O trabalho das enfermeiras no SUS de Campinas: anos 70 e 80
PESQUISA
O trabalho das enfermeiras no SUS de Campinas: anos 70 e 80
The work of SUS (Unified Health System) nurses in Campinas: 1970s and 80s
El trabajo de las enfermeras en el SUS (Sistema Único de Salud) de Campinas:
años 70 y 80
Elisabet Pereira Lelo NascimentoI; Márcia Regina NozawaII
IEnfermeira. Especialista em Saúde Pública. Mestre em Enfermagem. Doutoranda em
Saúde Coletiva. Enfermeira da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas
IIEnfermeira. Especialista em Saúde Pública. Mestre em Enfermagem. Doutora em
Saúde Coletiva. Docente do Departamento de Enfermagem da Faculdade Ciências
Médicas da Universidade Estadual de Campinas
E-maildo autor:betlelo@uol.com.br
1. Introdução
Na década de 70 existia em nível nacional uma grande articulação de movimentos
populares e de algumas classes de trabalhadores. Em Campinas, esse movimento se
fez presente, trazendo reflexos na estruturação da assistência à saúde da
população. Dessa maneira, os Postos de Saúde se originam do movimento popular,
principalmente pelas comunidades eclesiais de base e determinado seguimento de
técnicos de saúde, parceiros de um movimento encampado pelo Departamento de
Medicina Preventiva da UNICAMP(1).
A partir de 1977(2), os departamentos de Medicina Preventiva de Campinas (PUCC
e UNICAMP), Niterói, Montes Claros e Londrina participavam desses movimentos
propondo modelos alternativos de atenção à saúde. Os programas de Medicina
Comunitária ligados a esses departamentos foram incorporados por alguns
municípios, tornando-se os projetos pilotos do que veio a constituir a Reforma
Sanitária, sendo que a soma dessas experiências, tornou-se conhecida como
Movimento Sanitário, responsável pelo surgimento do SUS.
Em 1978, este programa teve continuidade com um plano que permitiu caracterizar
a política de saúde do município através da democratização da atenção médica,
da extensão da cobertura, com instalação de redes básicas de atenção à saúde,
que previam a hierarquização dos níveis de atenção da medicina integral e
participação comunitária(3).
Em 1982, a SMS elabora um projeto denominado de Pró Assistência, que defendia a
integração de seus serviços com os dois hospitais universitários UNICAMP e PUCC
e com os serviços estaduais, buscando solucionar a racionalização da
assistência e implementar uma rede integrada e hierarquizada de atenção à
saúde. Embora a rede de serviços municipais de saúde houvesse ampliado
significativamente, não funcionava como porta de entrada do sistema, pois
atendia apenas 20% da população, necessitando, portanto, de alterações para se
tornar mais efetiva(4). Em nível nacional, ocorre paralelamente, o projeto
Ações Integradas de Saúde. Campinas foi pioneira à prática da integração e o
primeiro município a assinar o convênio AIS, com o nome de Pró Assistência I.
Em 1987, a prefeitura municipal assina o convênio Sistema Único e
Descentralizado de Saúde, com vistas à municipalização dos serviços de saúde
(5). A gestão de Secretaria Municipal de Saúde iniciada em 1989, propõe adotar
como prioridade a ampliação da rede de serviços, a reforma da gestão e do
modelo de prestação de serviços de saúde(6). A rede de serviços da SMS deveria
funcionar então, como porta de entrada do sistema de saúde, com grau de
resolução compatível com o modelo de atenção integral à saúde, sem render-se a
lógica dos prontos-atendimentos públicos e privados(7). Assim, o SUDS Campinas
considera que esse ano deveria ser o ano de recuperação, otimização, ampliação
e adequação técnica-assistencial do setor público no município.
O propósito dessa pesquisa é analisar os determinantes da inserção e as
práticas desenvolvidas pelas enfermeiras na rede básica de saúde da SMS de
Campinas, no período compreendido entre 1978 e 1989. Período delimitado de um
lado, pela contratação das três primeiras enfermeiras e de outro, pela
implantação do SUS em 1990, quando ocorreram relevantes transformações na
organização dos serviços de saúde de Campinas.
Trata-se de uma pesquisa de natureza histórica, que foi desenvolvida com
utilização de técnicas de obtenção primária e secundária de dados,
respectivamente, a utilização de entrevista oral com as enfermeiras e análise
documental. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa
da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. E os depoentes assinaram o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido
Para a realização desta pesquisa, procuramos nos afastar do paradigma
cartesiano da ciência positivista, que propõe desprezar todas as sensações e
impressões, desejos e afetos, tudo o que se apresenta como subjetivo(8).
Propomos dialogar com várias formas de conhecimento possíveis, entendendo o ser
humano na sua qualidade de ser histórico-social sujeito das transformações
sociais e políticas(9).
A compreensão de qualquer área do conhecimento se encontra estritamente
relacionada com suas origens, suas raízes, tornando-se necessário buscar na
história explicações para fatos que ocorreram na atualidade(10). Com o intuito
de darmos ênfase à produção dos nossos sujeitos e com o propósito de
preenchermos lacunas, devido à carência de documentação do período alvo de
estudo, optamos por trabalhar com História Oral, recurso possibilita construir
documentos a partir das entrevistas.
Assim, a história oral tem sido utilizada quando se tem a preocupação com o
registro, arquivo e análise da documentação colhida, inclusão de histórias e
versões não sabidas, silenciadas, esquecidas por diferentes motivos, e as
interpretações próprias, variadas e não oficiais, de acontecimentos que se
manifestam na sociedade contemporânea(11). Como pressuposto, o método escolhido
implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo
processo histórico não está acabado.
Para apropriação do conceito do trabalho da enfermagem enquanto uma prática
social e a organização tecnológica das práticas de enfermagem adotamos como
referencial teórico Almeida(12) que tem produzido diversos estudos nessa
perspectiva. Consideramos as práticas desenvolvidas pelas enfermeiras, além de
uma profissão, como trabalho. Compreendendo este trabalho como processo
dinâmico e contraditório, que se articula com outras atividades da saúde e da
sociedade.
Objetivamos analisar a inserção social e as práticas das enfermeiras, no
período compreendido entre 1978 e 1989, sistematizando informações documentais
e depoimentos das enfermeiras, relativas à inserção e articulação de suas
práticas na rede básica de saúde da SMS.
2 O cenário do estudo e o caminho percorrido
O município de Campinas localiza-se a oeste do Estado de São Paulo, situa-se a
100 Km da cidade de São Paulo e conta com 958.484 mil habitantes(13). É pólo de
uma região metropolitana formada por 22 cidades com cerca de 2,2 milhões de
habitantes. No setor saúde, segundo a divisão polítco-administrativa da
Secretaria de Estado da Saúde, Campinas integra junto com outros 38 municípios,
a Diretoria Regional XII, que totaliza 2 milhões de habitantes. No âmbito
municipal, de acordo com o Departamento de Gestão e Desenvolvimento
Organizacional, SUS está constituído por: 45 Unidades Básicas de Saúde (Centros
de Saúde); 14 Centros de Referência; três ambulatórios de Especialidades; dois
Hospitais Universitários; um Hospital Municipal; cinco Hospitais Privados,
Lucrativos e Filantrópicos (conveniados); uma Maternidade Filantrópica
Conveniada; três Pronto Atendimento e um Serviço de Atendimento Pré-Hospitalar
- Serviço de Atendimento Médico de Urgência (SAMU).
O quadro de funcionários próprios da SMS no final do ano de 2001, correspondia
a 3.723 trabalhadores, sendo dividido em duas áreas denominadas famílias: saúde
com 2.853 trabalhadores e ocupacional com 870 trabalhadores da área de apoio.
Em relação à enfermagem, a SMS contava em 2001, com 265 enfermeiras, 23
técnicos de enfermagem, 1.054 auxiliares de enfermagem, 56 auxiliares de saúde
pública e 2 atendentes de enfermagem e representa, no conjunto dos
profissionais da área de saúde, 49,07% dos trabalhadores. Segundo informações
da Coordenadoria Setorial das Relações do Trabalho (CSRT), tomando-se o baixo
índice de rotatividade da equipe de enfermagem, esta se caracteriza pela
estabilidade. Este fato tem sustentado no colegiado gestor da SMS a
consideração de que a enfermagem apresenta alta potencialidade para a
reorganização do modelo de saúde do município.
Podemos verificar que das 265 enfermeiras 128 estão atuando na assistência em
unidades básicas de saúde, 61 assumem função assistencial em unidades de
referências, ambulatórios, pronto atendimento e SAMU. Um fator importante é
quanto à gerência dos serviços de saúde da SMS, que as enfermeiras assumiram.
Em 2001, as enfermeiras coordenavam 21 (45,6%) unidades básicas, quatro dos
cinco serviços de vigilância epidemiológica em nível distrital de saúde que tem
função administrativa e gerencial sobre o nível local, e 17,5% das áreas meios
em nível central, ou seja, Departamento Administrativo, Departamento Gerencial
de Desenvolvimento Organizacional, Coordenadoria de Vigilância à Saúde,
Coordenadoria Setorial de Recursos Humanos e Almoxarifado da Saúde. Outras 43
enfermeiras compõem as equipes de vigilância à saúde nos distritos de saúde e
serviços de apoio ao nível central. Podemos, a partir desses dados, considerar
que o campo de atuação das enfermeiras é diversificado e relevante para a
ordenação do modelo de saúde.
Para a elaboração do projeto, realizamos uma pesquisa no Centro de Documentação
(CeDoc) da SMS nos meses de maio e junho de 2001, com objetivo de identificar
documentos sobre a organização dos serviços municipais de saúde e buscar
registros sobre a inserção e as práticas de enfermagem. Após análise do
conjunto de documentos, constatamos que havia lacunas sobre o trabalho das
enfermeiras na SMS, reafirmando a escolha do método: história oral.
Após finalizarmos esta fase, iniciamos as entrevistas com as 11 enfermeiras,
utilizando roteiro de orientação de forma que a entrevistada teve ampla
liberdade de se expressar. Os depoimentos foram gravados em fita cassete e
transcritos na íntegra. Em seguida, realizamos a transcriação, ou seja, a
análise das entrevistas na qual a pesquisadora utilizou os pressupostos da
tradução, recriação em sua plenitude, tendo havido neste momento, a
interferência da autora(11).
3 O trabalho das enfermeiras, uma história silenciada
Considerando que as enfermeiras foram partícipes da construção da história da
SMS, concedemos vozes à sua memória para trazerem à tona fatos marcantes de sua
inserção e práticas desenvolvidas na rede básica de saúde do município de
Campinas. No final da década de 70, houve a contratação por intermédio de
indicações, das três primeiras enfermeiras na Secretaria Municipal de Campinas.
As instalações físicas dos PCS eram bastante precárias, tratando-se de imóveis
alugados, não atendiam minimamente as necessidades de área física para o
desenvolvimento das práticas em saúde. Os profissionais que desempenhavam a
função de auxiliar de saúde pública nesses serviços eram recrutados da
comunidade. Não possuíam formação na área da saúde, eram, então, treinados
através da prática que era desenvolvida em conjunto com os médicos,
responsáveis pela supervisão e treinamento dos auxiliares de saúde pública.
A organização do trabalho nos PCS era deficiente e as enfermeiras participavam
desde a seleção de novos auxiliares de saúde pública até a identificação de
materiais básicos para os PCS. Em 1979, foi implantada a aplicação da vacina
BCG intradérmica, somente a enfermeira estava autorizada a executar a
aplicação. Com a expansão dos PCS, e conseqüentemente, a ampliação da porta de
entrada para o sistema de saúde, a SMS constatou a necessidade de aumentar o
número de enfermeiras para que houvesse uma relação mais equilibrada entre o
número dessas agentes e PCS.
Em 1983, as enfermeiras elaboraram um documento, que estabelecia suas
atribuições e propunham, ainda, profissionalizar os auxiliares de saúde pública
em auxiliares de enfermagem e a formulação de uma coordenadoria para a
enfermagem, que estava subordinada administrativamente ao Serviço Médico,
embora respondessem diretamente ao secretário de saúde. Porém, ainda havia
resistência dos profissionais que compunham as equipes de saúde dos PCS, quanto
à inserção das enfermeiras no processo de trabalho. Em alguns PCS, a equipe de
saúde não permitiu a inserção da enfermeira, já em outros, quando essas agentes
sentiram maior receptividade, traçaram um plano de reorganização do trabalho e
aos poucos foram criando vínculo com a equipe. Segundo um depoente, a inserção
das enfermeiras nos PCS era pontual e focada na supervisão das atividades
técnicas desenvolvidas pelos auxiliares de saúde pública, não criava vínculo
com os profissionais, o que dificultava a sua inclusão nas equipes.
Nesse mesmo ano, por reconhecimento do esforço desempenhado pelas enfermeiras
na tentativa de reorganizar o processo de trabalho na área da enfermagem e pelo
aumento da complexidade dos atendimentos, criou o Serviço de Enfermagem (SE) na
estrutura administrativa da SMS. Em seguida, as enfermeiras e a equipe técnica
da SMS elaboraram um documento de padronização de condutas de curativos, sala
de vacina e esterilização. Definiu-se a organização e operacionalização das
áreas programáticas, as atribuições das enfermeiras, dos auxiliares de saúde
pública e dos médicos dentro dos programas. Foi admitida a primeira enfermeira
por processo seletivo que constava de entrevista e análise de currículo,
realizadas pelo secretário de saúde e pela coordenadora do SE.
Em 1984, a SMS optou por estabelecer convênio com o Senac, com o objetivo de
iniciar a profissionalização dos auxiliares de saúde pública. Porém, esse
processo não foi satisfatório devido ao elevado número de auxiliares de saúde
pública que necessitavam de formação, a maioria não tinha 1º grau completo.
Nesse período já vinha acontecendo, paralelamente, uma discussão já iniciada em
1982, sobre a implantação do Projeto Larga Escala (PLE) no município de
Campinas. Em 1987, inicia a elaboração e a implantação desse projeto, com a
participação das enfermeiras, que tiveram um papel relevante na argumentação
política e necessidade técnica da formação dos auxiliares de saúde pública,
para qualificar a assistência prestada à população e em consonância com a Lei
do Exercício Profissional do Conselho Federal de Enfermagem de 1986(14), que
determinava um prazo de 10 anos para que se extinguisse a categoria de
atendente/auxiliar de saúde pública dos serviços de saúde.
Ainda nesse ano, ocorreram transformações relevantes no sistema de saúde do
município: formação do primeiro grupo interinstitucional de Vigilância
Epidemiológica, constituído por médico, enfermeira, visitadora sanitária e
auxiliar de enfermagem; a municipalização dos serviços de saúde da Secretaria
Estadual e a parceria com a UNICAMP para capacitar seus trabalhadores de nível
universitário através do curso de especialização em saúde pública, com
prioridade de participação de enfermeiras e médicos generalistas.
Em 1989, a função da coordenadora do Serviço de Enfermagem da SMS era
participar das discussões de implementação das políticas de saúde, procurando
implantá-las na área de enfermagem. As diretrizes traçadas para essa área eram
relativas à recursos humanos, expansão de cargos e qualificação profissional.
Em meados desse mesmo ano, foi realizado o primeiro concurso público da
Prefeitura Municipal de Campinas, com a criação de novos cargos para
enfermeira. Durante a contratação das enfermeiras a equipe da SMS responsável
pela seleção realizava uma avaliação quanto aos conhecimentos e experiências
anteriores das enfermeiras, para capacitá-las em função do trabalho que iriam
desenvolver.
Ainda, havia uma aliança entre os médicos e os auxiliares de saúde pública, que
desenvolviam ações médicas, havendo sobreposição de procedimentos que ocorria
durante o atendimento ao usuário, ou seja, pré e pós-consulta médica. Até
aquele momento os médicos eram responsáveis pela supervisão da equipe de
enfermagem em algumas unidades, onde era difícil permanência de enfermeira.
A equipe de enfermagem trabalhava isoladamente no município de Campinas, e a
SMS com a finalidade de integralizar a assistência prestada, formulou o Projeto
Larga Escala em parceria com o Hospital Celso Pierrô, Hospital das Clínicas da
UNICAMP e o Hospital Maternidade de Campinas. Porém, essa parceria permaneceu
somente dois anos devido a divergências entre as instituições na
operacionalização da formação dos auxiliares de saúde pública e atendentes de
enfermagem.
O processo de formação dos auxiliares de saúde através do PLE, legitimou o
trabalho das enfermeiras, reordenando as suas práticas e dos auxiliares de
saúde pública. Esse período ficou marcado pela qualificação dos processos de
inserção e valorização dos conhecimentos e experiências dos profissionais.
No final de 1989, um grupo de enfermeiras elaborou um documento estabelecendo
as atribuições das enfermeiras na SMS, com objetivo de definir as funções da
enfermeira na assistência direta ao usuário se responsabilizando, de fato, pelo
cuidado às pessoas, entendendo que esse trabalho facilitaria a formação, a
organização e a supervisão do processo de trabalho.
4 A inserção e as práticas das enfermeiras
A pesquisa documental realizada e a análise dos dados empíricos possibilitaram
diversas análises, desde o processo de organização do trabalho na SMS de
Campinas até as diferentes concepções da enfermagem no âmbito da saúde pública,
porém vamos nos restringir somente ao objetivo proposto nesse estudo,
analisando a inserção e as práticas das enfermeiras caracterizando-as como
trabalho reconhecendo o seu saber e identificando sua finalidade, instrumentos,
objeto e agentes(15). Consideramos as enfermeiras como produto social e
produtoras dessa construção histórica, ou seja, sujeitos constituídos e
constituintes das ações sociais.
A contratação das enfermeiras na SMS se deu das mais variadas formas desde
indicação política até concurso público. Constatamos que, no final da década de
70, a SMS tinha como diretriz a implantação de um novo modelo de saúde, a
Medicina Comunitária, que previa entre outras ações a expansão da rede básica
de saúde, o que determinou a contratação das primeiras enfermeiras para
participarem da instalação física e da seleção e treinamentos de recursos
humanos. No final de 1989, com a implantação do PLE, houve também contratação
de um grande número de enfermeiras para a sua operacionalização.
Se, por um lado, o núcleo de competências das enfermeiras na saúde pública
estava por ser construído, por outro lado, sua formação acadêmica estava
voltada para as práticas assistenciais hospitalares, não preparando-as para a
atuação na saúde pública(16). Essas duas situações contribuíram para que as
enfermeiras fossem buscar novos caminhos para a construção de suas práticas na
saúde pública. Algumas agentes por interesses próprios buscaram formação nessa
área após a graduação, o que em parte facilitou a sua inserção e
desenvolvimento de ações voltadas também para a saúde da comunidade.
Os auxiliares de saúde pública da SMS foram incorporados à equipe de saúde dos
PCS desenvolvendo ações subordinadas ao trabalho hegemônico do médico dentro de
um modelo clínico de saúde(15). As ações desenvolvidas por esses agentes
estavam, portanto, diretamente relacionadas com as atividades executadas pelos
médicos. Com a inserção das enfermeiras o que se observou foi que os auxiliares
de saúde pública tiveram resistência em se integrarem a categoria da
enfermagem, pois já haviam incorporado o papel de auxiliar médico o que, de
certa forma, lhes conferia maior autonomia no desempenho das atividades
delegadas pelos médicos.
A inserção das enfermeiras no processo de trabalho dos PCS pode ser
caracterizada como uma conquista de espaço desconhecido, tanto para algumas
delas, quanto para outros profissionais. É possível constatar pelos depoimentos
que a enfermeira procurava delimitar o seu espaço social no processo de
trabalho, sendo suas atribuições amplas, tendo que demonstrar habilidade
profissional para ser aceita na equipe.
Além disso, algumas outras questões terão de ser consideradas, visto que foram
determinantes, também, na inserção das enfermeiras nas unidades de saúde. A
relação entre o número de enfermeiras e o número de PCS, que impunha uma
dinâmica de atuação esporádica com os auxiliares de saúde pública; a
organização do processo de trabalho das unidades de saúde, que não previa a
participação da enfermeira, e o vínculo entre os auxiliares de saúde pública e
os médicos que fortalecia a não inclusão dessas profissionais na equipe de
saúde dos PCS. Nesse contexto, destaca-se o empenho das enfermeiras em
enfrentar os desafios impostos, ocupando um espaço social e político e
construindo um processo de trabalho que permitiu a abertura de novos campos de
atuação na saúde pública, como a vigilância epidemiológica e a gerência dos
serviços de saúde.
As condições precárias de infraestrutura e os recursos materiais disponíveis
nas unidades de saúde eram incipientes para atender com qualidade às
necessidades de saúde da população. As enfermeiras investiram esforços para
transformar essa prática através de padronização de novos materiais de consumo
e otimização dos espaços físicos da comunidade e reorganização do fluxo de
trabalho na unidade de saúde.
Diante desse cenário as enfermeiras utilizaram diferentes instrumentos de
trabalho com a finalidade de promover o cuidado e recuperar a saúde coletiva ou
individual. Pudemos constatar que as práticas desenvolvidas pelas enfermeiras
foram influenciadas pela formação específica e, experiência individual e pelo
processo de trabalho mantido entre os médicos e auxiliares de saúde pública,
que lhes possibilitaram estabelecer relações no âmbito profissional e
permitiram a construção de um outro espaço social.
A supervisão enquanto um instrumento de organização, controle do trabalho e
articulação política(17), foi usada pelas enfermeiras, ainda que não tivesse
definido de que forma exercer essa função e quem seriam os agentes
supervisionados. Segundo depoimentos, a supervisão do trabalho dos auxiliares
de saúde pública tinha duas finalidades: uma de avaliação/treinamento e outra
de fiscalização/controle dos procedimentos técnicos de enfermagem para melhorar
a qualidade da assistência. Essa supervisão também é referida como sendo
eventual nas unidades de saúde, o que dificultava a criação de vínculo com as
equipes de saúde dos PCS.
Para algumas enfermeiras a SMS era responsável por imprimir essa prática, pois
havia uma cobrança de controle administrativo sobre os funcionários que
trabalhavam no PCS. Como a permanência da enfermeira nos PCS´s não era
contínua, o pouco tempo que neles permanecia dedicava-se mais predominantemente
às questões relacionadas aos procedimentos técnicos de enfermagem.
Os treinamentos para os auxiliares de saúde pública foi outro instrumento que
as enfermeiras se apoiaram para exercer a sua função na SMS, sendo relatado por
parte delas como um momento de mudanças de práticas dos auxiliares de saúde
pública e reconhecimento técnico e político por parte dos dirigentes da SMS.
Esse treinamento era oferecido para os novos funcionários, com participação dos
antigos e supervisão das enfermeiras. As enfermeiras avaliavam que as práticas
desenvolvidas pelos antigos auxiliares de saúde pública eram equivocadas e
poderiam causar danos à saúde da população. Então, o treinamento, segundo
algumas enfermeiras, foi uma estratégia utilizada para corrigir desvios e
integrar os antigos auxiliares de saúde pública.
Algumas enfermeiras centraram as suas atividades na realização dos
procedimentos técnicos de enfermagem, a inalação, curativos, administração de
medicamentos e esterilização. Consideramos que o espaço permitido pela equipe
de saúde e a formação das enfermeiras foram determinantes no desenvolvimento
dessas atividades nos PCS. Por outro lado, constatamos que algumas enfermeiras
não tiveram permissão nem para executar esses procedimentos, pois a equipe de
saúde julgava que a enfermeira não era qualificada para tal. Em um PCS,
inicialmente, a enfermeira assistia ao usuário com a permissão da equipe e com
a supervisão do auxiliar de saúde pública, o que caracterizava o
desconhecimento do trabalho da enfermeira.
Quando a enfermeira não conseguia espaço para desenvolver ações dentro da
unidade de saúde, buscava desenvolver atividades na comunidade ou ações de
grupos de orientação nos equipamentos sociais. Identificamos que as ações
voltadas para a comunidade foram mais incisivas quando as enfermeiras tinham
formação específica na área de saúde pública. O desenvolvimento de ações
programáticas pela equipe de saúde dos PCS também foi um instrumento no qual as
enfermeiras investiram esforços, procurando reorganizá-las de forma a atender
as necessidades da população e da equipe de saúde.
A consulta e o atendimento de enfermagem nas áreas da saúde da mulher e da
saúde da criança realizadas pela enfermeira ou em conjunto com os auxiliares de
saúde pública foram atividades que garantiram a aproximação do trabalho da
enfermeira com a equipe de saúde. As enfermeiras tiveram oportunidade de
aplicar os conhecimentos adquiridos anteriormente e qualificar o trabalho da
enfermagem nesses programas.
A visita domiciliária, às vezes, foi realizada pela enfermeira por falta de
espaço para desenvolver ações dentro da unidade, sendo realizada como
estratégia de promoção e recuperação da saúde. Para algumas enfermeiras, essa
atividade era de suma importância para garantir a recuperação da saúde e para
outras era um meio de evitar agravos e manter um vínculo com a comunidade.
A normatização de procedimentos técnicos de enfermagem estabelecida pelas
enfermeiras contribuiu para melhorar a qualidade da assistência prestada a
população e reorganizar o processo de trabalho realizado nas unidades de saúde.
Os registros da produção de atividades executadas pelas enfermeiras trouxeram
uma nova perspectiva quanto ao reconhecimento político e técnico do trabalho
dessas agentes pela equipe de saúde dos PCS e pelos gestores da SMS.
Pudemos notar que as enfermeiras desenvolviam ações correspondentes ao modelo
clínico e à saúde pública. A atuação das enfermeiras está intrinsecamente
relacionada a três aspectos: o primeiro diz respeito à posição assumida por
cada uma, como sujeito no trabalho, entendendo sujeito como aquele que
participa da construção social e política da história, elabora projetos,
rompendo assim, com lógica da seriação e alienação; o segundo refere-se à
formação acadêmica que não privilegiava as práticas da saúde pública durante o
curso de graduação e favoreceu a busca de produção de novas práticas no campo
da saúde pública, por fim, a composição da equipe de saúde, constituída
inicialmente pelos médicos que detinham o poder político e administrativo e
saber hegemônico e pelos auxiliares de saúde pública, que eram representantes
da comunidade e não possuíam formação na área de saúde.
O fato de a SMS não apresentar de imediato um projeto específico de enfermagem
que definisse a ação dessa profissional na rede de serviços, as diferentes
experiências anteriores na função e a forma como cada uma assumiu o trabalho
nos PCS colaboraram para novas definições de papéis e espaços que as
enfermeiras ocuparam. Notamos ainda, que para algumas enfermeiras, a inserção
no processo de trabalho das equipes de saúde foi facilitado pela maneira como
articularam as suas atividades com as atividades dos outros profissionais,
restabelecendo uma nova divisão social e técnica do trabalho.
Embora a formação tenha sido apontada como um determinante da dificuldade de
atuar na saúde pública, seis enfermeiras que tinham como projeto pessoal
profissional trabalhar na área de saúde pública buscaram complementar sua
formação na habilitação, na especialização ou na residência. Então, podemos
afirmar que o interesse pela área de trabalho também foi um fator que
contribuiu para expandir a sua atuação no campo da saúde pública.
A capacitação das enfermeiras para atuarem na gerência dos serviços de saúde,
explicita a valorização do saber administrativo da enfermagem e o interesse
político de incluir essas agentes na gestão da SMS. Ao mesmo tempo, nos chamou
a atenção o fato de algumas enfermeiras terem permanecido apenas quatro meses
na unidade de saúde antes de assumirem o cargo de coordenação. A esse respeito,
levantamos algumas questões que mereciam estudos. Em que medida as enfermeiras,
assumindo essa posição de poder, não estavam naquele momento favorecendo a
acúmulo de forças e posição política, técnica e administrativa favorecendo a
essa profissional um espaço privilegiado no campo de disputa que se estabelecia
no cotidiano das unidades? Em que medida a SMS naquele momento investiu na
contratação das enfermeiras pautando-se pela lógica do custo/benefício,
delegando-lhes funções de gerência? De qualquer forma há de se considerar que
embora as questões acima sejam paradoxais o resultado tem sido positivo no
sentido de agregar valores sociais e técnicos ao trabalho desenvolvido pelas
enfermeiras.
A formação dos auxiliares de saúde pública através do Projeto Larga Escala foi
avaliada pelas enfermeiras como um marco de crescimento positivo, tanto para os
auxiliares de saúde pública como para as enfermeiras, redirecionando as
práticas para melhorar a assistência nos serviços de saúde, promovendo a
cidadania, a inclusão social e causando impacto político dentro e fora da SMS,
muito embora tenha havido a percepção de que a profissionalização desses
trabalhadores também assumiu um significado de perda para a saúde pública pelo
fortalecimento do modelo clínico de atenção à saúde e enfraquecimento do
compromisso e do vínculo com a comunidade.
5 Considerações finais
A história das políticas de saúde no Brasil é construída a cada dia e a atuação
de diversos setores da sociedade, dentre eles destacamos, usuários,
trabalhadores e governos, podem nela interferir com iniciativas que caminham em
direção a transformações. O SUS foi implantado pela Constituição Federal
Brasileira de 1988 e regulamentado, através da Lei Orgânica da Saúde de n.
8080, em 1990, e trouxe a necessidade de reorganização dos serviços de saúde,
visando implementar os princípios da universalização, integralidade,
hierarquização, descentralização e controle social, na perspectiva de
compreender a saúde como direito de cidadania. Embora, a consagração
constitucional dos princípios do SUS tenha ocorrido em 1988, sabemos que é o
resultado de um longo movimento social que se desenvolveu desde a década
anterior, a reforma sanitária.
Na década de 70, Campinas foi um município pioneiro a implantar uma rede básica
de atenção à saúde influenciada pela proposta de Medicina Comunitária. Esta
iniciativa buscava organizar o setor administrativo, alterar o modelo de saúde
centrado no hospital e, por fim, atender as necessidades de saúde da população
excluída do sistema previdenciário de atenção à saúde. Seu maior objetivo era
instalar uma ampla porta de entrada, que permitisse um atendimento integral,
satisfazendo, via integração institucional hierarquizada, as necessidades de
saúde da população marginalizada(3).
Concluímos que no período estudado houve transformações nos processos de
trabalho das enfermeiras, que ora encontraram o seu papel na assistência
individual e coletiva, ora na capacitação, ora na gerência buscando ocupar um
espaço social e político, definindo a sua atuação para atender às necessidades
dos usuários e às diretrizes da SMS. Portanto, a posição assumida pelas
enfermeiras foi extremamente relevante para a instalação da rede básica de
saúde, a reordenação das práticas de enfermagem e para a implantação do modelo
de saúde proposto nesse período, sendo sujeitos da inserção e da produção de
novos saberes e práticas na rede básica de saúde de Campinas nas décadas de 70
e 80.