Pesquisa em enfermagem à luz da complexidade de Edgar Morin
Pesquisa em enfermagem à luz da complexidade de Edgar Morin
Investigación en enfermería a la luz de la complejidad de Edgar Morin
Research on nursing in light of Edgar Morin´s concept of complexity
Silvana Sidney Costa Santos
Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Professora da Faculdade de Enfermagem N.Sa.
das Graças (FENSG), Universidade de Pernambuco (UPE), Líder do Grupo
Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa sobre o Idoso - GIEPI (CNPq). E-mail:
silvanasidney@terra.com.br
1 Introdução
Considero ser o objeto da enfermagem o ser humano e seu objetivo prestar o
cuidar/cuidado a este ser humano, seja um indivíduo ou uma coletividade,
saudável ou doente, inserido em qualquer faixa etária do processo de nascer,
viver e morrer humano. Portanto faz-se desejável perceber a complexidade que
envolve os objetos de pesquisa da enfermagem e sua interação com outros seres
humanos, com outras disciplinas, com o meio ambiente, os quais requerem uma
forma de investigação aberta, contextualizada e que dê conta de abarcar a
realidade que se apresenta. Defendo que a Complexidade, segundo Edgar Morin,
pode ser uma possibilidade à pesquisa em enfermagem.
Edgar Morin é sociólogo, antropólogo, historiador e filósofo, desenvolveu
estudo universitário em direito e como autodidata realizou um estudo
transdiciplinar em diversas áreas. Edgar Morin é "mestre na arte de fazer
caminhos ao caminhar [...] é pensador da Complexidade, do imaginário, da
compreensão e de uma sociologia do cotidiano e do presente"1:13).
Pensador de uma cidadania terrestre que propõe uma ética de solidariedade,
Edgar Morin transita em diferentes contextos, sejam regionais ou mundiais, de
forma a contribuir para a construção da complexidade. Nas suas obras voltadas
ao ensino educativo Edgar Morin propõe-nos uma reforma do pensamento por meio
do ensino transdiciplinar, capaz de formar cidadãos planetários, solidários e
éticos, aptos a enfrentar os desafios dos tempos atuais.
Complexidade é o pensamento que se esforça para unir, operando diferenciações.
Complexussignifica o que é tecido junto, o que dá uma feição de tapeçaria. A
complexidade não recusa a clareza, a ordem, o determinismo, só os acha
insuficientes, sabendo que estes não podem programar a descoberta, o
conhecimento, nem a ação(2).
Esta reflexão originou-se da experiência da autora, ao utilizar tal referencial
teórico numa tese de doutoramento e teve por objetivo apresentar a
Complexidade, mostrando sua importância na pesquisa em enfermagem.
2 Princípios teóricos da Complexidade
A Complexidade é uma forma de compreender o mundo, tendo capacidade de integrar
no real as relações que sustentam a co-existência entre os seres no universo,
possibilitando o reconhecimento da ordem e da desordem; do uno e do diverso, da
estabilidade e da mudança, enfim: a complexidade comporta as ações, as
interações e as determinações que constituem o mundo dos fenômenos e,
principalmente, a noção de incerteza(3).
As obras de Morin são baseadas em querer unir o diverso, comportando a
assimilação e a reunião do que estava separado, disperso, de informações e
idéias compartimentadas(4). Para Morin
o meu sentido das verdades eram contrárias e minha recusa das
verdades isoladas suscitou os princípios de um pensamento complexo,
isto é, de um pensamento que relaciona o que, por origem diversas e
múltiplas, forma um tecido único e inseparável: complexus(3:257).
A Complexidade apresenta três princípios básicos, que são complementares e
interdependentes: o hologramático, o circuito recursivo e o dialógico(2-5).
O primeiro princípio, hologramático,evidencia que não apenas a parte está no
todo, como o todo está inscrito nas partes, não significando, todavia, que a
parte seja um reflexo puro e simples do todo, pois cada parte conserva sua
singularidade e sua individualidade, mas de algum modo contém o todo e nesse
momento é preciso colocar-se num caminhar de pensamento, o qual faz o ir e o
vir das partes ao todo e do todo às partes. Considere o holograma para melhor
entendimento deste princípio e a partir dele percebe-se que não se pode mais
considerar um sistema complexo segundo a alternativa do reducionismo, o qual
quer compreender o todo partindo somente das qualidades das partes, ou do
holismo, que não é menos simplificador e que negligencia as partes para
compreender o todo.
Um exemplo deste princípio diz respeito aos organismos biológicos, pois cada
uma das células do corpo humano, até a mais simples célula da epiderme, contém
a informação genética do ser global, mas não é em si o ser global.
O segundo princípio, o do circuito recursivo, representa um circuito gerador em
que os produtos e os efeitos são, eles mesmos, produtores e causadores daquilo
que os produz, igual a um tufão quando simultaneamente ele é produzido e
produtor do processo.
Um exemplo deste princípio relaciona-se à sociedade que é produzida pelas
interações entre seres humanos e estas interações produzem um todo organizador
que retroage sobre estes, para co-produzi-los como seres humanos: o que eles
poderiam ser, não seriam se não dispusessem da instrução, da linguagem e da
cultura. Sendo, o processo social um círculo produtivo no qual, os produtos são
necessários à produção daquilo que os produz. Outro exemplo, para o princípio
recursivo, diz respeito ao fenômeno biológico do ciclo da reprodução, no qual
os seres vivos são produzidos e eles mesmos são necessários para a continuação
do ciclo de reprodução, ou seja, a reprodução produz seres vivos que reproduzem
o ciclo da reprodução.
O terceiro princípio, o dialógico, permite assumir racionalmente a
inseparabilidade de noções contraditórias (como ordem, desordem e organização)
para conceber um mesmo fenômeno complexo, ou seja, ele une duas noções que
tendem a excluir-se, reciprocamente, mas são indissociáveis em uma mesma
realidade.
A dialógica permite assumir racionalmente a associação de ações contraditórias
para conceber um imenso fenômeno complexo. Com essa forma de pensar Morin teve
a idéia que ele chamou de unidualidade, quando afirma que o ser humano é um ser
unidual, totalmente biológico e totalmente cultural a um só tempo.
O modo complexo de pensar não tem somente a sua utilidade para os problemas
organizacionais, sociais e políticos; pois, o pensamento que afronta a
incerteza pode esclarecer as estratégias do nosso mundo incerto; o pensamento
que une pode esclarecer uma ética dareunião e da solidariedade; o pensamento da
Complexidade tem igualmente os seus prolongamentos existenciais que postulam a
compreensão entre os seres humanos(6).
Um modo de pensar capaz de unir e solidarizar conhecimentos separados está apto
a desdobrar-se em uma ética da união e da solidariedade entre humanos, pois um
pensamento hábil em não se fechar no local e no particular, mas de conceber os
conjuntos, estaria apto a favorecer o senso da responsabilidade e o da
cidadania. A reforma do pensamento teria, então, conseqüências existenciais,
éticas e cívicas.
As diversas complexidades que foram aqui descritas, como a desordem, a
contradição, a dificuldade da lógica, os problemas da organização, formam o
tecido da Complexidade(4). Complexus é o que está junto, é o tecido formado por
diferentes fios que se transformam numa só unidade, isto é, tudo se entrecruza,
tudo se entrelaça para formar a unidade da Complexidade; porém, a unidade do
complexus que foi formada não destrói a variedade e a diversidade das
Complexidades que o teceram.
4 Pesquisa em Enfermagem a partir da Complexidade
Considerando a complexidade que envolve os objetos de estudo da enfermagem,
torna-se desejável escolher um caminho metodológico mais apropriado a sua
apreensão, ou seja optar por um método que apresente maior possibilidade de
retratar esta realidade. E entendendo o método como caminho da investigação
acoplado a/e originário da teoria e não amarra do fazer científico, a
Complexidade, de Edgar Morin, quando utilizada como escolha teórica termina
sendo um guia para achar o caminho preterido.
O método de investigação do estudo, na Complexidade, surge dos pressupostos
teóricos, pois, como lembra Morin 5, "a teoria não é nada sem o método"(6:337),
ou seja, ambos são componentes indispensáveis da complexidade. Para esse autor,
a Complexidade não tem metodologia, mas pode ter o seu método, o que ele chama
de lembrete. E continuando o seu ponto de vista, acrescenta que o método da
Complexidade pede que pensemos nos conceitos sem dá-los por concluídos, para
quebrarmos as esferas fechadas, para restabelecermos as articulações entre o
que foi separado, para tentarmos compreender a multidimensionalidade, para
pensarmos na singularidade com a localidade, com a temporalidade, para nunca
esquecermos as totalidades integradoras.
Para Morin(7) a palavra método não significa metodologia, pois a metodologia é
um guia a priorique programa a investigação, ao passo que o método que se
liberta ao longo do caminhar do pesquisador, será, sempre um auxiliar da
estratégia, comportando, necessariamente, descobertas e inovações.
A finalidade do método, na complexidade, é ajudar o pesquisador a pensar por si
mesmo para responder ao desafio da complexidade do problema. O método que guia
o pesquisador para a elaboração da epistemologia complexa é precisamente aquele
que resulta da epistemologia complexa. Complementa Morin que
o método auto-produziu-se. A necessidade de fazer comunicar os
conhecimentos dispersos para desembocar num conhecimento do
conhecimento, a necessidade de superar alternativas e concepções
mutilantes ..., tudo isto contribuiu para a auto-elaboração de um
método visando o pensamento o menos mutilante possível e o mais
consciente das mutilações que opera inevitavelmente para dialogar com
o real(7:30).
Morin escolhe a caminhada ao caminho e nesta trajetória o método consiste na
descrição do caminho percorrido ao longo da caminhada empreendida e nesta
caminhada, torna-se interessante que o pesquisador faça um ir e vir incessante
entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e
o inseparável e para isso utiliza a lógica clássica e os princípios de
identidade, de não contradição, de dedução, de indução; procurando enxergaros
seus limites e algumas vezes procurando transgredi-los 1.
Não se trata de abandonar os princípios da ciência clássica _ ordem,
separalidade e lógica, mas de integrá-los num esquema que é ao mesmo tempo
"largo e rico"(8:205); não se trata também, de "opor um holismo global e vazio
a um reducionismo sistemático"(8:205), mas de ligar o concreto das partes à
totalidade, pois é preciso articular os princípios da ordem e da desordem, da
separação e da junção, da autonomia e da independência, que estão em dialógica,
ou seja, são complementares, concorrentes e antagônicos, no seio do universo.
É desejável que o pesquisador não esqueça que o pensamento complexo é
essencialmente o pensamento que trata com a incerteza e que é capaz de conceber
a organização. "É o pensamento capaz de reunir [...], de contextualizar, de
globalizar, mas ao mesmo tempo, capaz de reconhecer o singular, o individual, o
concreto"(8:207).
O paradigma da Complexidade proposto por Morin, termina por retratar um
conhecimento sobre condições possíveis, tornando-se, então, um conhecimento
relativamente imetódico ou construído a partir de uma pluralidade metodológica;
necessitando de uma composição transdisciplinar e/ou individualizada, se
individualizada sugere um movimento de maior personalização do trabalho
científico e do investigador.
Considerando que teoria e método se confundem e que ambos são componentes
indispensáveis do conhecimento complexo, acrescento as ponderações de Morin
quando aponta ser o método uma atividade pensante do sujeito e para o mesmo
autor, o método torna-se central quando
há reconhecimento e presença de um sujeito procurante, conhecente e
pensante; sabe-se que o conhecimento não é acumulação dos dados ou
informações, mas sua organização; a lógica perde seu valor perfeito e
absoluto; a sociedade e a cultura permitem duvidar da ciência em vez
de fundar o tabu da crença; sabe-se que a teoria é sempre aberta e
inacabada; sabe-se que a teoria necessita da crítica da teoria e a
teoria da crítica; há incerteza e tensão no conhecimento; o
conhecimento revela e faz renascer ignorâncias e interrogações(6:
337).
Morin direciona como fundamental na reforma do fazer científico torná-lo uma
atividade social e imaginal, considerando que todo ato de conhecimento funciona
como uma gestação coletiva. Morin reconhece o valor do método nas difíceis
veredas da pesquisa científica, sendo a Complexidade uma estratégia de
desintegração para a reconstrução, ela desmonta a totalidade, clássica e
monolítica, com a "preocupação teórica de estabelecer uma nova totalidade
aberta, circular, precária e em permanente intercâmbio com as suas partes"(1:
31). E para isso, Morin não vacila em situar a sua evolução no sentido da
exploração de um modelo teórico bem mais denso, no qual não só reina a ordem,
mas também e sobretudo a desordem.
Morin, em relação ao conhecimento complexo, diz que ele não tem término, e isto
não apenas porque ele é inacabado e inacabável, mas também porque ele chega por
si só ao desconhecido. "Atrás da complexidade, há o indizível e o inconcebível.
Sob os conceitos, há o mundo. Sob o mundo?"(3:260) Ou ainda, chegar ao fim não
significa ter concluído, mas ter caminhado.
5 Considerações finais
Acredito que a complexidade conduz a uma série de problemas fundamentais que
são os problemas relacionados ao destino humano na atualidade. E esse destino
humano depende da capacidade de todos os seres humanos compreenderem os
problemas fundamentais, procurando contextualizá-los, globalizá-los e integrá-
los, e depende também da capacidade de todos para enfrentar a incerteza,
procurando encontrar os meios que permitam aos seres humanos caminhar num
futuro incerto, não esquecendo de manter a coragem e a esperança em suas vidas.
Para construir as bases metodológicas favoráveis à pesquisa, em uma concepção
de conhecimento aberto, dinâmico e dentro dos pressupostos da Complexidade
torna-se possível adotar a idéia de que o pesquisador precisa desenvolver e
construir os métodos e caminhos mais adequados às explicações dos fenômenos que
ele busca revelar. Sem ignorar os princípios da lógica e objetividade da
ciência, mas não perdendo de vista a busca da articulação da teoria com a
realidade.
A utilização do método da Complexidade na investigação leva a considerar que a
complexidade "enfatiza o problema e não a solução"(8:23) e que tudo está em
movimento e este movimento se finda na ação reflexiva da inter-relação de todas
as coisas, num caminhar que, como diz Petraglia(9:16) "começa onde termina e
termina onde começa", porém modificado ou pelo menos sendo visto com outro(s)
olhar(es).