
sujeito, ou um sujeito na fusão de dois, o amante e o trabalhador.
O conceito de trabalho decente, proposto pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT) e incorporado pelas pautas políticas nacionais, traz a dimensão
da qualidade (não restrita a metas quantificaveis) ao tema da geração de
emprego e renda. O discurso político que sustenta o conceito o coloca como
estratégia para o desenvolvimento includente (nivelador das disparidades de
renda e riqueza) e ambientalmente sustentável, bem como para o resgate da
dívida social acumulada em décadas de crescimento perverso. O emprego decente é
razoavelmente remunerado (dentro das condições econômicas do país) e realizado
em condições satisfatórias de higiene, de saúde e de relações humanas(1). É
apresentado como sinônimo de trabalho produtivo e suficiente para todos, em que
direitos são protegidos, os ingressos e a proteção social é apropriada; é
exercido em condições de liberdade, equidade, seguridade e dignidade(2).
Assim, para além de se transformar numa gigantesca fábrica de empregoso
Brasilprecisa fomentar empregos e/ou autoempregos realizados em boas condições,
compatibilizando objetivos econômicos e sociais, não se limitando a políticas
sociais compensatórias (mesmo que ainda indispensáveis), mas promovendo o
acesso universal aos serviços sociais de base(3) e a proteção dos
trabalhadores.
Poderia falar de um conceito que sugere um alvo (conceito-meta) e que sinaliza
uma insuficiência (conceito indicial, que neste caso indica uma falta/
carecimento), desenhada em termos de uma qualidade desejada, a decência, frente
a sua falta, a indecência?
O que falta, de acordo com este discurso, é um marco social adequado para a
economia global; faltam mecanismos para considerar os impactos sociais das
políticas econômicas e financeiras; falta regulação sobre a economia global;
falta que a produção e outros elementos próprios da globalização sejam
coerentes com os direitos humanos, a igualdade, o emprego e a seguridade; falta
o diálogo social, nacional e internacional. Enfim, um déficit intolerável agora
indica que "a concretização dos direitos básicos dos trabalhadores deve ser o
piso social da economia global"(4).
Devemos ver os problemas e as aspirações através dos olhos das
pessoas. Suas prioridades são o emprego e renda decentes,
oportunidades para seus filhos, segurança no trabalho, na família e
na aposentadoria, respeito aos seus direitos e voz e participação nas
decisões que têm a ver com elas. [...] Todos devem ter a oportunidade
de acesso a um trabalho produtivo e digno. Essa é a pré-condição para
um desenvolvimento socialmente sustentável, o caminho em direção à
igualdade, uma fonte de esperança que é essencial para a paz(4:1 ).
O trabalho decente é um ideal cuja prática se impõe como fundamentalmente
necessária para a realização do potencial humano do trabalhador. Com efeito, o
trabalho não é somente um meio de sobrevivência. Trata-se de uma necessidade
básica do homem e da mulher, que carregam dentro de si o sentido de construção.
Construção, pelo trabalho, de uma vida melhor, para si, para seus dependentes,
para sua comunidade, para seu país, enfim.[...] a promoção do trabalho decente
pressupõe o apoio à geração de empregos formais, o oferecimento de proteção
social, o respeito aos direitos básicos do trabalhador-cidadão e o incentivo ao
fornecimento do diálogo entre empregados e empregadores(5:1 ).
O conceito de worklover se refere apessoa que ama o trabalho; que apesar de
dedicar tempo demais ao trabalho possui uma relação altamente prazerosa com o
mesmo. O conceito surgiu em oposição ao tão conhecido "workaholic", que não
apenas "trabalha demais', mas encontra no trabalho uma maneira de fugir da
vida, de não enfrentá-la. A diferença está entre um "viciado" ou "obcecado"
pelo trabalho, que acaba afetando de modo negativo todos os outros aspectos da
sua vida, e um "amante" do trabalho, que não foge da vida por causa disso ou
tampouco separa o prazer do trabalho.(6)
O conceito surge para marcar uma diferença, um desvio por outra linha (conceito
digressante) e também para propor uma ruptura com uma forma habitual de ver o
trabalhador na relação com seu trabalho, Isto é muito bom e necessário. É um
conceito que já tem como foco uma dimensão subjetiva e que traz um novo
elemento ao centro da análise, um ponto de quebra.
O que não muda é o reconhecimento da satisfação e realização no trabalho como
essencial para a saúde mental das pessoas. Também não muda a idéia de que
algumas pessoas terão maior chance de obterem isto de acordo com condições como
a automomia, a valorização social e o significado que o trabalhador possa
perceber como gerado por sua ação/produção(6) .Esta "estética do trabalho" foi
tratada na minha pesquisa de doutoramento como possibilidade do trabalhador se
manifestar como sujeito de sua obra, uma obra significativa em que se reconhece
como autor. Mas estas possibilidades não são igualmente "dadas" para todos, são
arduamente ou incidiosamente conquistadas em pequenas brechas de expressão do
sujeito no cotidiano do trabalho(7).
O que muda são algumas formas de pensar: - rotinas pesadas e extenuantes
necessariamente não significam sofrimento; - a idéia de uma "medida ou dose
certa" de trabalho deve ser relativizada. Mas ainda há pela frente outras
questões a aprofundar: - se o excesso (de horas, de absorção, de cargas e
responsabilidades) deve ser relativizado, também deveria ser a insuficiência
(de quem trabalha pouco, se dedica pouco, se concentra pouco)? Quem é (e quem
ainda poderá ser) um "apaixonado" pelo trabalho? Não se trata aqui de cobrar
uma resposta a qual um estudo não se propôs e não tem a responsabilidade de
responderb. Muito ao contrário, um bom estudo é aquele que levanta novas
perguntas, inspira novos olhares e buscas, que abre apara insatisfação e a
curiosidade.
Talvez não haja dúvida de que certos padrões de normatividade, usados para
legitimar a rótulo do discrepante e a reação social ao mesmo (inclusive em
termos de maior e menor chance de "se dar bem na vida") precisam ser quebrados.
O que precisa ser visto com clareza é o sentido da quebra, a favor de quem são
os efeitos desta quebra. Qual o ponto em torno do qual se dá a ruptura - a
felicidade e o prazer? Então, se o fato de ter prazer e se sentir feliz com seu
trabalho é o elemento que permite excluir um individuo da lista dos "anormais"
ou "trabalhador patológico", este mesmo elemento poderia ser usado para isentar
o "trabalhador preguiçoso" das penalidades que sobre ele recaem. Dito de outro
modo, seria (como num duplo-standart) a relativização de um padrão por um lado
e sua fixação por outro, de acordo com os efeitos de tal relativização. Ou o
empregador passaria a entender e valorizar o "bem-estar de seu "alegre e bem
relacionado empregado", mesmo quando ele deixa atrasar suas tarefas? É bem mais
fácil aceitar o quebra quando ela não ameaça os fins e produtos do trabalho.
Ao tornar público este novo encontro à porta do oráculo mostro o que estou
trazendo nas mãos, duas idéias tão diferentes em foco, fim e contexto teórico,
mas ambas profundamente ligadas ao nosso atual mundo do trabalho. Mas este não
é um texto sobre o mundo do trabalho, mas apenas um exercício imaginativo de
alguém que se põe à frente de uma pequena janela aberta para ele.
2 À frente da janela, que poderia ser uma tela - ou uma metodologia que não se
pretende sensata (portanto não seria metodologia?)
Cabe a ficção, enquanto expressão de uma experiência de linguagem, "dizer o que
não pode ser dito"(8:52). Nesta afirmação referida à literatura, Foucault a
considera para além de uma expressão estética, mas como terreno privilegiado em
que se efetua uma experiência extrema de pensamento, "que supõe a ousadia de
flutuar sobre o sentido, de acolher significados provisórios, de reinventar
palavras - em suma, de habitar um espaço sem se fixar num lugar"(8:53). A
radicalidade desta linguagem, no sentido foucaultiano, está na forma como ela
afronta a habitual evocação da realidade, para postular a irrealidade como sua
razão de ser, como um recuo diante da existência, que convoca o ausente e funda
um outro lugar para presentifica-lo fora dele mesmo e do mundo. Esta é a
inquietude, a instabilidade e a liberdade do discurso literário, o discurso da
insensatez(8).
Eu me nomeio, e é como se eu pronunciasse meu canto fúnebre: eu me separo de
mim mesmo, não sou mais a minha presença nem a minha realidade"(9:51)
Esta breve referência a Foucault ajuda a me posicionar à frente da janela e ao
descrever a imagem vista o fazer na tentativa, quase vã, de "reinstaurar o
diálogo entre razão e desrazão"(8:52), de buscar em imagens e falas produzidas
em outro espaço a expressão para um discurso que pensa o worklover e o trabalho
decente. O outro espaço é o cinema e a janela é, agora, uma tela.
Neste ponto preciso, novamente, confessar. Desde que estas duas expressões
entraram na minha jornada quase mística (não consegui evitar o tom de ironia,
já que me sinto tão "terrenamente" afundada neste caminho), tenho pensado muito
nelas e, sem o menor ímpeto produtivista - para dissecar conceitos, destacar
cenários ou fazer qualquer problematização acadêmica, me limito a viajar entre
imagens e palavras, relembrar cenas, reais ou não, e exercitar uma certa anti-
produção criativa. Este texto seria uma crônica, caso minha insensatez chegasse
a ponto de se fazer discurso livre. Ainda estou no meio do caminho.
E no meio do caminho tinha uma tela, tinha uma tela no meio do caminho.
Na tela passam filmes em trechos esparsos e desconexos, em fundos musicais
diferentes de seus originais. Quase sempre o tema é o amor e, é claro, seus
infinitos desdobramentos. De tantas passagens escolhi alguns tipos
cinematográficosde amor e amante, se é possível retê-los assim, como tipos. É
bom lembrar que nesta posição estou a milhares de quilômetros de uma crítica ou
análise de cinema, nem tampouco de uma descrição rigorosa, senão a de minha
própria imaginação nos limites da memória. Reconheço, a despretensão é poderosa
e, ao mesmo tempo, confortável: me permite o abuso, a imprecisão e, até, o
risco de insucesso.
Não foi de propósito, embora goste do resultado, que grandes produções e
romances holywoodianos não figuram entre os "meus tipos". Vamos à eles
3 A possibilidade da beleza no amor e no trabalho - "Sexo por compaixão"
c
E preciso amar direito, um amor de qualquer jeito
Ser amor a qualquer hora, ser amor de corpo inteiro
Amor de dentro pra fora, amor que eu desconheço
Quero um amor maior, amor maior que eu
Quero um amor maior, um amor maior que eu
Então seguirei meu coração até o fim pra saber se é amor[...]
Eu estarei mais feliz mesmo morrendo de dor
Jota Quest (Amor maior)
Dolores ama. Ama o marido, ama os vizinhos, ama a todos na Vila. Não há
sacrifícios, só entrega e prazer em amar. A rotina monótona em branco-e-preto
da cidadezinha sem graça, de calor e caminhos empoeirados parece não combinar
com a satisfação que ela teima em ver e ter. Quando seu amor a deixa (e eu já
imaginava uma "guinada feminista") Dolores quer seu amor de volta. E se seu
problema, sua culpa, é não ter defeito, não pecar, não ser como todos, então
ela quer pecar de verdade. Contra a descrença de seu padre confessor, que lhe
afirma sua incapacidade de transgredir, ela resolve cometer "o pior de todos os
pecados conjugais" - fazer sexo com outros homens. E a maior e mais inesperada
das transgressões começa a ocorrer: o sexo-pecado se reveste de amor e bondade;
a luxúria se torna caridade e opera milagres em tudo e em todos. A Vila
monótona muda colorida e cheia de vida. Pedaços de vida aparecem no meio das
caras e falas dos amantes de Dolores.
No início nada no cenário e nos personagens anunciava algo mais do que tristeza
e desolação, mas em meio as mais simples formas de pensar e "andar a vida"
aparece a beleza e a alegria que desconcertam. O pouco agora é muito, o que
poderia ser a satisfação de um desejo ridículo e banal, mostrado na crueza
simples do real, é transformador - um ato sexual qualquer, sem as lentes do
romance. Onde estão as lentes que enxergam tanto em tão pouco? Onde estavam as
cores? Onde está o amor? Dolores continua à espera do retorno de seu amor e,
enquanto isso, dá um pouco de amor. Ela ouve, consola, entende e dá o que
tem... aos solitários, aos frustrados, às prostitutas, aos conhecidos e
vizinhos.
Talvez nesta imagem de Dolores haja um pouco do amante que o conceito
digressante quer diferenciar. Contra nossas formas de ver o amor vão se
dissolvendo os rótulos de dominação, sofrimento e moralidade, exatamente no
mais improvável dos lugares. Não estamos vendo intelectuais ou artistas, em
grandes cidades onde tudo acontece, ensaiarem alternativas de amor embebidas em
discurso cult. Não chegamos a pressentir a rebeldia ou a transgressão descarada
e apoiada na crítica. Ao contrário, mais se vislumbra uma anti-rebeldia de
impacto e coragem assustadora, de uma "falta de crítica"(pelo menos na forma
como estamos acostumados a pensar a crítica) que abre para uma liberdade de
agir e julgar não possível dentro de nossos "jeitos de amar", cheios de senões,
de limites, de intoleráveis, de ponderáveis e de requisitos. Que amor é este,
assim livre? Que afronta aos nossos "modelitos", às nossas "saias justas".
Quando amar é ofertar e esta dádiva não diminui ou anula, Dolores lembra:
"Cuide bem do seu amor... seja quem for" (Herbert Viana). Mas muito mais que
isso, ela lembra da busca sempre possível de si mesma e de seus desejos. Lembra
de como amar e cuidar do outro se mistura com o amar e cuidar de si mesmo; de
como "afirmar-se" não significa igualar-se a uma certa emblemática de
afirmação, ligada ao poder, à independência e ao sucesso, também estreitamente
definida em referência a valores masculinos, ocidentais, individualistas e
liberais.
Enfim, também posso perguntar (mesmo que não com a mesma coragem de Dolores):
Que busca faço em meu trabalho? Que possibilidades de pensar este trabalho são
realmente minhas - feitas por mim ou colocadas a partir de mim e não de valores
e critérios (os senões e os apertos de um modelito de trabalho/amor) já postos?
Que conceito de liberdade guia minhas escolhas no trabalho? Talvez os olhos
amantes de Dolores vejam bem mais em meio à poeira... das ruas, da cidade, dos
cenários de nossas teorizações.
4 A paixão que possui e alimenta - "Ata-me"d
O meu amor tem um jeito manso que é só seu, e que me deixa louca
[...]
Que rouba meus sentidos, viola os meus ouvidos
E me crava os dente, Ai [...]
Desfruta do meu corpo como se meu corpo fosse sua casa [...]
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz.
Chico Buarque (O meu amor)
Do sanatório para a cidade grande e agitada. Da clausura dos anormais para o
mundo "normal" ou, ainda, para a conquista, à seu modo, de uma amor "normal" -
este é o caminho que leva Ricky à Marina. Marina atriz pornô, linda, sexy,
desejada e solitária. Ricky solitário, mas sem a "normal" perda da fantasia. E
na jornada da fantasia tudo é permitido para a conquista do amor, do "cálice
sagrado", da imagem romântica e viril da aventura masculina.
Nas aventuras épicas, também tão emblemáticas, o certo e o errado se confundem,
como se confundem amor e violência, prazer e tortura, doçura e terror nos olhos
destes personagens. Talvez esta aventura me traga a imprecisão desta idéia de
limite: do que se pode tolerar, do que se pode fazer, do até onde se pode ir...
para conquistar o amor (ou o trabalho) ou a fantasia.
Ricky se revela - sou só no mundo, nada tenho, nada perco... te rapto para que
me conheça melhor; e pergunta - quanto tempo levará para me amar? (penso em
quantas vezes ouvimos algo parecido pela vida afora e, mesmo sem ter as mãos
atadas e a boca amordaçada, nos mantemos mais um pouco ali, querendo acreditar
e duvidando). Marina responde - Quem pediu para me cuidar, me proteger?...
nunca vou te amar. Mas, parece dizer - quem sabe? E se envolve no conflito que
é muito mais seu do que de Ricky... o de ser amada.
De todas as cenas, que não poderia aqui descrever, uma me parece especial.
Ricky vai sair e quer saber se pode deixa-la solta, se ela fugirá. Ela
responde: - Não sei. É melhor me amarrar! Está colocada a simbologia do título:
Ata-me. A crença e a descrença do amor (e do amor ao trabalho?) A fuga da
paixão, desejada e também negada, inviabilizada pela impossibilidade da escolha
(ata-me!) A não escolha, a vulnerabilidade em relação à outro (ao amante
apaixonado, ao que me tira do limite e se torna doentio, ao seqüestrador, ao
trabalho) autoriza o desfrute ("do bem que ele me faz"). E como precisamos
desta ausência ou impossibilidade de consciência, razão e decisão, para tornar
mais tolerável esta imprecisão, esta falta de consistência, de limite (de pudor
e de decência?), que fragiliza tudo que é "princípio" e "conhecido". Estar à
mercê, muitas vezes, é a saída mais visível, mesmo que fugaz. O que me alimenta
e "me faz um bem" também me aprisiona e fere (me crava os dentes)... rouba meus
sentidos.
Mas Marina também terá que se revelar. Quando, já livre, confessa que ama
Ricky, sua irmã pergunta: acha normal? Amá-lo é normal? Talvez quem assiste
este filme não espere algo normal. Mas na vida "normal" se espera que sejamos
"normais" (com amores normais e trabalhos normais) mesmo que "de perto, ninguém
é normal". Mas não vemos muitas coisas de perto, uma distância segura quase
sempre é mantida. E nesta distância segura continuamos a amar e trabalhar.
Então, na ultima cena, os amantes cantam (já entregues à paixão "anormal" e
sobre ela construindo esteios de normalidade... de laços familiares, de
sustento do casal, de um lar): "...resistirei para seguir vivendo".
5 A fantasia do amor desconhecido que acontece -"O fabuloso destino de Amélie
Poulain"
e
O amor enigma, o amor que acontece nos arranjos de uma mente sonhadora, o amor
de alguém que está no centro de uma vida simples e fora do mundo real; mundo
morto fora da imaginação que cria a perfeição de instantes. Amélie vive assim,
dentro de si, fora do mundo, refugiada na fantasia solitária, mas cheia de vida
e significado; guardando lembranças e imagens, criando laços anônimos, cruzando
com outros destinos, que se mutam quase sem perceberem-se do outro.
Desconhecidos passantes são mistérios a entender e, algumas vezes, a tocar. As
mãos anônimas de Amélie podem tocar o destino do outro, sutilmente, armando
coincidências e estratagemas contra a futilidade e a pequenez humana. Enquanto
isso Amélie segue, privada de si mesma e do confronto com o seu destino; o
outro que lhe ocupa lhe exila de si... até o momento em que um amor misterioso
lhe chame ao risco. Um outro como ela, desde sempre conhecidos, em sonhos. A
mão de Amélie agora mexe em seu próprio destino, mas precisará acreditar que
pode suportar os "baques" da vida para sair do refúgio e se mostrar, refazendo
e montando os pedaços do mistério que os liga simbolicamente: o que nos separa
e nos liga - o enigma de nossos jogos, agora conhecidos, o enigma do que somos.
O amor que permanece alheio aos riscos do real; o amor que cria o real e faz
acontecer o mistério apenas pressentido. Como pode ser colorida e interessante
a fantasia que cria jogos e os vive. Como o confronto com o mundo, mediado pela
imaginação, pode ser transformado por mais beleza, por mais riso, por menos
miséria.
A fantasia criadora e transformadora parece ter me sido apresentada dentro de
cenários possíveis, dentro de situações e casos específicos; caracterizada em
seus estágios, em seus riscos, em suas conseqüências. Para cada abuso uma
seqüela, para cada fuga um controle ou represália; assim a fantasia é desejada
e nutrida, quando convêm para certos efeitos de criação e liberdade, no espaço
restrito de sua manifestação esperada. Mas a fantasia transgressora, que não
permite submeter-se ao que é e ao que deveria ser, foge aos objetivos
acadêmicos para entrar nas classificações psicológicas, no diagnóstico que
garante uma candidatura e um lugar na fila da rejeição. Nada mais impertinente,
no amor e no trabalho, que a overdose de fantasia; nada mais árido, insípido e
indigesto que sua falta absoluta. Que dificuldade acertar esta dose, esta
medida de nossa necessidade.
6 Que amor é esse e que trabalho é esse? - manifesto por um amor possível
Tenho um coração dividido entre a esperança e a razão...canta coração
que esta alma necessita de ilusão (Fagner - "Borbulhas")
Amar é tão humano. Trabalhar é tão humano. Não saber amar e não ter trabalho
também. Não saber trabalhar e não ter amor também. Nunca escapamos deste
sentido tão humano de todos os nossos problemas. Acho que nem queremos
escapar...é neste poço fundo que habitamos e nos tornamos humanos... para
seguir sendo.
Afinal, porque convidar estes amantes a circular em meio ao trabalho decente e
worklovers? O que eu tinha na cabeça para juntar todos a mim nesta aventura? -
Bem pouco. Mas queria me apossar, ou pedir emprestadas suas vozes e suas formas
de amar para tentar proclamar o já dito, de outro modo. De tanto bater em
nossos ouvidos certos sons se perdem, então precisamos de novas vozes e já nem
percebemos nosso própria fala...elas se desgastaram. Lembro-me quando Jorge
Luis Borges afirmou que certas palavras precisavam ser restauradas. Ele, o
grande poeta, conclamou por restauradores da palavra "poesia". Pois, me
desculpem a impertinência, mas o exemplo é luminar. Sinto minhas palavras (não
minhas, na verdade, mas todas que tenho empregado e ouço empregar) sobre
"trabalho" desgastadas pelo tempo, cobertas pela poeira dos usos e mal-usos.
Ah, Amélie, me ensina a recuperar a caixinha de relíquias que darão novo
sentido ao passado meio esquecido. E você, Dolores, me ajuda a revirar os
mortos em seus esquecimentos; levanta a cidade que pode limpar esta poeira
silenciosa. Trabalho, quem poderá amá-lo? Venha, Ricky, trazer mais desejo,
mais paixão, daquela que faz jogar-se para uma direção, que empurra para a
escolha, que faz sentir o medo e o gosto da liberdade.
Trabalho decente? Sim, trabalho de verdade. Que se alastre como as cores da
vila de Dolores. Que depois de experimentado por todos e por cada um se torne
impossível viver sem ele (como a vida que fez até a mais velha mulher sair do
leito da invalidez); que ao ser por todos conhecido também pode ser por todos
repartido, e defendido (com unhas e dentes e não o meu, mas o trabalho de
todos); não possuído mas vivido solidariamente, como o amor de Dolores.
E quem me dirá que todos poderão amar e trabalhar? Quem trará a mágica que me
fará ver worklovers como os mais comuns dos mortais? Quem fará este conceito
novo cair em desuso por já não causar estranheza ou dúvida? Quem me fará dizer
que esquisito é não amar o seu trabalho? Quem me fará duvidar da existência de
alguém que possa não se amar a cada dia. Eu quero um amor possível, maduro e
verdadeiro, que me conheça como ninguém, me respeite e me traga alegria. Quem
me fará dizer estas mesmas palavras para o trabalho - um trabalho que me
respeite e me traga alegria ? Pedir isso a um amor é romântico, mas ao
trabalho? Delírio ou Utopia? Pois, Amélie, arme o jogo que dará vida a esta
idéia; cole letra por letra a declaração que ninguém ousará questionar; as
letras que já estão bem dispostas em nossas intenções e propostas - dê-lhes
vida!
Eu queria presenciar a obra de restauração da decência do amor e do trabalho,
para que todos possam amar e se sentirem decentes. Eu queria presenciar a morte
do amor/trabalho bandido, escravo, violento e tirano.
Já estou longe dos meus 18 anos e continuo encontrando portas estreitas e
travadas. Já não posso pensar que tudo isto é fácil, mas ainda posso fazer
perguntas: Você que não é Dolores, Ricky, Marina ou Amélie - como está o seu
amor? Como está o seu trabalho? Você pode amá-lo?
Posso até dar risadas lembrando das infinitas conversas sobre companheiros e
amantes - Ele é decente e ainda amável e generoso com você? Mas o que mais
penso são nas inúmeras mulheres (me desculpem os homens) que todos os dias
fazem o trabalho da enfermagem neste país. Não estão indo para guerra cuidar de
soldados mortos e feridos. Mas muitas vezes vão feridas cuidar de outros tantos
feridos de morte. Penso que para algumas amar o trabalho pode ser um raro luxo
e que decência pode ser suportar a chatice dos turnos sem "descontar" naquele
estranho que lhe exige atenção. Isto é muito decente mesmo, como Dolores que vê
a dor do outro e este já não lhe é estranho. Como constroem proximidade em meio
a estranheza e a precariedade (Dolores novamente); como anonimamente mexem nos
destinos e nos sentidos de cada experiência (olha Amélie aí); e ainda são
capazes de cuidar com-paixão.
Então decentes trabalhadoras de um país que quer fazer decente o trabalho -
como está o seu amor? Como está você? Quando termina seu turno ou quando está
chegando para mais um dia de trabalho, o que pensa e sente? O que vê nos rostos
e nas mãos de suas colegas?
Talvez depois disso tudo vocês pensem que estes tipos de amantes não bastam,
precisamos mais; que o que sabemos sobre nosso trabalho ainda é pouco,
precisamos olhar melhor; que ter emprego é pouco, precisamos mais que isso; que
ganhar a vida decentemente é o mínimo, mas que para isso ainda falta muito
mais... gente querendo e gente fazendo por todos, além de nós. Mas ainda teimo
em pensar que também nós tenhamos um pouquinho a fazer nisso tudo.
Acho que voltamos todos aos antigos oráculos, só que não consultamos divindades
ou profetas, olhamos para nosso mundo e para nós mesmos. E continuamos querendo
amar e trabalhar. Mas queremos conjugar estes verbos com todos os adjetivos que
merecemos. Que tal começar: - nós amamos e trabalhamos alegremente,
pacificamente, confortavelmente, decentemente, dignamente, solidariamente,
livremente, saudavelmente...