Autonomia na unidade de terapia intensiva: comecemos por cuidar de nós
INTRODUÇÃO
Quem somos nós, enfermeiras, profissionais de saúde, neste momento da história?
(1) Essa pergunta é inspirada, principalmente, na releitura de Foucault do
texto kantiano que aborda a autonomia. E, a partir dessa pergunta, o presente
artigo desencadeia uma análise que, entre outros aspectos, sinaliza a
contradição entre uma formação que busca, essencialmente, a competência técnica
das enfermeiras, que as prepare para atuar junto aos clientes, e a constatação
da não-competência política das enfermeiras, concretizada no processo de
acomodação em muitas situações práticas, das quais a enfermeira participa, em
que o sujeito enfermeira se vê desrespeitado na sua autonomia e permite
desrespeitar-se, por diferentes formas. Ainda, argumenta em favor da
necessidade das enfermeiras transformarem suas práticas em correspondentes a
uma vontade, racionalmente considerada como boa em si mesma. Portanto, uma
vontade boa por si própria, que não decorreria da vontade de outrem e que
ultrapassaria a lógica das normas explícitas e implícitas, dos diferentes
códigos, das determinações prescritivas e das ordens inquestionáveis(1).
Por sua vez, reportando-nos, diretamente, às argumentações de Foucault ao texto
kantiano, encontramos o pressuposto de que para o sujeito sair da minoridade e
alcançar a maturidade são exigidas a coragem e a decisão em promover um
trabalho sobre si mesmo: uma atitude. A atitude nova a ser tomada é aquela
pertinente à própria atualidade, e a decisão mais relevante na atualidade
refere-se ao estilo de vida de cada um, ao modo pelo qual nos tornamos
artífices de nosso próprio ethos. No entanto, essa releitura do texto kantiano
por Foucault implica, em primeiro lugar, o abandono das condições
transcendentais, para pensá-las como históricas e contingentes. Ou seja, o
conhecimento e a ação encontram suas condições de desenvolvimento dentro de
certas epistémes e de certos espaços de saber e poder. Em segundo lugar, ser
artífice do próprio ethos significa abandonar os fundamentos para substituí-los
pela experiência, já que nenhuma orientação normativa ou essencializada do
sujeito sustenta o ethos, a não ser seu próprio acontecimento histórico. Assim,
a busca da autonomia e liberdade não se realiza mais num movimento de
verticalidade, de busca do eu profundo, da superação da ambivalência em busca
do eu verdadeiro. O sujeito, nesse modelo, não seria nem livre nem emancipado,
mas submetido a um processo de disciplinamento social, uniformizado pelo
constrangimento. O cuidado de si e a criação de um estilo de vida dissolvem os
determinismos e abrem um espaço de possibilidade adequado às novas exigências
da pluralidade, pois podemos constituirmo-nos como sujeitos em função da
multiplicidade de experiências(2).
Assim, Foucault insere a prerrogativa de que é o cuidado de si o que tem de
entrar primeiro na pauta da discussão, antes mesmo de pensarmos em cuidar dos
outros. Um cuidado de si que deve, por ele mesmo e a título de consequência,
produzir, induzir as condutas pelas quais poderemos efetivamente passar a
cuidar dos outros. Logo, balizadas na expressão comecemos por cuidar de nós,
alavancamos, neste artigo, uma analítica foucaultiana com aproximações no
referencial teórico pós-estruturalista, buscando explorar a questão da
autonomia como uma das tensões no fazer/saber enfermagem que pode ser
discursivamente articulada à bioética.
MÉTODO
O estudo qualitativo utilizou fontes documentais e de entrevistas com
enfermeiros/as intensivistas. O corpus documental foi composto por artigos
publicados pela enfermagem brasileira, no período de 1984 a 2007, pois um
estudo(4) aponta 1984 como o ano em que a Revista Brasileira de Enfermagem
(REBEn) publicou o primeiro artigo que contemplou a temática bioética.
Incluímos, como artigos a serem investigados, os publicados nos periódicos
nacionais de enfermagem que alcançaram, em qualquer ano entre 2000 e 2007, nota
B Internacional pelo sistema Qualis (Revista Latino-Americana de Enfermagem;
Revista Acta Paulista; Revista Texto & Contexto Enfermagem; Revista Escola
de Enfermagem USP). Além destas, inserimos a REBEn, por ela configurar-se em um
emblemático periódico para a Enfermagem brasileira, e a Revista O Mundo da
Saúde, cientes de que muitos/as enfermeiros/as publicam em periódicos
específicos de bioética. Delimitamos, nos respectivos periódicos, 113 artigos,
através de uma busca manual, minuciosa e mais abrangente, procurando temáticas
e assuntos que poderiam enriquecer a discussão acerca das questões da bioética
e da terapia intensiva. Assim, além de orientarmos a busca pelos descritores
bioética e UTI e enfermagem, ética e UTI, bioética e enfermagem, ampliamos,
pois apesar de artigos não referenciarem, explicitamente, o termo bioética, os
assuntos abordados reproduziam temas relacionados com a bioética. Em outros
momentos, achávamos temas articulados à ética de modo indiferenciado aos
articulados à bioética. Enfim, a partir dos 113 artigos, selecionamos 17
artigos que nos direcionaram para abordar a questão da autonomia do/
a enfermeiro/a no contexto da terapia intensiva.
Além da análise dos 17 artigos selecionados, entrevistamos 20 enfermeiros/as
inseridos/as no contexto da terapia intensiva, na denominada Região
Metropolitana de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, utilizando o
critério de saturação de dados. Após aprovação do projeto em Comitê de Ética
(Parecer n° 186/07/CEP/UFSC), os sujeitos foram convidados/as a participar do
estudo e manifestaram seu aceite por meio do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, conforme Resolução 196/96.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Possibilidade ética do sujeito
"Penso que há aí a possibilidade de elaborar uma história daquilo que fizemos e
que seja ao mesmo tempo uma análise daquilo que somos; uma análise teórica que
tenha um sentido político quero dizer, uma análise que tenha um sentido para o
que queremos aceitar, recusar, mudar de nós mesmos em nossa atualidade. Trata-
se, em suma, de partir em busca de uma outra filosofia crítica: uma filosofia
que não determina as condições e os limites de um conhecimento de objeto, mas
as condições e as possibilidades indefinidas de transformação do sujeito"(3).
Na diferenciação entre os termos moral e ética, nessa busca de construção de
novas formas de subjetividade, Foucault utiliza o termo moral como "valores e
regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de
aparelhos prescritivos diversos", e o termo ética como "elaboração do trabalho
ético que se efetua sobre si mesmo, não somente para tornar seu próprio
comportamento conforme uma regra dada, mas também para tentar se transformar a
si mesmo em sujeito moral de sua própria conduta"(5). Na direção desse
entendimento foucaultiano de ética, um dos artigos analisados considera que
falar da ética de obediência, da ética benthaniana, da ética utilitarista ou
até da ética cristã "presentes na enfermagem, assemelhar-se-ia a falar de uma
não-ética pela presença de relação de dependência a outrem, a alguém fora de
si, pela perda de autonomia do sujeito"(6).
Mesmo concordando com essa assertiva, tensionamos um pouco a expressão
assemelhar-se-ia a falar de uma não-ética. Quando Foucault trata da
possibilidade ética do sujeito, evoca de imediato a análise crítica da história
do que fizemos e do que somos para, a partir daí, sim, aceitar, recusar ou
mudarmos a nós mesmos em nossa atualidade. Ou seja, em Foucault, as identidades
se constituem e se desfazem na contingência, na precariedade, na determinação
histórica. Assim, o filósofo, ao descrever o sujeito em sua dimensão ética,
retoma a propósito desse sujeito o que havia enunciado quanto ao poder, ou
seja: da mesma forma como o poder não deveria ser pensado como lei, "mas como
estratégia, sendo a lei apenas uma possibilidade estratégica entre outras", "a
moral como obediência à Lei é apenas uma possibilidade ética entre outras;" por
sua vez, "o sujeito moral é apenas uma realização histórica do sujeito ético"
(3). A partir desse referente, poderíamos dizer que a ética da obediência, a
ética benthaniana, a ética utilitarista e a ética cristã, presentes na
enfermagem, constituem-se, ao seu modo e no seu tempo, em algumas das
possibilidades éticas do sujeito enfermeiro/a.
De outra maneira, distantes das constituições transcendentais, uma
possibilidade ética da enfermagem (como as identificadas acima) é prática de
si; como a ponta de lança de uma idéia de sujeito historicamente referenciável,
claro que, também, em composição com técnicas de dominação, também elas
historicamente datáveis. "De resto, o indivíduo-sujeito emerge tão-somente no
cruzamento entre uma técnica de dominação e uma técnica de si. Ele é a dobra
dos processos de subjetivação sobre os procedimentos de sujeição, [...] ao
sabor da história, que mais ou menos se recobrem"(3).
Nessa perspectiva, com relação à autonomia, dos múltiplos aspectos e questões
que poderiam emergir ao se fazer uma leitura crítica dos textos analisados e
das entrevistas com os/as enfermeiros/as, salientamos aqueles mais diretamente
ligados ao privilegiamento da moral como obediência à Lei; da conduta e da
moral sobre o conhecimento técnico; e da governabilidade de si no confronto com
a técnica. Assim sendo, dividimos a nossa análise da possibilidade ética do
sujeito enfermeira/o intensivista em três etapas. Etapas que não são
cronológicas ou sequenciais; na verdade são, ainda, concomitantes, algumas
vezes concorrentes, em muitos momentos, coligadas.
Possibilidade Ética I: a moral como obediência à Lei
Nas leituras e releituras dos artigos, encontramos um conjunto destes,
pertinentemente datados entre 1985 e 1995, que discutem tanto o Decreto Lei do
Exercício Profissional da Enfermagem, número 94.406 de 08.06.87, como os
Códigos de Ética de 1958, 1975 e de 1993. Assim, enfatizamos, aqui, algumas das
questões discutidas nesses artigos.
Uma primeira questão abordada é o estabelecimento, no Decreto Lei do Exercício
Profissional de Enfermagem, das competências privativas do enfermeiro,
considerando a consulta e prescrição da assistência de enfermagem e os cuidados
de enfermagem diretos a pacientes graves com risco de vida e os de maior
complexidade técnica e que exijam conhecimentos adequados e capacidade de tomar
decisões imediatas, inexistentes na legislação anterior(7). Atrelamos essa
questão com a fala abaixo:
Sou enfermeira de UTI desde 1985, ano em que os hospitais passaram a
contratar enfermeiras para este setor. Era uma enfermeira para toda a
UTI e a mesma representava todos os turnos. Depois passou a ter
enfermeiros em todos os turnos. Mais adiante, ficava uma enfermeira
para cada 10 pacientes. Hoje, há hospitais em Porto Alegre com uma
enfermeira para cada quatro a cinco leitos. Sei que, em São Paulo,
existem hospitais em que o dimensionamento é um enfermeiro para cada
leito ou, no máximo, dois leitos. (Sujeito 5)
Mesmo que a referida Lei se dirija para qualquer setor/unidade que possa
atender pacientes graves e com risco de vida, normalmente é na UTI que esses
sujeitos exigem dos profissionais maior habilidade com o arsenal tecnológico,
além de conhecimentos específicos e capacidade de tomar decisões imediatas. No
entanto, a fala acima não se reporta a alguma exigência da Lei do Exercício
Profissional, nem mesmo ao Regulamento Técnico para Funcionamento de Serviços
de Atenção ao Paciente Crítico e Potencialmente Crítico, conforme a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária. 'Aparentemente' descolada de qualquer
pressuposto legal, a fala 'apenas' refletiria uma mudança percebida na forma
das sociedades responderem a seus problemas.
Ainda com relação a essa primeira questão, referenciamos outro artigo que busca
problematizar algumas situações polêmicas e os vetos que incidiram sobre a
proposta original da Lei do Exercício Profissional. Um dos contrapontos é,
justamente, o das competências privativas do enfermeiro, asseverando que, mais
do que estratificar e hierarquizar a prática da enfermagem, essa Lei deveria
estabelecer parâmetros referenciais das competências, reafirmar o princípio da
democratização interna do trabalho para uma adequada assistência de enfermagem
e ter como preocupação central a garantia das condições externas e
determinantes do pleno exercício profissional. Quanto aos vetos, o artigo
analisa que eles mutilam os avanços significativos que teríamos na Lei, como
autonomia, mercado de trabalho, organização profissional, e exemplifica com a
justificativa oficial para vetar o artigo 10: é discutível a autonomia na
execução dos serviços e da assistência de enfermagem sem a supervisão médica
(8). O artigo expressa, claramente, a dificuldade gerada caso se adote uma
visão simplista quanto ao que importa para obtermos ou não mais autonomia.
O segundo viés para discussão, encontrado em um ensaio reflexivo, trata da
"evolução dos princípios morais adotados pela Enfermagem brasileira desde 1923
até os dias atuais". Para tanto, analisa os Códigos de Ética de 1958, 1975 e
1993, assinalando uma tendência metafísica, abstrata e espiritual dos dois
primeiros, e uma mudança no Código de 1993, o qual procura ver os valores de
forma histórica e baseados em uma visão de processo(9). Para justificar o
encontrado nos dois primeiros códigos, é argumentado que a ênfase dada pela
enfermagem à transmissão e inculcação dos valores morais em seus membros visava
criar certa homogeneização das atitudes que eles deveriam ter como seres
humanos e como profissionais. Sua analítica evidencia a noção de que "a
'natureza' já havia prestado o seu serviço ao munir as enfermeiras de
qualidades morais inatas, desenvolvidas através do estudo da religião". Ou
seja, é referendado que por meio da religião, naquele período histórico, obter-
se-ia uma "boa formação de caráter", através da formação da vontade, do
desenvolvimento de ideais dignos, da aquisição de hábitos corretos e do
controle das emoções, enfim, da aquisição da integridade moral. Inclusive,
mesmo que o excerto abaixo possa nos levar a outras análises produtivas,
queremos demarcar, agora, um possível modo de ser sujeito enfermeira em 1958,
atrelado à moral como obediência à Lei:
Visando não deixar qualquer ponto obscuro quanto aos limites e abrangências do
desempenho esperado da profissional, o Artigo Oitavo do Código de 1958
sentencia: 'o enfermeiro executa as prescrições médicas com inteligência e
lealdade [...]. Somente em situação de extrema urgência, aplica tratamentos
médicos sem prescrição, relatando-os ao médico responsável o mais breve
possível'. A relação de poder está estabelecida. Claro que ela não se configura
no fato da enfermeira poder ou não prescrever medicamentos, este é um limite
que serve apenas para demarcar espaços profissionais e competências, tão
valiosos e corriqueiros no campo científico a partir da modernidade. O ponto
crucial está na forma como esses limites são estabelecidos e como o seu
cumprimento se dá. Como podemos inferir da letra do código, não existe uma
demarcação de saberes entre enfermeiras e médicos, e sim a apresentação de um
saber, como único, privativo dos médicos e o cumprimento de tarefas, voltadas
para a objetivação desse saber, destinado às enfermeiras(9).
Um terceiro aspecto nos reporta aos deveres profissionais, inferidos, por
exemplo, pela linguagem utilizada nos códigos de ética. O mesmo artigo acima
pondera que o Código de 1993 substitui os verbos zelar e cuidar por orientar e
colaborar. Para ilustrar essa argumentação, cita o Artigo 31 do Capítulo III,
quando este determina que a enfermeira tem, como uma de suas funções, que
colaborar com a equipe de saúde na orientação do cliente ou responsável sobre
os riscos dos exames ou de outros procedimentos. Desse modo, em sua análise, a
enfermeira deixa de ser apenas uma cumpridora de tarefas e passa a ter uma
posição de igualdade com os outros componentes da equipe de saúde. Logo, o fato
de poder preparar o paciente sobre a qualidade do tratamento a que vai se
submeter pressupõe que ela esteja engajada e tão informada quanto os demais
profissionais, ou seja, que esteja colocada no mesmo nível deles(9).
Já o quarto aspecto de que vamos tratar é explorado por meio de outro artigo.
Este relembra a máxima de que conhecer os princípios normativos que orientam as
condutas dos indivíduos, como membros de uma determinada categoria
profissional, requer não perder de vista a sua relação com as condições em que
foram produzidos, ou seja, com os valores vigorantes na sociedade. A nossa
prática profissional é, pois, influenciada por fatores econômicos, políticos e
religiosos, entre outros; contudo, a maior influência que a estética
profissional recebe é da própria moral oficial. E, a incursão desses valores
gerais nos domínios da ética profissional faz-se de forma 'natural', através de
uma ação política sutil. Nesse sentido, o texto segue alegando que o termo
deontológico, usado como sinônimo de "ética profissional", surgiu para definir
um tipo de conhecimento que pretendia orientar os indivíduos a irem ao encontro
do prazer; etimologicamente, o termo vem do grego déon que quer dizer o
"obrigatório, o justo, o adequado" ou de déontos, também do grego, que
significa "necessidade". Logo, a praticidade que envolve os códigos de ética
profissional não os exime de um compromisso com os interesses da categoria e
com o projeto global da sociedade, fazendo com que eles movimentem-se a
depender das oscilações sociais e, desse modo, seguindo orientações teóricas
também diferentes. Se a sociedade é regida por uma orientação metafísica, os
códigos de ética profissional tendem a seguir princípios metafísicos; se ela
admite que o homem é um microcosmos capaz de construir, transformar e criar,
eles tendem a valorizar esses aspectos; se a sociedade segue uma orientação
individualista e egoísta, os códigos colocarão em prática esses valores.
Sinaliza, por fim, que os códigos de ética necessitam passar de meras regras de
orientação de mercado, para uma prática reflexiva e crítica que lhes daria o
status deontológico(10).
Articulando, agora, os quatro aspectos enfatizados, chegamos a uma síntese
provisória entre: uma Lei que, entre outros pressupostos, vem buscando
restringir o cuidado aos pacientes graves como privativo dos/as enfermeiros/as;
os princípios morais e de conduta que vem sendo alternados e alterados,
interferindo na elaboração dessa Lei; uma linguagem cambiável na elaboração dos
respectivos códigos de ética e, por último, já que, necessa-riamente, alguns
dos próprios sujeitos profissionais são os que formulam as regras de conduta,
uma manifestação de que a deontologia e os códigos de ética deveriam ser
olhados, por aqueles que o utilizam, de jeito menos estreito, objetivando, com
isso, melhorar o 'jogo' para todos. Portanto, eis os quatro aspectos
enfatizados por nós. Eis a possibilidade ética I: a moral como obediência à
Lei. Obediência, então, que não significa atributo em si ou algo dado e
definitivo, mas algo que interessa e faz sentido em um lugar e tempo, porque
remete tanto às exigências práticas quanto às respostas configuradas em termos
de Lei.
Uma moral como obediência à Lei, que veria apenas o lado dos que falam e
elaboram os textos prescritivos? Poder-se-ia supor que, por serem textos
prescritivos, eram e são recomendações vazias, uma espécie de código sem
conteúdo e sem aplicação real? Se assim fosse, esses textos prescritivos jamais
se inscreveriam realmente no comportamento e na experiência dos profissionais.
Paradoxalmente, a moral, como obediência à Lei, ora está centrada em um
problema de escolha do próprio grupo, ora como normativa externa aos interesses
da profissão. A Lei está em permanente construção, por pressupor uma relação.
Quando a Lei retorna e incide sobre o sujeito, ela já retorna de outro jeito,
sob efeito de um deslizamento produzido pela transformação do tempo e das
condições de sua instalação primeira. Não seria uma atualização, mas uma
reinstalação da Lei. O discurso não constitui um sujeito unilateralmente, mas
simultaneamente e, por isso, a mesma norma que aprisiona traz em si a
possibilidade de resistir a ela e transformá-la.
Desse modo, tanto os artigos como a fala nos levam a ressaltar o caráter
artificial, complexo e político de como se processam as mudanças nas práticas e
o modo com que estas implicam ou não argumentações para justificar as propostas
e eleições legais. Além disso, reafirmamos a disparidade entre as demandas e
respostas e a própria compreensão que os sujeitos profissionais terão disso.
Porém, isso não significa que possamos refutar um entrelaçamento entre as
demandas práticas e as transformações tecnológicas, o aparato normativo que
buscará sustentá-las e a forma como o sujeito se relacionará com uma e outra.
Por fim, para transpormos essa primeira etapa de possibilidade ética, lembramos
que a idéia de que a moral pode ser uma estrutura muito forte de existências
sem estar ligada, unicamente, a um sistema autoritário, nem jurídico em si, nem
a uma estrutura de disciplina, fascina Foucault(3). Essas considerações são
importantes para pensar o trabalho na enfermagem, pois ali onde parece nada
existir, além de regra e disciplina, é justamente onde pode estar o maior
potencial de resistência e recriação.
Possibilidade Ética II: o valor dado à conduta e ao conhecimento
Disposição e bom humor são ótimos aliados para tornar menos pesado o
dia-a-dia dentro de um ambiente com tanto sofrimento. Além disso,
respeito mútuo e trabalho em equipe tornam o trabalhar menos árduo.
Uma equipe competente envolve os aspectos anteriormente citados,
somados ao conhecimento técnico; e, quando no final do turno, você
passa o plantão com a sensação de ter concretizado todo o processo de
enfermagem e outros objetivos pontuados no início da jornada, com
qualidade e reconhecimento. Mas, a recompensa, também, se faz
presente na alta, principalmente quando se consegue uma interação/
afeto entre equipe/paciente/familiar. (Sujeito 9)
Logo que entrei na UTI, não tinha nada de prática com ventilação
mecânica; quando o paciente era intubado, eu precisava arrumar o
ventilador. Isso foi uma das causas por eu ter ido fazer
especialização em UTI; eu precisava saber para poder fazer
corretamente. (Sujeito 16)
As falas acima reforçam o valor dado ao conhecimento no contexto da UTI. No
entanto, elas não trasmitem um viés de que a conduta seja relegada em
detrimento do conhecimento considerado como competente. Na verdade, essas falas
mostram uma articulação possível entre constituir-se como sujeito de conduta na
UTI e, por isso, constituir-se como sujeito do conhecimento. Logo, nessa etapa,
centramos a análise no valor dado à conduta e/ou ao conhecimento; na próxima
etapa (Possibilidade Ética III: da governabilidade de si no confronto com a
técnica), processamos a questão da produção do conhecimento 'necessário' à
prática do cuidado do sujeito na UTI.
Encontramos artigos que reforçam a máxima constituir-se em sujeito de conduta
e, ao mesmo tempo, constituir-se como sujeito do conhecimento. Conhecimento que
é entendido como a busca da instrumentalização não só técnica, mas política que
pode levar a uma compreensão crescente do contexto em que se vive e de
possíveis intervenções a serem forjadas(11); sujeito de conduta que é
influenciado por suas vivências, valores éticos e pessoais e pela capacidade de
estabelecer um relacionamento terapêutico e consciente da complexidade que
envolve o ser humano(12). Detectamos, também, nas fontes documentais: lamento à
prioridade, dos/as enfermeiros/as intensivistas, às necessidades
psicobiológicas em detrimento das necessidades psicossociais e psicoespirituais
(12); aprovação do atrelamento da competência à detenção de conhecimentos
científicos para embasar as discussões e ações do fazer profissional(13);
preocupação com a dicotomia dimensão técnica/dimensão ética, no discurso e na
prática dos enfermeiros(14).
Detendo-nos no assunto da relação dicotômica dimensão técnica/dimensão ética, o
artigo(14) que a anuncia a exemplifica através de um fato detectado em sua
respectiva investigação, ou seja, conta que um paciente teve uma lipotímia e a
enfermeira saiu correndo para chamar o médico, deixando a auxiliar atendendo a
urgência, quando era da sua competência técnica desenvolvê-lo. Já, outro artigo
(15), de certo modo, 'amplia' essa discussão, ao analisar o par sujeito
técnico/sujeito ético no cotidiano das enfermeiras. Entre outros aspectos, os
autores reportam-se à situação do paciente que sofreu uma lipotímia momentânea
e a respectiva ação da enfermeira. No entanto, problematizam a concepção do
artigo anterior, pois naquele é referido que a postura adotada pela enfermeira
aponta para um padrão moral que valoriza o princípio de neutralidade, isso é,
de assumir uma atitude de omissão ou de afastamento do atendimento ao paciente,
explicada pelo sentimento do medo e da proteção de si mesma e/ou pelo fato de
não possuir a competência técnica que o momento requeria. Sendo assim, o artigo
que problematiza argumenta que seria um equívoco dizer que a enfermeira não
possuía uma referência moral no princípio da responsabilidade, tanto é que ela
procurou uma solução para o problema através da execução de uma ação que,
aparentemente, traria o resultado esperado: ela sai para chamar o médico. Logo,
na compreensão deste artigo(15), pode-se até expressar que faltou competência
técnica para a enfermeira, mas de modo algum faltou competência ética.
Prosseguem sua análise sinalizando que mesmo que o espetáculo oferecido pela
ação tenha sido racionalizado pelo espectador, no caso particular, as
auxiliares de enfermagem, como falta de conhecimento teórico, de habilidade
técnica ou falta de comprometimento ético da enfermeira para com o paciente e a
equipe, na verdade, o que faltou à enfermeira foi justamente a reflexão sobre a
sua própria ação. Terminam asseverando que nem sempre é uma tarefa fácil
encontrar respostas para o questionamento de como e por que isso acontece(15).
Por sua vez, outro artigo(16) evidencia o privilégio da competência técnica na
terapia intensiva. Nessa direção, o saber estabelece a hierarquia na UTI, onde
se dá mais crédito ao enfermeiro que detém o saber do que ao que, oficialmente,
é o chefe. Nesse contexto, o enfermeiro que detém o saber é respeitado e
procurado pelos antigos e pelos novos membros, que logo se dão conta de que é
por meio dele que poderão mais facilmente entrar para o mundo dos
intensivistas.
Conhecimento técnico e político versus conduta, dimensão técnica versus
dimensão ética, necessidades psicobiológicas versus necessidades psicossociais
e psicoespirituais, tensões que constituem, sim, uma subjetividade interessada.
Portanto, balizadas na assertiva, referida acima, de que encontrar respostas
para o questionamento de como e por que isso acontece nem sempre é uma tarefa
fácil(16), explicitamos que enfermeiras/os têm desenvolvido habilidades para
funcionar em diferentes ambientes, por vezes, nada 'regulados', nada
'perfeitos', utilizando modelos nada 'uniformes'. Inclusive, artigo(17) lembra
o cientista social Daniel Chambliss, para validar a noção de que os problemas
na enfermagem são estruturais e não intelectuais.
E, como a prerrogativa da autonomia, o cuidado de si, está na pauta da
discussão, lembremos o dito anteriormente, ou seja, para ser artífice do
próprio ethos, deve-se introduzir uma experiência, já sempre sustentada por seu
próprio acontecimento histórico. Assim, de certa maneira, na contramão de um
discurso de senso comum que veicularia a noção das/os enfermeiras/os
'simplesmente' priorizarem a conduta em detrimento do conhecimento técnico e
político, ou de sustentarem a dicotomia dimensão ética/dimensão técnica, ao
utilizarmos a expressão subjetividade interessada, reportamo-nos a um estudo
(18) para tentar ancorar nossas reflexões. Nesse estudo(18), primeiro, são
sinalizadas as condições da instituição hospitalar da segunda metade do século
XIX, onde a figura do médico já estava introjetada, aí ocupando um espaço
privilegiado como detentor de um saber científico, otimizado pelas invenções de
diversos aparelhos que auxiliam no diagnóstico e tratamento de doenças. Após
esse primeiro destaque, é analisado, então, o modo de introjeção da enfermagem
nesse contexto de possibilidade, ou seja, é avaliado que o fato da enfermeira
executar um papel determinado na instituição hospitalar daquela época
justificar-se-ia pelo ínfimo espaço para desenvolver qualquer saber, na medida
em que o cuidado de enfermagem não era a maior preocupação e sim a disciplina
daqueles que prestavam os cuidados. Assim, a disciplina tinha a função de
sustentar o próprio hospital como um espaço de cura. Nesse sentido, a autora
pensa que o fato da enfermeira estar vinculada ao trabalho médico permitiu que
esta "usufruísse seu prestígio, já que, naquela época, havia no hospital muitos
cuidadores que não tinham um reconhecimento profissional. Florence Nightingale,
preocupada em organizar uma profissão, vinculou-a a um saber que tinha status,
um saber próximo da ciência"(18).
Enfim, nessa perspectiva, pensamos que uma subordinação da enfermeira ao
médico, uma ênfase à disciplina em detrimento de um saber e todas as possíveis
tensões, inclusive já descritas anteriormente, facultaria, em determinado tempo
e contexto, realocá-la na ordem de uma subjetividade interessada, na ordem de
um cuidado de si. Tanto seria possível que o mesmo estudo(18) considera que os
desenvolvimentos profissionais posteriores da enfermagem, também, representados
pelo ingresso na Universidade e pela preocupação em construir um saber próprio,
fazem circular "outro discurso sobre a profissão, a saber, a enfermagem como
profissão autônoma e participante, em igualdade de condições com os demais
profissionais da saúde"(18).
E, mesmo que a enfermeira fale de uma UTI locada em um serviço público, que a
viabiliza expressar o que diz a seguir, ela não deixa de perpassar as
argumentações acima, isso é, a idéia de profissão autônoma e participante, em
igualdade de condições com os profissionais da saúde.
Atuo há muitos anos num hospital público onde temos estabilidade de
emprego e estamos categorizadas em nível hierárquico, do ponto de
vista salarial e locação, no mesmo nível dos demais profissionais de
nível superior, os técnicos científicos. Este pode ser um ponto de
tranquilidade em se falando de stress para o profissional em
comparação com os demais colegas das empresas privadas nos dias
atuais. Tomar atitudes, posicionamentos com maior liberdade e que
possamos ter mais autonomia e, claro, maior responsabilidade em um
grande número de situações. (Sujeito 1)
Dito isso, concentrar-nos-emos, agora, na ordem de outro discurso, não menos
introjetado na enfermagem, não menos importante: a questão da produção do
conhecimento 'necessário' à prática do cuidado do sujeito na UTI.
Possibilidade Ética III: da governabilidade de si no confronto com a técnica
Iniciamos esta etapa a partir de outro artigo(19), no mesmo ponto em que se
descrevia um modelo hospitalar, no qual os cuidados médicos eram os únicos
válidos por serem científicos, originando-se um distanciamento entre o nível
dos cuidados de enfermagem. Um local, onde os cuidados de enfermagem eram
percebidos como secundários, sem importância mais significativa ou valor
científico ou, mesmo, econômico. A assistência de enfermagem se resumia em dar
o remédio na hora certa, cuidar do asseio, dar alimentação, fazer companhia e
auxiliar o paciente na ocasião das necessidades e de um possível banho, limpar
o quarto, dar destino aos dejetos dos pacientes e cuidar dos mortos, além de
ser subsidiada pelo trabalho e pensamento médico. Mas, e atualmente? Para o/
a enfermeiro/a, responsável pela equipe de enfermagem e pelo cuidado, as
habilidades em realizar uma observação minuciosa passam a ser cada vez mais
necessárias, não apenas para simplesmente descrever os fatos ocorridos
fielmente ao médico, como era preconizado por Florence Nightingale. Tais
habilidades, associadas às demais habilidades técnicas e ao acervo de
conhecimento em saúde, constituem patrimônio técnico-científico atual da
enfermagem. Em seu agir, tem de observar e criticar a eficiência dos métodos e
técnicas que utiliza. Logo, lança mão de conhecimentos e procedimentos
teoricamente organizados, sistematizados e sempre reformulados para a melhor
ação(19).
Prosseguimos esta etapa apontando alguns enunciados extraídos dos artigos. Um
deles(11) assevera que a autodesvalorização de nosso trabalho leva-nos a
desconsiderar que se pode cuidar sem tratar, mas não se pode tratar sem cuidar.
Outro(13) conclui que a enfermagem está organizada como profissão
institucionalizada e reconhecida por lei, dona de seu saber e sua prática
definidos na teoria, mas ainda a sociedade a considera como cumpridora das
ordens médicas prescritas. Um terceiro(20) indaga por que os enfermeiros,
frequentemente, relegam o seu saber e fazer específico e privativo, cuja
aplicação provocaria ou aceleraria o desenvolvimento científico da profissão,
em detrimento de fazeres dependentes, os quais poderiam ser delegados a outros
profissionais da equipe de enfermagem ou sequer ser assumidos pela enfermagem.
O quarto artigo pesquisado(21), ao abordar enfermeiros assistenciais
responsáveis pelo cuidado de enfermagem a pacientes com necessidades de
assistência intensiva, semi-intensiva, cuidados intermediários e mínimos,
extrai uma divisão enfermeiro trabalho intelectual/técnico de enfermagem
trabalho manual, que acarreta conflitos internos, reflete-se negativamente na
assistência prestada ao paciente e interfere na autonomia do profissional
enfermeiro, uma vez que, frequentemente, o afasta de sua ação cuidadora direta,
minimizando o seu potencial de ação nesse processo. Por último, uma das
enfermeiras entrevistadas narra a sua história de prática na UTI:
Trabalhar em um CTI de um hospital no qual temos possibilidade de
gerir nosso próprio negócio e que o aumento efetivo de número de
profissionais ocorreu pela aproximação do cuidado ao paciente faz o
meu dia-a-dia como enfermeira intensivista gratificante. Quero dizer
com isto que, neste hospital, a enfermagem pode e deve fazer a sua
parte com competência e isto repercute tanto na qualidade da
assistência ao paciente, quanto na ampliação do nosso reconhecimento
nesta mesma instituição e na comunidade. (Sujeito 13)
A fala dessa enfermeira e os artigos são discursos que se articulam, sobrepõem-
se e, em determinados vieses, diferem-se. Na verdade, o dito dessa enfermeira
contemporiza os enunciados dos respectivos artigos. De certo modo, ela responde
à indagação: Quem somos nós, enfermeiras, profissionais de saúde, neste momento
da história?(1) Para tanto, ela informa de uma enfermeira intensivista que
necessitou ressignificar o cuidado de enfermagem em um ambiente permeado pela
tecnobiomedicina. Lá, na UTI, onde dar banho, fazer higiene oral, alimentar,
alternar decúbito, aplicar medicamentos, entre vários e vários outros cuidados
de enfermagem até mais complexos do que esses, assumem na contemporaneidade uma
dimensão nunca experimentada pela enfermagem. Ou seja, nem precisamos avançar
para cuidados mais complexos (como ventilação mecânica, balão intra-aórtico,
hemodiálise, entre inúmeros), fiquemos naqueles considerados, já lá no século
XIX, secundários e menos significativos e perguntemos: no contexto da terapia
intensiva, é possível ainda considerá-los menores do que o tratamento do
paciente? E não estamos nem abordando a questão do conhecimento científico e a
construção de toda uma expertise da enfermagem. Tratamos, especificamente, da
ordem mesma daquele cuidado insignificante, daquele que hoje interfere
diretamente, quando não realizado ou indevidamente operacionalizado, na
gravidade dos pacientes, nas complicações destes mesmos pacientes, no seu tempo
de internação na UTI e, até mesmo, na sua evolução para o óbito.
Além disso, a enfermeira fala em gerir nosso próprio negócio, e que o aumento
efetivo de profissionais deu-se pela aproximação desse tipo de profissional do
cuidado ao paciente. Ela nos fala, pois, de um privilégio político e social.
Mas, esse mesmo cuidado tem sido ressignificado, também, por que este interfere
diretamente no econômico. É ilusório dizermos hoje que cuidado não gera lucro
para a instituição hospitalar; aliás, se indevidamente administrado, gera um
grande prejuízo. Em suma, ela nos diz que devemos nos ocupar com nós mesmos de
outro modo. Mostrar-se, assim, como enfermeira seria assumir as práticas dos
cuidados e não delegar para os demais profissionais; paradoxalmente, quando
confiamos "o nosso negócio" aos demais, deixamos de nos mostrar (de cuidar de
nós) e passamos a fazer coisas dos outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quem seremos nós, enfermeiras/os, profissionais de saúde, no próximo momento da
história? Como cuidaremos de nós? Replicamos essa indagação, buscando reforçar
o caráter histórico e contingente das nossas ações. Desse modo, as ações
desenvolvidas em cada momento da nossa história encontraram suas condições de
possibilidade dentro de certas epistémes e de certos espaços de saber e poder.
Portanto, o próximo acontecimento histórico é muito mais da ordem da
experiência do que das condições transcendentais e dos fundamentos. Assim, é
preciso dizer que o cuidado de si deve tomar forma a partir de diferentes
combinações, mas sempre num pertencimento a um grupo. Lembremos, pois, "somente
no interior do grupo e na distinção do grupo, pode o cuidado de si ser
praticado"(3).
Nessa exata direção, desafiamos os possíveis leitores deste artigo a
experimentarem inverter a ordem das possibilidades éticas I, II e III. Mas,
antes mesmo de efetivar esse exercício, sinalizamos que não estamos negando o
caráter disciplinar da Lei, a ênfase dada à conduta em detrimento do
conhecimento, e, até mesmo, por que não pensar nisto também, um atrelamento
'privilegiado' e interessado do/a enfermeiro/a ao arsenal da tecnobiomedicina
no contexto da terapia intensiva; nem queremos "botar para baixo do tapete" a
noção do governo de si como capaz de induzir os sujeitos a cuidarem de si, a
fazerem suas escolhas e sobre o que pautarem os seus valores; por fim, de modo
algum pretendemos prescrever uma noção de autonomia 'ideal' da profissão.
Assim, ler essas possibilidades éticas na ordem inversa objetiva demonstrar
que, mais do que nunca, experimentamos um atual momento histórico, sob a
confluência dessas três possibilidades éticas.
Por sua vez, o nosso desafio, na escrita deste texto, consistiu em olhar sob
outro ângulo o dito nos escritos dos artigos, o expresso pelos/as enfermeiros/
as intensivistas, procurando efetivar a potencialidade autônoma de cada uma
dessas possibilidades éticas. Nesta direção, em primeiro, nós vimos o cuidado
de si manifestar-se, organizar-se e difundir-se em um grupo muito mais político
do que preocupado em conhecer a 'sua' identidade profissional, enfrentando,
sempre, a tarefa de construir alternativas mais satisfatórias para a sua
prática profissional. Por este outro ângulo, pudemos fazer uma narrativa, mesmo
que sempre parcial e provisória, de uma existência que foi muito mais modelada
por nós do que normalmente costumamos acreditar. Mas, enfatizamos, não se trata
de uma produção individual e alheia a qualquer vínculo com os outros; pelo
contrário, ao narrar nossa história, ingressamos em uma trama mais ampla que
nos contém e nos molda já não mais como atores principais do relato, sim como
expectadores, devendo incluir os outros em sua própria história, devendo ao
mesmo tempo viver e contar(21).