Reabilitação Psicossocial: visão da equipe de Saúde Mental
PESQUISA
Reabilitação Psicossocial: visão da equipe de Saúde Mental
Psychosocial Rehabilitation: perceptions of the Mental Health staff
Reabilitación Psicosocial: visión del equipo de Salud Mental
Maria Salete Bessa JorgeI; Norma Faustino Rocha RandemarkII; Maria Veraci
Oliveira QueirozIII; Erasmo Miessa RuizIV
IEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente Titular da Universidade Estadual do
Ceará na Área de Saúde Mental, Fortaleza, CE. Pesquisadora 2c do CNPq. Líder do
grupo de Pesquisa - Saúde Mental, Família e Práticas de Saúde da UECE
IIEnfermeira e Psicóloga. Mestre em Saúde Pública (UFC). Professor Adjunto da
Universidade Estadual do Ceará na área de Saúde Mental. Departamento de ENF/
UECE, Fortaleza, CE
IIIDoutora em Enfermagem. Docente da Universidade Estadual do Ceará (UECE),
Fortaleza, CE. Vice-Coordenadora do Curso de Mestrado Acadêmico Cuidados
Clínicos e Coordenadora do Curso de Mestrado Profisssional em Saúde da Criança
e do Adolescente. Participante do grupo de Pesquisa Saúde Mental, Família e
Práticas de Saúde da UECE. veracioq@hotmail.com
IVPsicólogo. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Professor
Adjunto da Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE. poiesis@uol.com.br
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1. INTRODUÇÃO
A reabilitação psicossocial do portador de transtorno mental é um conceito
forjado no interior do movimento brasileiro de Reforma Psiquiátrica, tendo como
referência, propostas da Psiquiatria Democrática, responsável pelo
aprofundamento, na década de 1970, na Itália, da crítica aos asilos, dando vez
à promulgação da Lei nº 180/78. Liderada por Franco Basaglia, a Psiquiatria
Democrática defendia a ruptura com o paradigma clínico, com a relação linear
causa e efeito, na concepção da loucura, e com o rótulo de periculosidade do
doente mental, negando a instituição psiquiátrica e propondo uma alternativa
nova de tratamento(1).
O termo desinstitucionalização surgiu a partir das propostas de reformulação da
assistência psiquiátrica que emergiram no período pós-guerra, tanto na Europa
quanto nos Estados Unidos da América, em íntima em íntima relação com o
movimento preventivista de Gerald Caplan(2), objetivando desenvolver medidas
concretas de desospitalização.
A desospitalização, no Brasil representou, sobretudo, o fechamento dos
hospitais psiquiátricos, sem a devida criação de serviços que pudessem amparar
o doente mental em seu retorno à vida social. Como resultado, agravaram-se as
condições de marginalidade, caracterizando-se o abandono social para com uma
grande parcela dessa população(3).
Reflexões críticas e lutas contínuas para o alcance dos resultados na
assistência psiquiátrica, favoreceram o surgimento de serviços substitutivos, a
ampliação da equipe de saúde e a sua conseqüente revisão de papéis, além da
inclusão da família e comunidade na promoção da reabilitação psicossocial do
portador de transtorno psíquico.
O conceito de desinstitucionalização abrange não somente a desconstrução do
manicômio, mas também seus saberes e estratégias, mediante uma assistência
pautada na noção de existência-sofrimento do paciente e sua relação com o corpo
social. A complexidade desse conceito remete a um problema ético e de
cidadania, enquanto noção básica do processo de reabilitação psicossocial. A
ética surge como princípio norteador das ações de combate à exclusão, à
violência e ao estigma do doente mental. A cidadania, por sua vez, compreende o
processo que envolve a luta pelos direitos civis, políticos e sociais. É
interessante destacar que a separação dos dois conceitos é meramente formal. Na
verdade, é a ética que oferece sentido às ações sociais. Por sua vez, a própria
idéia de cidadania é balizada, eticamente, por aqueles que querem implementá-
la. A cidadania, não raro, é expressa como igualdade de oportunidades, em
situações básicas de desigualdade. Ainda, em outros contextos, o exercício de
cidadania significa a busca de realização concreta de dispositivos assegurados
pelo arcabouço jurídico. No caso de o Estado afirmar, por exemplo, que todos
devem ter acesso à educação e à saúde, de qualidade, tal fato implicaria
articular, politicamente, as ações dos grupos sociais excluídos, para obtenção
da aplicação da lei, literalmente(4).
O conceito de cidadania para os portadores de doença mental é, pois,
multifacetado. No que diz respeito à cidadania é possível comprovar desmedida
agressão à dignidade humana, a perda progressiva da auto-estima e da autonomia
individual e coletiva, trazendo como conseqüência, o alijamento dos direitos de
cidadania, por parte dos doentes mentais.
"O direito de cidadania do doente mental deve ser o direito de receber
assistência adequada, a garantia de participar da sociedade e de não ser
simplesmente jogado em depósitos, como ainda é uma realidade brasileira, na sua
forma mais brutal, nos grandes hospícios públicos ou, nas formas mais sutis, em
clínicas privadas e conveniadas"(5).
Ao contextualizar a questão da cidadania do doente mental, na realidade
brasileira, constata-se, de imediato, a existência de uma série de entraves e
dificuldades. No caso do doente mental, sua reabilitação psicossocial encontra
um número ainda maior de obstáculos, pelo fato de exigir também o avanço do
processo de cidadania da população brasileira, como um todo, o que requer uma
luta específica pela assunção e respeito aos seus direitos(6). Nesse sentido, o
caminhar juntos, favorece o processo.
Em tempos anteriores, a reabilitação era compreendida como o retorno a um
estado anterior ou à normalidade do convívio social ou de atividades
profissionais. Atualmente, considera-se reabilitação psicossocial como o
processo que facilita, ao usuário, com limitações, uma melhor reestruturação de
autonomia de suas funções, na comunidade. A proposta atual da Reforma
Psiquiátrica, no Brasil, tem como objetivo, a desinstitucionalização e
inclusão, integrando as pessoas com sofrimento psíquico nos diferentes espaços
da sociedade(7).
A desinstitucionalização não deve ser praticada apenas no interior do hospital
psiquiátrico, mas repropõe a necessidade de desinstitucionalizar, isto é,
reabilitar o contexto. Cuja principal função reabilitadora seria a restituição
da subjetividade do indivíduo na sua relação com as instituições sociais, ou
melhor, a possibilidade de recuperação da contratualidade(8).
A reabilitação psicossocial precisa contemplar três vértices da vida de
qualquer cidadão: casa, trabalho e lazer. Nesta perspectiva, a reabilitação
consiste em um conjunto de estratégias capazes de resgatar a singularidade, a
subjetividade e o respeito à pessoa com sofrimento psíquico, proporcionando-lhe
melhor qualidade de vida. Cabe à equipe de saúde mental compreender o indivíduo
em sua integralidade, para tanto, é necessário construir um novo paradigma de
saúde/doença mental que busque o desenvolvimento de uma relação saudável(9).
A reabilitação é uma concepção que deve estar presente, não somente no dia-a-
dia de todo profissional de saúde comprometido com sua profissão e solidário
com portador de sofrimento psíquico, mas também nas ações que caracterizam o
nosso sistema sócio-político e pelos diversos segmentos da sociedade, uma vez
que, nesse processo, somos todos os agentes sociais. Assim, a pesquisa visa
conhecer as ações dos profissionais da equipe de saúde acerca da reabilitação,
trazendo contribuições para a prática.
Para tanto, este estudo teve como objetivo apreender a percepção dos
profissionais de saúde mental acerca da reabilitação psicossocial para conhecer
como os profissionais de saúde mental a viabilizam na sua prática profissional
cotidiana.
2. METODOLOGIA
Este estudo insere-se nos pressupostos de análise qualitativa de pesquisa, pois
envolve percepções e experiências dos profissionais, portanto, não pode ser
quantificado, mas compreendido em algumas dimensões situadas no objeto de
estudo.
Participaram oito profissionais das diversas categorias, sendo uma psicóloga,
um psiquiatra, duas enfermeiros, duas terapeutas ocupacionais e uma assistente
social, pertencentes à equipe de saúde mental que atuam em um Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS), situado na cidade de Fortaleza/CE.
Os participantes foram identificados com letras alfabéticas tendo-se o cuidado
de manter o sigilo e anonimato das informações. Assim, ao abordar os
informantes procurou-se respeitar os preceitos éticos da pesquisa com seres
humanos com base na resolução nº 196/96 do CNS(10). Para a obtenção dos achados
foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, ocasiões em que foram
formuladas as seguintes questões norteadoras: O que é reabilitação psicossocial
para você? Quais as atividades que você realiza para promovê-la?
Para conhecer as atividades promotoras de reabilitação psicossocial exercidas
pelos participantes e a forma como elas são desenvolvidas, utilizamos a
observação livre nos locais de trabalho, com anotações no diário de campo.
As entrevistas foram gravadas e transcritas com a permissão dos entrevistados.
Os achados foram submetidos à análise de conteúdo de Bardin(11) e interpretados
à luz da literatura. Os passos da análise categorial temática compreenderam:
organização dos dados, leitura flutuante, leitura exaustiva, recortes das falas
a partir das unidades de registro (frase) e das unidades de contexto
(parágrafo), elaboração de subcategorias as quais foram reunidas por semelhança
formando as categorias e, finalmente, elaboramos os temas centrais que
descrevem as experiências dos sujeitos investigados: a) Paradigma tradicional
da saúde mental; b) Reabilitação psicossocial e c) incertezas e dúvidas no
exercício da prática em saúde mental
A partir da análise realizada, apresentamos os temas e as categorias que
retratam as respostas emitidas pelos entrevistados as quais são permeadas de
significados referentes ao pensar e fazer na saúde mental.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1 Paradigma tradicional da saúde mental
As concepções dos profissionais sobre o significado de reabilitação
psicossocial são construídas no curso da experiência cotidiana. O paradigma de
saúde mental adotado pelos profissionais investigados apresenta-se de forma
reducionista e evidencia a necessidade de se desenvolver melhor articulação
interdisciplinar a fim de que se possa contemplar ações capazes de viabilizar a
ampliação do poder de contratualidade social do portador, conforme se percebe
nas seguintes dicções:
A gente tem que trabalhar o doente para que ele volte a ser normal e
viver na sociedade (Entrev. H).
Na doença ele é incapaz para o trabalho e o convívio social. A saúde
mental é curar essa incapacidade (Entrev. C).
Historicamente, a exclusão social, o estigma e o confinamento do portador de
transtorno mental foram condições amplamente difundidas pelas instituições
manicomiais que, coniventes com o paradigma tradicional de doença mental,
contribuíram para a perda do valor social do doente, influenciando até hoje no
modo como a sociedade encara do portador de sofrimento psíquico.
O manicômio só foi percebido como necessário e terapêutico na medida em que
seja o resultado concreto de uma sociedade que naturaliza a exclusão, pois o
processo é retroalimentativo. A sociedade constitui o manicômio como um dos
seus agentes estruturadores da exclusão. Por sua vez, o manicômio e seu
conjunto de práticas cotidianas atua como um dos agentes concretos da exclusão.
A reforma, para disseminar suas idéias críticas, só pode vicejar na medida em
que encontra uma atmosfera crítica legitimadora de suas ações críticas. Ou
seja, não é ao acaso que a Reforma começa a ser implementada no Brasil pela
esquerda que se opunha à ditadura.
Observa-se também que a exclusão social do doente mental ocorre no seio da
família, devido à fragilidade dos laços afetivos, à vulnerabilidade em que se
encontra o doente e à sua limitada capacidade de aptidão para o trabalho,
opondo-se, desta forma, à demanda e aos valores do mundo capitalista, onde as
pessoas tendem a valer pela sua capacidade de gerar mais valia (no caso dos
trabalhadores) e de gestar e se apropriar dos excedentes (no caso dos
capitalistas). Isto é, a incapacidade para o trabalho é um dos elementos que
estrutura a inclusão já que no plano simbólico as pessoas parecem ser julgadas
moral e sanitariamente pela sua capacidade de produzir.
A família, por sua vez, demonstra resistência para aceitar o encargo de acolher
o membro familiar portador de transtorno mental por não dispor de recursos
financeiros, emocionais e físicos para lidar com o mesmo.
O novo paradigma de saúde mental exige a formação de redes de apoio social para
acolher a pessoa em sofrimento psíquico, ajudá-lo a expressar sua subjetividade
e educá-lo para o exercício da cidadania. Isto requer um investimento nos
aspectos sadios dos doentes visando a sua reinserção na sociedade e
proporcionando-lhes a dignidade e o respeito que lhes foram negados.
Portanto, é necessário que mudemos nossos conceitos acerca da loucura e
passemos a enxergar a existência destas pessoas a partir da ótica de sujeitos
que sofrem, devendo os profissionais estar, primeiramente, comprometidos com
uma proposta de prestação de assistência à saúde qualificada e ética que balize
o relacionamento interpessoal entre o profissional e o usuário dos serviços.
3.2 Reabilitação Psicossocial
Ao analisar o discurso dos entrevistados pudemos perceber que os conceitos
acerca de reabilitação social possuem características diversificadas, alguns
por serem atualizados, outros por revelarem restrição ou distorção na
compreensão do processo. Aqueles que denominamos como atualizados destacam-se
por perceber a reabilitação psicossocial como um processo de combate aos
mecanismos sócio - excludentes visando a reinserção do portador na vida
comunitária e familiar.
Um processo de inserção/reinserção do indivíduo no seu grupo familiar
e comunidade (...) contrário ao confinamento, às práticas meramente
ocupacionais, à exclusão social, à alienação e a desumanização da
assistência (Entrev. A).
Em contrapartida, foram apreendidos conceitos que consideramos incompletos ou,
até mesmo equivocados, como revela este discurso:
É a reinserção do psicopata na sociedade (Entrevistado B).
Tais conceitos apontam para a necessidade dos profissionais de saúde de
formularem o sentido abrangente e complexo da reabilitação, bem como, que se
acredite na viabilidade e eficácia desse processo ao invés de reduzi-la a mais
uma técnica a ser aplicada aos desvios mentais. Por outro lado, os sujeitos da
pesquisa também reconhecem que a reabilitação não é um processo que leva o
indivíduo a um estado de normalidade, mas que promove oportunidades para que os
indivíduos em sofrimento psíquico atinjam um nível desejável de funcionamento
na sociedade.
Nesta perspectiva, a reabilitação psicossocial se apresenta como um conjunto de
atividades capazes de oferecer condições amplas de recuperação dos indivíduos
através da utilização de recursos individuais, familiares e comunitários a fim
de neutralizar os efeitos iatrogênicos e cronificadores da doença e do
internamento. Reabilitar significa ajudar os portadores a sobrepujar suas
limitações e incapacidades e promover o autocuidado, a fim de elevar-lhes a
auto-estima, oportunizando-lhes a restituição da autonomia, identidade pessoal
e social.
Os profissionais ressaltam as diversas maneiras de pensar e agir em função da
reabilitação social dos pacientes portadores de saúde mental seja com práticas
individuais ou interdisciplinares incluindo a família. Ressaltam ainda, as
dificuldades enfrentadas no cotidiano, bem como os limites na apreensão do
conceito de reabilitação social.
Estratégias: A reabilitação psicossocial é também expressa como uma estratégia
e fornece base para discursos e ações da reforma psiquiátrica, podendo ser
desenvolvida em qualquer nível de atenção a saúde mental.
Outro fator ponderado diz respeito à família. Ao delegarmos o cuidado de um
doente mental à família, é importante que a mesma possua continência emocional,
seja orientada quanto a melhor forma de lidar com o membro portador, e que ela
tenha, seu dispor, serviços de atenção psicossocial com aparatos necessários
para o cuidado do seu familiar.
A gente faz o que é possível para ajudar as famílias, para tirar suas
dúvidas, orientando no enfrentamento dos problemas que surgem no
cuidar cotidiano do familiar portador de doença mental. Mas nós
também enfrentamos dificuldades devido à carência de recursos
institucionais para atender, adequadamente, à demanda da nossa
clientela (Entrev. A).
Quando a família não dispõe desses recursos, o doente mental toma-se alvo de
intemações sucessivas que culminam com a cronificação da doença. Esta assertiva
tem ressonância no relato de alguns entrevistados que afirmam ser a
reabilitação psicossocial:
Os profissionais devem buscar também acolher e apoiar as famílias na superação
das dificuldades enfrentadas, mostrando-lhes a importância do seu papel na
facilitação da inserção social de seu membro adoecido.
O acolhimento e apoio à família são dados fundamentais expressos pelos
participantes da pesquisa, pois a família desempenha papel fundamental na
viabilização da inserção social do portador. É importante lembrar que o
desempenho desse papel requer um mínimo de infraestrutura que envolva apoio
psicoemocional e institucional para lidar com o membro portador de modo a
favorecer a adesão ao tratamento e a readaptação do sistema familiar a
realidade imposta pela emergência da doença.
Sobre a habilitação de um doente mental, os entrevistados afirmam:
(...) reabilitar não significa habilitar de novo (Entrev. B).
(...) a reabilitação visa tomar o indivíduo habilitado (Entrev. E).
Devemos considerar que tomar o indivíduo habilitado é um conceito superficial
que nos remete a pensar como ajustar o indivíduo às exigências da sociedade.
A cidadania do cliente psiquiátrico não é a simples restituição de seus
direitos formais, mas a construção de seus direitos substanciais, e é dentro de
tal construção (afetiva, relacional, material, habitacional, produtiva) que se
encontra a única reabilitação possível(12). O resgate da cidadania dessas
pessoas deve ser compreendido como um compromisso firmado pelos atores do
processo saúde-doença, ou seja, pelos profissionais de saúde mental, usuários,
famílias dos usuários e a sociedade como um todo, e viabilizado através do
processo de reabilitação psicossocial.
A reabilitação psicossocial está ancorada na ética da solidariedade e
responsabilidade. Para concretizá-la é preciso que tenhamos coragem de inovar,
de buscar novas práticas fundamentadas em saberes técnico-científicos que
compõem o paradigma atual da saúde mental, ao invés de nos apoderarmos de
práticas antigas com uma roupagem nova(4).
Alguns entrevistados compreendem a socialização do doente mental como um
processo de inserção nas relações produtivas, sem esclarecer, contudo, o modo
como essa inserção pode ser viabilizada.
(...) devemos recolocar o paciente com transtorno mental nas relações
de troca afetivas e sociais de trabalho (Entrev. C).
Esta compreensão encontra respaldo nas afirmações de Saraceno(13). O autor
pondera que os doentes mentais possuem um nível de contratualidade tendendo à
zero, uma vez que produzem nada ou quase nada na sociedade e, em conseqüência
disto, são discriminados, marginalizados e excluídos.
Os profissionais devem ter em mente que as relações de troca não são efetivadas
apenas através da aquisição de habilidades capazes de proporcionar alguma fonte
de renda, como: artesanato, bijouterias, artes plásticas etc. Tais habilidades
constituem apenas uma das muitas contribuições ao processo, devendo ser somada
a outras iniciativas de resgate de cidadania e de reinserção social.
Não necessitamos de esquizofrênicos pintores, necessitamos de esquizofrênicos
cidadãos. Não necessitamos que façam cinzeiros, necessitamos que exerçam a
cidadania(14).
Para que haja inserção do individuo na sociedade os profissionais de saúde
devem ajudar o paciente a aumentar o seu poder de troca. O aumento do poder de
contratualidade deve permear tanto das atividades de lazer como de trabalho.Tal
compreensão é sinalizada por alguns dos entrevistados, como ilustra esta
dicção:
Deve-se tentar a reinserção das pessoas nas atividades cotidianas de
sua vida e não apenas deixá-las apto ao trabalho (Entrev. A).
Os sujeitos da pesquisa também demonstraram reconhecer a importância da
ressocialização para os portadores de transtorno mental. Compreendem que o
hospital psiquiátrico deve ter apenas a função de auxílio no tratamento, sendo
necessário preparar a comunidade para acolhê-los, uma vez que eles percebem a
doença como decorrente de uma disfunção da sociedade. Havendo, então, a
necessidade de tratamento dentro deste meio e não através da segregação e
isolamento do paciente.
Olhar multifacetado: De acordo com os entrevistados, o olhar do profissional em
relação ao portador de transtorno mental deve ser multifacetado, devendo deixar
de ser exclusivamente clínico, biológico, centrado apenas na patologia e
voltar-se para o indivíduo, encarando-o numa perspectiva holística, como uma
pessoa com sua história de vida, com uma cultura, e uma série de outras
características individuais que irão, definitivamente, influenciar no seu
tratamento.
A gente não tem que ver a doença, mas a pessoa doente, todo o seu
processo de vida e suas implicações com a doença (Entrev. B).
O tratamento holístico, caracterizado por um tratamento mais respeitoso,
possibilita um olhar mais humanitário sobre o portador sem distinção em relação
aqueles que não sofrem de um transtorno psíquico. Para que haja um olhar
holístico, todos os membros da equipe devem trabalhar de forma
interdisciplinar, pois, quando há interconexão entre vários saberes e práticas
é que se pode abranger toda a complexidade e singularidade do real.
No entendimento de Nicácio(15), a ação da equipe de saúde mental passou a ser
mais valorizada a partir do processo de desinstitucionalização, pois ela
proporcionou uma alteração no tratamento, que desde então, passou a tentar
transformar a relação da sociedade com o louco, compreendendo-o como um sujeito
de direitos, como alguém que tem o direito de ser como é, que tem o direito de
existir sem ser alvo de julgamento e gozações e, principalmente, como alguém
que tem direito a um tratamento de qualidade que lhe permita resgatar sua
identidade e o elo perdido com a sociedade.
O tratamento: Na ótica dos sujeitos da pesquisa, o tratamento deve apresentar
ações compartilhadas e inovadoras, embora um deles tenha confessado realizar
apenas consultas neurológicas para promover a reabilitação, utilizando corno
opção terapêutica apenas a abordagem psicofarmacológica, conforme o seguinte
depoimento:
É a reinserção do psicopata na sociedade e as atividades que eu
realizo para promover essa reabilitação são as consultas neurológicas
e a medicação (Entrev. D).
O tratamento deve buscar o resgate da autonomia do paciente através de
trabalhos voltados para as incapacidades, para as necessidades do paciente,
tendo em vista o desenvolvimento de condições cada vez melhores e que lhes
permita gerenciar sua vida e aumentar sua possibilidade de fazer escolhas.
Essas novas formas de tratamento é que os serviços substitutivos buscam
oferecer. Propõem a integração da família e dos profissionais, objetivando a
reabilitação do paciente e repudiando tratamentos preconceituosos e
estereotipados. Destacam-se, ainda, por oferecer suporte ao paciente não apenas
no tratamento farmacológico, mas também, disponibiliza tratamento
psicoterápico, oportunizando o usuário a expressar sua subjetividade e
encontrar apoio profissional na superação de suas dificuldades.
Percebemos, no entanto, que os sujeitos da pesquisa possuíam um bom
entendimento sobre a importância de sua ajuda nos aspectos biopsicossociais,
através da realização de trabalhos, tanto individuais quanto coletivos, visando
a promoção da saúde do portador em seu contexto social, e melhorando assim a
sua qualidade de vida.
3.3 Incertezas e dúvidas no exercício da prática em Saúde Mental
Os entrevistados destacam as dúvidas e as incertezas sobre a reabilitação do
doente mental frente as dificuldades enfrentadas. Percebemos através dos
depoimentos que, cada profissional elabora o conceito de reabilitação
psicossocial conforme o contexto em que está atuando, o embasamento científico
que ele possui, a influência histórica da exclusão-social a qual estão
vulneráveis e a motivação pessoal para transformar a realidade.
Sabemos que a reabilitação psicossocial é um processo e difícil de ser
implementado. Eu particularmente me sinto pouco motivada devido às dificuldades
que encontro para implementar um projeto terapêutico mais complexo. E difícil
também de avaliar, pois depois que ele sai da instituição a gente não tem como
acompanhar seu desenvolvimento (Entrev. C).
Acreditamos, com isto, que a reabilitação psicossocial deve priorizar também a
reabilitação dos profissionais que atuam na promoção da saúde mental, pois à
medida que eles trabalham com o olhar voltado para o sujeito em toda sua
complexidade e se familiarizam com o sofrimento e a fragilidade do ser humano,
não devem duvidar da reabilitação psicossocial que diariamente estão
implementando na prática.
A promoção da reabilitação é influenciada pela organização do pessoal dentro de
um serviço, pelo tempo em que sua prática é exercida, pela área de atuação do
profissional, pela hospitalidade que oferece e pela liberdade que
proporciona13. È um processo contínuo, requer tempo para que a sociedade
assimile esses novos conceitos e reflita sua mudança na prática, para então, se
propor aceitar o portador como sujeito no meio social. É imprescindível a
utilização de estratégias globais envolvendo os usuários, os familiares, o
poder público e os mais diversos segmentos da sociedade civil, mediante as
quais cada um pode fazer sua parte.
Resgate do elo perdido: Ajudar a pessoa com sofrimento psíquico a resgatar o
elo perdido com a vida, além de ser uma atitude ética, significa uma
demonstração de valorização do ser humano e respeito a sua história de vida,
repleta de experiências e construções.
Para o sujeitos pesquisados, o resgate do elo perdido requer ações que envolvam
profissionais, paciente e sociedade. Eles também compreendem que a família
necessita de atenção especial por parte dos profissionais que cuidam do
usuário, quer no esclarecimento de dúvidas, quer na obtenção de apoio, pois
esta representa o primeiro elo a ser resgatado na intenção de inserir portador
de doença mental em seu meio social. No entanto, eles enfatizam que a noção de
resgate familiar deve ser extensiva a toda sociedade. É fundamental para a
pessoa com sofrimento psíquico, ser aceita em seu meio social mediante extinção
do estigma, garantia de seus direitos e das possibilidades de criação de novos
vínculos sociais.
Acho que para resgatar o elo perdido deve ter um esforço de todas a
equipe que trabalha com o portador, maior tolerância por parte das
famílias e da sociedade como um todo (Entrev. E).
Com toda esta rede servindo de suporte, o resgate seria da vida, do valor
social do ser humano. Acreditamos que este nível de reabilitação poderá ser
alcançado se as ações de saúde priorizarem o desenvolvimento de habilidades e
competências do portador, considerando sua singularidade, bem como, se for
estimulada sua emancipação, ainda que respeitando suas limitações, com o
intuito de promover a sua capacidade de enfrentamento pessoal e social frente
às situações vivenciadas.
Quando respeitamos a diferença, quando não cerceamos a liberdade do outro, no
que diz respeito à construção de sua subjetividade e de sua experiência de
vida. Embora que, para a maioria das pessoas, isso não represente. a
normalidade, estamos contribuindo para o crescimento do portador de transtorno
mental e também como o nosso próprio crescimento.
Resgate de auto-estima: Sabemos que com o passar do tempo, o portador acaba
introjetando o sentimento de inutilidade que a sociedade lhe confere, quer
pelas desabilidades apresentadas ou por estar alijado dos modos de produção
capitalista, com graves reflexos sobre sua auto-estima. Tais condições são
apontadas pelos entrevistados:
O doente mental sofre mais pela desvalorização como pessoa do que pela doença
em si. Ele é normalmente visto como um incapaz. Há quem, inclusive, confunda a
doença mental com retardo mental. Esta visão contribui para o sentimento de
incapacidade e atitudes de dependência. Isso contribui para o rebaixamento da
auto-estima do portador.
O rebaixamento da auto-estima resulta em falta de motivação e retraimento
social, afetando inexoravelmente o seu processo de reabilitação. Por esta
razão, a sociedade precisa lançar um olhar afetivo sobre o portador de
sofrimento psíquico, contribuindo desta forma para influenciar de maneira
positiva o modo como esta pessoa se percebe.
Para os informantes, os grupos terapêuticos facilitam o exercício de trocas
entre os participantes, permitem que haja verbalização de seu sofrimento e
superação de seus medos. Esse encontro de pessoas que sofrem problemas
semelhantes possibilita a identificação com o outroe o estabelecimento de
vínculos, o que pode ocorrer também no seu meio familiar na medida que os
membros apóiam o portador, levando-o a participar efetivamente do processo de
reinserção social.
As terapias individuais criam também um espaço de acolhimento e troca para o
cliente, fazendo com que possam expressar seus conflitos internos, aprendendo a
lidar com eles e construir suas próprias críticas e percepções em relação ao
grupo social do qual fazem parte (Entrev. B).
Os grupos terapêuticos são muito importantes porque permitem que as pessoas se
conheçam e compartilhem seus problemas suas dificuldades. Eles percebem que não
são os únicos que sofrem e aprendem com a troca de experiências.
Visita domiciliar: Esta atividade é destacada em sua importância para a
promoção da reabilitação psicossocial, uma vez que através dela se pode
observar o relacionamento familiar, identificando os membros que apóiam o
portador na conquista por novas habilidades e aqueles que dificultam esse
processo. Com isso, o profissional contribui para que a família alcance um
maior nível de desenvolvimento.
A gente só tem idéia da dinâmica de vida familiar do paciente e sua
influência no processo saúde e doença quando se tem um contato mais
íntimo com as famílias. Na visita domiciliar a gente aprende muito,
percebe e compreende melhor o paciente, isso é fundamental para o
planejamento da assistência ao paciente (Entrev. F).
A psicose, assim como a reabilitação é um processo em contínua evolução, isso
implica que cuidar de uma pessoa psicótica é também, iniciar um processo com
ela para o qual não se tem um fim definido, exigindo para isto uma diversidade
de opções terapêuticas(16).
Reabilitação, tomada desta maneira, consiste em oferecer todas as
possibilidades de tratamento que estejam disponíveis. Chega-se onde o paciente
quer chegar e não onde a equipe de cuidados previamente estabelece(13).
Compreendemos que há necessidade de implementar atitudes coerentes com as
necessidades do paciente, mediante um planejamento participativo integrando a
equipe multiprofissional, a família e o próprio paciente não deve mais ser
excluído do processo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para os entrevistados, a reabilitação psicossocial é um conceito novo, uma
estratégia inédita, uma iniciativa que, como muitas outras, tomou impulso e,
paulatinamente, vem se tomando fragilizada diante das dificuldades que
enfrenta.
Com relação ao seu significado, uma reflexão mais profunda dos conceitos
emitidos pelos informantes, revelou que são reducionistas. Daí a necessidade de
interdisciplinaridade, no intuito de articular práticas e saberes diferentes e
promover uma assistência holística ao cliente. É de fundamental importância que
os profissionais disponham de educação continuada, o que permite a auto-
realização tanto pessoal quanto profissional.
O conceito de reabilitação psicossocial apreendido neste estudo, passa por
diferentes esferas que foram agrupadas em categorias. A princípio, os
profissionais vêem a necessidade de superar o paradigma tradicional,
privilegiando uma abordagem que permita ao portador transformar o episódio de
adoecer em uma experiência construtiva. Assim, a reabilitação psicossocial é
percebida, prioritariamente, como a socialização dos pacientes. Para tanto,
afirmam a necessidade de se desenvolver um olhar multifacetado, no sentido de
promover a utilização de recursos terapêuticos disponíveis.
Conhecer e refletir o processo de reabilitação psicossocial do portador de
transtorno mental são contribuições, ainda que pequenas, de importância vital
para a sua promoção no fazer cotidiano dos profissionais envolvidos com a
reforma psiquiátrica. Sabemos que muito tem a ser feito para superar as
barreiras políticas, institucionais e de compromisso ainda existente na cultura
de grande parte de profissionais no sentido de tomar efetiva reinserção social
do portador de sofrimento psíquico.