O processo ensino-aprendizagem crítico-reflexivo
PESQUISA
O processo ensino-aprendizagem crítico-reflexivo
The critical-reflexive teaching-learning process
El proceso enseñanza-aprendizaje crítico reflexivo
Mara Quaglio ChirelliI; Silvana Martins MishimaII
IEnfermeira. Professor junto ao Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de
Marília - FAMEMA. Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto/USP
IIEnfermeira. Professor Doutor junto ao Departamento de Enfermagem Materno-
Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo
E-mail do autor: chirelli@terra.com.br
1 Introdução
A formação dos enfermeiros numa perspectiva crítico-reflexiva e em defesa da
vida, tem sido, há algum tempo, uma das questões que vêm mobilizando os
docentes do Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA).
Desde 1998, está sendo implementado um novo Projeto Político-Pedagógico (PPP),
o qual está centrado na formação de sujeitos por meio de um currículo integrado
e da Metodologia da Problematização, tendo como objetivo a formação das
competências de um enfermeiro crítico-reflexivo com qualidade formal e política
(1).
Na Enfermagem, a discussão sobre o processo de formação dos seus profissionais
data desde o início da década de 80, quando começaram as discussões e a
construção de um projeto político para a profissão, tomando como uma de suas
referências a construção do Sistema Único de Saúde - SUS, conduzido pela
Associação Brasileira de Enfermagem - ABEn, o qual vem sendo implementado,
enfrentando políticas econômicas, de ensino e de saúde nem sempre favoráveis
aos processos de transformação.
Algumas mudanças vêm sendo discutidas amplamente, tendo como um dos seus
produtos um relatório elaborado pela Comissão Internacional sobre Educação para
o Século XXI, no qual aponta-se, dentre os diversos desafios que temos que
enfrentar na nossa sociedade tanto no presente como no futuro, a educação como
um trunfo indispensável à humanidade na construção da paz, da liberdade e da
justiça social(2).
Diante deste cenário um dos desafios que a Enfermagem vem se propondo a
enfrentar diz respeito à elaboração de projetos que tenham potência para formar
profissionais compromissados com a sociedade e com seus problemas de saúde,
numa perspectiva que articule a teoria e a prática, numa visão crítica a
respeito da realidade, integrando os diversos aspectos dos problemas de saúde,
considerando a complexidade do ser humano, o contexto em que ele vive e
trabalha e que os profissionais tenham competência para enfrentar os desafios
do século XXI, construindo uma consciência crítica a respeito do contexto em
que está inserido. Além disso, há necessidade também de investirmos nas novas
formas de pensar e agir, sendo necessário para o exercício de uma profissão
adotar novos processos de formação que possibilitem aos egressos a capacidade
de investigação e a de aprender a aprender, estimulando assim a capacidade para
entender como se produz o saber nas diversas áreas, criando condições para uma
educação permanente(3).
Portanto, não se trata somente da ampliação da criatividade, da relação do
aluno com o conhecimento, enquanto dimensão crítica do saber. A questão está
centrada em para quê e para quem será utilizada esta capacidade de crítica e de
construção do conhecimento, sendo que essa capacidade pode e deve ser posta a
serviço dos interesses maiores da sociedade(4).
Assim, tomamos como objetivos de nossa pesquisa captar através dos alunos do
Curso de Enfermagem da FAMEMA como vem sendo a construção do seu processo de
formação, na direção da constituição de um profissional crítico-reflexivo;
identificar as marcas diferenciais do processo de formação percebidas pelos
alunos do Curso de Enfermagem da FAMEMA a partir da lógica do PPP do curso.
2 Metodologia
A busca da compreensão do objeto em foco deu-se através da pesquisa qualitativa
por esta ser capaz de incorporar a questão do significado e da intencionalidade
como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas
últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como
construções humanas significativas(5). Assim, esta opção determinou a definição
de técnicas para coleta de dados, bem como da análise proposta para o material
empírico.
2.1 O campo de estudo
Constituiu-se campo de estudo dessa pesquisa o Curso de Enfermagem da FAMEMA, a
qual localiza-se no município de Marília, estado de São Paulo - Brasil, aonde
um novo PPP vem sendo construído num processo de transformação da instituição,
tomando-se como marcos delimitadores: a estadualização da FAMEMA e o Projeto
UNI - Marília. O Curso de Enfermagem é oferecido em quatro anos, numa
configuração de currículo integrado, contando atualmente com 160 alunos.
2.2 Trabalho de campo
Os sujeitos da pesquisa foram os 41 alunos do último ano do curso de
enfermagem, ingressantes no ano de 1998, ou seja, alunos que iniciaram o
processo de implantação do novo PPP. Entendemos que por ser a primeira turma a
se formar através de uma nova modalidade de organização curricular e
metodologia ativa de ensino-aprendizagem, e por já ter percorrido todas as
unidades educacionais e, acumulado experiências ao longo dos quatro anos do
curso, seria pertinente compreendermos como os alunos conseguiram construir sua
percepção acerca dos processos que permearam sua formação.
Para captarmos essa realidade foram utilizados dados de fonte primária,
coletados através das técnicas de grupo focal e entrevista semi-estruturada,
bem como de fonte secundária, obtidos em fontes documentais produzidas por
outros grupos de trabalho como o próprio PPP do Curso de Enfermagem, o Projeto
de Estadualização da FAMEMA, o Projeto de intenções para iniciarmos as
atividades do Projeto UNI e os relatórios anuais da instituição em relação ao
desenvolvimento das atividades do Projeto UNI, incluindo documentos do Projeto
UNI-Marília.
O projeto de pesquisa passou por aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa
Envolvendo Seres Humanos da FAMEMA, tendo sido aprovado sem ressalvas.
2.3 As técnicas de captação do material empírico
A coleta do material empírico pela técnica de grupo focal (GF)(6-8), que é uma
determinada técnica de entrevista, foi escolhida por esta apresentar a
possibilidade de expressar a subjetividade dos sujeitos da pesquisa,
manifestando suas vivências e experiências no campo em estudo, através do
relato verbal e discussões num coletivo.
Os integrantes do grupo foram 8 alunos da 4ª série do Curso de Enfermagem da
FAMEMA, o que gera uma homogeneidade quanto aos processos a que foram
submetidos para que houvesse uma formação crítico-reflexiva durante os quatro
anos do curso. O critério de seleção e de inclusão dos sujeitos da pesquisa foi
a adesão voluntária dos alunos, sendo que o grupo de alunos participou de 3
sessões onde várias temáticas disparadoras foram discutidas.
Realizamos também a entrevista semi-estruturada com 4 alunos que não puderam
participar do GF, sendo que esta técnica combina perguntas fechadas e abertas,
onde o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto, sem
respostas ou condições pré-fixadas pelo pesquisador(5).Utilizamos a mesma
seqüência de questões para a coleta do material empírico através da entrevista.
2.4 Análise do Material Empírico
Iniciamos a organização do material empírico utilizando a metodologia do
Discurso do Sujeito Coletivo - DSC(9). O método consiste em utilizarmos algumas
figuras metodológicas para que possamos construir os discursos dos sujeitos da
pesquisa. A primeira figura é a ancoragem,quediz respeito à teoria, ideologia,
crença que está fundamentando o discurso apresentado pelo sujeito. A segunda é
expressões-chave que são as partes ou fragmentos das falas das entrevistas,
contínuos ou descontínuos, os quais vão expressar a essência do discurso ou a
teoria subjacente. Na seleção do material estamos buscando depurar o que é
irrelevante, inessencial e secundário, para ficarmos com o que seja essencial
nos discursos analisados, além de facilitar a construção dos mesmos. Através
deste recurso metodológico estamos tornando a fala genérica e abstrata uma fala
do social, pois conforme o autor frisa, um discurso social só pode ser
construído pela abstração, pela forma de um mesmo discurso compartilhado.
A terceira figura é a idéia central, que descreve de maneira mais sintética e
precisa possível o sentido e o tema das expressões-chave de cada um dos
discursos analisados.
Finalmente o DSCtrata da reunião das expressões-chave que têm a mesma idéia
central ou ancoragem em um discurso-síntese(10).
Iniciamos o processamento do material do grupo focal a partir do registro de
cada encontro. Começamos pela leitura das falas emitidas após cada pergunta
disparadora, separando qual a idéia central (IC) na mesma. A seguir agrupamos
as falas que se assemelhavam com relação às ICs e suas expressões-chave (ECH)
correspondentes.
Num segundo momento, agrupamos as ICs das quatro entrevistas e do GF por
semelhança da idéia contida na frase, para que houvesse um maior agrupamento
das ICs. Neste movimento, percebemos que muitas das ICs tanto nas entrevistas
como no GF se repetiam.
Outra opção feita foi a de processarmos a construção dos DSC separadamente por
termos duas técnicas de coleta de dados diferentes e não encontrarmos na
literatura respaldo para que realizássemos o agrupamento das falas provenientes
das duas técnicas.
Após a ordenação do material empírico, aplicamos a análise temática(5), a qual
é sustentada pelo referencial de Análise de Conteúdo(11).
3 Professor e aluno como sujeitos no processo ensino-aprendizagem
Ao nos lançarmos na pedagogia da pergunta, em contraposição à pedagogia da
resposta, estamos construindo uma formação que tem como intenção educar
enfermeiros com uma visão questionadora sobre o mundo. Estamos mobilizando um
novo sentido para o processo educativo, estamos transformando os sujeito na sua
forma de ver e pensar o mundo.
Para tanto, o professor e o aluno vão assumindo papéis, com determinadas
atitudes que antes não poderiam ser imaginadas em uma pedagogia que somente
buscava respostas prontas e acabadas num conjunto de certezas ditadas por um
paradigma no qual os conhecimentos são construídos de forma linear, por adição
de novas descobertas.
Na Metodologia da Problematização, assim como nas diversas metodologias que têm
sua fundamentação numa pedagogia crítica, o professor tem um papel de mediador
da aprendizagem a ser construída pelo aluno, visto que numa aprendizagem
interacionista o professor faz a mediação entre o objeto e o aluno para a
construção do conhecimento, na perspectiva da autonomia no processo de aprender
a aprender.
Como mediador ele deve instigar o aluno a refletir sobre a realidade em que
está vivendo sua formação profissional, tendo como finalidade à elaboração dos
desempenhos para a construção da autonomia no processo de busca das informações
e transformação delas em conhecimento, além da formulação do pensamento
crítico, no caso, sobre a Enfermagem e o campo da saúde num determinado
contexto.
Nos discursos dos alunos surge uma diferenciação com relação ao método
tradicional quanto ao processo ensino-aprendizagem. Considerando que no método
tradicional o professor é a principal fonte de informação e conseqüentemente
acaba sendo o emissor de uma verdade. Os alunos apontam que isto pode limitar a
atuação dos futuros profissionais na busca de soluções originais e adequadas
para a diversidade de problemas no campo da saúde, além de também limitar a
crítica e capacidade avaliativa sobre as possíveis soluções dos problemas.
Conforme os alunos destacam, o que podemos exercitar com os alunos numa
pedagogia crítica são as possibilidades de solução dos problemas e, saber
considerar as vantagens e desvantagens em que cada uma pode acarretar para a
situação em questão, quais os riscos, ou seja, saber questionar as diversas
soluções que possam surgir, emitindo sua opinião e sabendo como apresentá-las
para a equipe e para a comunidade, exercendo seu poder de argumentação.
Ressaltamos que esta habilidade é construída ao longo do curso, pois os alunos
ao chegarem na faculdade estão acostumados com a pedagogia da resposta, onde o
professor é a principal ou a única fonte de informação.
Ao destacarmos que o professor deve ser um educador antes de tudo, estamos nos
referindo ao fato de que esta pedagogia busca formar cidadãos tendo competência
com qualidade política; além de capacitar profissionais tendo competência com
qualidade formal para a intervenção, estamos formando pessoas que, de acordo
com o que está posto como proposta no Fundamento Sócio-cultural do PPP, visa
transformar cada ser humano em um sujeito capaz de recuperar e realizar sua
"humanidade" num projeto coletivo e solidário de superação dos condicionantes
reais impostos pelas relações atuais de trabalho. A condição humana se realiza
pela cultura, que é essa atividade incessante dos homens em transformar o mundo
natural e social, de modo a criar um mundo humano(12).
Outra atitude a ser valorizada neste professor é a capacidade de poder ajudar o
aluno a construir a crítica a partir do questionamento, fazendo interrelações
entre a teoria e a prática, incentivando o aluno a ter responsabilidade frente
aos atos realizados, orientar os caminhos para que se construa a autonomia na
aprendizagem, enfim, ter uma intencionalidade no ato, ser um educador de
valores e atitudes frente ao mundo.
Assim, um currículo democrático, o qual transcende a idéia de uma formação
progressista "o que está em jogo é levar os jovens a aprenderem a ser leitores
críticos da sociedade"(13:8), não bastando horizontalizar as relações
interpessoais, e/ou incrementar os recursos técnicos que, sem dúvida podem
'auxiliar' no processo ensino-aprendizagem, mas trata-se principalmente de
adotarmos uma direção comprometida com um modelo social mais justo.
Percebemos que os alunos consideram a existência de um planejamento intencional
traduzido nos "caderninhos", ou seja, no caderno do planejamento da unidade
educacional, o que cada unidade educacional teria a desenvolver na construção
dos conhecimentos que lhe são pertinentes e que este será posto em prática a
partir de uma atitude do professor frente ao mesmo.
Os professores numa nova perspectiva educacional devem ter algumas competências
profissionais, a saber: organizar e animar as situações de aprendizagem; gerir
o progresso das aprendizagens; conceber e fazer evoluir os dispositivos de
diferenciação; envolver os alunos nas suas aprendizagens e no seu trabalho;
trabalhar em equipe; participar da gestão da escola; informar e envolver os
pais; servir-se de novas tecnologias; enfrentar os deveres e dilemas éticos da
profissão e gerir sua própria formação contínua(14).
Essas competências funcionam a favor da educação do profissional numa prática
reflexiva a ser desenvolvida pelos alunos, em que o professor tem um papel de
instiga-los a construir suas próprias iniciativas, a refletir sobre sua própria
relação com o saber, com as pessoas, o poder, as instituições, as tecnologias,
o tempo que passa, a cooperação, tanto quanto sobre o modo de superar as
limitações ou tornar seus gestos técnicos mais eficazes(15).
Ao iniciarmos o novo processo, tendo como intenção a formação profissional
crítico-reflexiva, utilizando uma metodologia ativa de ensino-aprendizagem,
consideramos que os alunos ao chegarem ao curso, sem terem conhecimento sobre
como seria esse processo de formação, passaram por uma fase de reconhecimento e
construção dessa nova prática pedagógica que, por sua vez, também era nova para
os docentes, mesmo tendo estes realizado algumas experiências anteriores com a
metodologia.
Os professores tiveram um papel importante no começo do curso, ao receberem os
alunos e terem que construir uma nova prática pedagógica, desestruturando todo
um caminho feito pela maioria dos alunos durante sua formação escolar. Como são
formados no método tradicional, há toda uma fase de adaptação e reconstrução do
método de ensino-aprendizagem na concepção crítico-reflexivo. Nesta
perspectiva, o papel dos docentes da primeira série tem sido de recepcionar
estes alunos e ir realizando todo um novo trajeto para que o aluno consiga
construir novos desempenhos no processo de aprender a aprender em uma formação
crítica.
Daí decorre todo um acompanhamento a partir desses passos iniciais, em que cada
aluno apresenta um determinado ritmo para essa reconstrução pedagógica que
deverá ser trabalhado ao longo do curso.
Constatamos, também, a importância das relações interpessoais no processo de
formação para que se possa ganhar confiança no que os sujeitos deverão
desenvolver; não no sentido de convencimento enganoso, ou troca de favores
entre cúmplices, mas numa relação de confiabilidade no que está sendo
construído, no que se faz no dia-a-dia, mesmo que não se tenha uma receita
pronta para realizar uma prática inovadora, mesmo porque, em tal caso, não
seria inovadora, mas simples cópia para a reprodução.
Pesquisa que estudou o fazer de professores em cursos universitários, destaca
sobre a qualidade do ensino em uma universidade brasileira, os alunos
valorizam, além da vida universitária como um todo, por esta proporcionar
crescimento e amadurecimento humanos, independência intelectual, desenvolver
qualidades como assumir responsabilidades, tomar iniciativas, comprometer-se
socialmente, ajuizar criticamente, valorizam também os professores que
estabelecem relacionamentos onde o formal e o informal, a firmeza e a
tolerância, a autoridade e a liberdade não se apresentam como
aspectos mutuamente excludentes, mas se constituem em atitudes
geradoras de confiança mútua, estabelecidas a partir de projetos de
trabalho ou de objetivos comuns de disciplinas e cursos(16:18).
Dessa forma, o fato de encontrarem professores que poderiam, ao longo do curso,
ter um compromisso com sua formação, partilhando projetos, acompanhando os
alunos de forma a construir uma confiabilidade no que estavam realizando, pode
ser um elemento facilitador importante para que se consiga trabalhar um novo
processo pedagógico.
Ao iniciarmos o PPP, uma estratégia para sua implementação foi a capacitação
dos docentes na Metodologia da Problematização, a qual já vinha sendo realizada
desde 1994. No entanto, ressaltamos o fato de ser realizada a capacitação, não
garante, por si só, que teremos a mudança de atitude do corpo docente.
Assim como os alunos levaram um tempo para compreender e defender a proposta do
projeto, e mesmo assim lembram que não são todos os alunos que terminando o
curso, revelasse adesão à proposta do PPP, o mesmo pode estar ocorrendo com os
docentes. Isso não quer dizer que nunca poderão vir a apoiar o projeto, pelo
contrário, no próprio PPP há a indicação na definição de Homem que este possui
a capacidade de pensar, permitindo-o refletir sobre a realidade e não somente
vivê-la. Quando indaga sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as
situações, os valores e a sí próprio, cria uma concepção do mundo. É essa visão
da realidade que permeia suas ações na direção de uma transformação(12).
Portanto, ao enunciar esta concepção percebemos que há um aposta positiva em
relação a ela, já que todas as pessoas têm infinitas possibilidades e
capacidades para construírem e se reconstruírem no mundo, considerando as
condições e os determinantes existentes no contexto onde vivem.
Quando estamos trabalhando na perspectiva de um PPP, o mesmo aponta uma
direcionalidade a ser seguida, sendo a base para que possamos planejar a ação
pedagógica, construindo as estratégias e realizando as atividades propostas,
que devem ser avaliadas para verificação de como estamos caminhando e o que
conseguimos realizar ou não e propormos o que deve ser corrigido para o alcance
das metas e objetivos no processo.
No contexto de implementação dos projetos consideramos necessário haver espaço
para a educação permanente dos docentes, mas que esta tenha como finalidade a
reflexão da prática cotidiana à luz do PPP proposto, caso contrário corremos o
risco de estarmos planejando e atendendo somente aos interesses e desejos
individuais, ao invés de abrir espaços para a negociação das necessidades
estabelecidas no projeto, articulando o coletivo e os interesses individuais.
Na era da globalização para que se possa ocorrer uma transformação nas práticas
dos professores há que se estabelecer um processo reflexivo, problematizador
que, pelo diálogo, despendendo um certo tempo para que ocorra a reflexão sobre
as práticas exercidas no cotidiano, embasadas na elaboração do saber científico
e técnico, poderá levar à conscientização e possível mudança dessas práticas,
ou seja, devemos ter uma educação permanente que permeie todo o processo de
implementação do PPP(17). Ainda que
há os que acham que o tempo com o diálogo é perdido. Isso não é
verdade, se, através do diálogo, problematiza-se, critica-se e,
criticando, inserem-se os professores na realidade como verdadeiros
sujeitos das transformações. Toda demora no início significa um tempo
ganho em solidez, em segurança, em auto-confiança e interconfiança
(17:69).
O processo de mudança não ocorre somente porque temos um projeto, um documento
elaborado que, em princípio, teve a participação de todo o corpo docente
composto por enfermeiros, além de representações de disciplinas das cadeiras
básicas e enfermeiros dos serviços de saúde em que ocorre a formação dos alunos
(12). Mesmo tendo sido aprovado nas instâncias necessárias, no momento em que
começamos a colocá-lo em prática é que vamos perceber como cada membro que
participa do projeto pedagógico se manifesta perante o que está proposto ou
prescrito.
Os alunos apontam que nem todos os professores atuam de acordo com o
entendimento que aqueles têm com relação à proposta pedagógica. Os docentes,
assim como os alunos, apresentam algumas dificuldades como a falta de
habilidades para o trabalho em grupo. Para que atue numa nova proposta, o
docente tem que acreditar, ter valores e atitudes que levem os alunos a serem
críticos, caso contrário estarão reproduzindo a prática tradicional e a
inovação acaba sendo "só fachada".
Observamos que os alunos apresentam uma visão idealizada dos docentes ao
apontarem que todos os docentes deveriam ter uma visão crítica para iniciar sua
atividade no currículo. Lembramos que o projeto ao ser construído em processo
tem como finalidade uma construção na ação cotidiana, ou seja, trabalharmos as
diversas visões sobre o processo, fazendo com que os docentes e todos os
sujeitos do processo possam refletir sobre a sua própria prática, transformando
o projeto e a si próprio.
Através das sucessivas aproximações, que podem ocorrer por meio das estratégias
estabelecidas, e a educação permanente pode ser uma delas para se pensar e
reelaborar a prática pedagógica, vamos transformando o nosso fazer e nos
transformando, a praxis. Nesta se revelam nossos valores, crenças, visão de
mundo, concepção de ser humano, ou seja, a nossa subjetividade, mesmo que não
tenhamos consciência disso. À medida que vamos nos aproximando dessa prática de
forma reflexiva e vamos tomando consciência de nossos atos, podemos ter a
possibilidade de rever atitudes e formas de pensar para que ocorra tanto uma
transformação do que já está instituído como sua reiteração.
Como em todo processo que se inova há uma fase de adaptação e capacitação,
inclusive dos docentes, há aqueles que têm maior dificuldade ou apresentam
alguma resistência com relação às propostas do projeto, podendo não saber ou
não querer lidar com determinadas situações ou problemas.
Na Metodologia da Problematização, ao lidarmos com as situações da realidade,
estamos trabalhando com uma concepção de mundo em que estão presentes as
contradições, os conflitos e as divergências. Entendê-las através das
discussões e questionamentos faz parte do ato pedagógico, considerando-se a
ação/reflexão/ação transformadora.
Nesta metodologia, portanto, para se formar um profissional crítico, o mesmo
deve aprender a lidar com os conflitos que fazem parte do contexto dinâmico e
desenvolver o aprender a ser e o aprender a conviver. Para isso o trabalho é
desenvolvido em pequenos grupos de, em média, 10 alunos, por considerarmos que
esta estratégia pode proporcionar o convívio entre os pares, gerando momentos
em que os alunos possam refletir sobre sua prática grupal e desenvolver
determinados valores e atitudes que levem os alunos a saberem lidar com as
diferenças, com as diversas formas de ver o mundo, saberem ouvir e respeitar a
opinião dos colegas, além de saberem partilhar os espaços, os conhecimentos, as
decisões, negociando entre eles.
O trabalho em grupo, enquanto estratégia para construção do conhecimento,
contribui para que o aluno aprenda a partilhar com os colegas através de suas
argumentações o que conseguiu compreender sobre o problema a ser estudado/
resolvido/discutido. Na dinâmica do trabalho em grupo não se trata de jogar
opiniões no ar, mas de argumentar de forma metódica, apresentando elementos que
fundamentem a tese apresentada aos colegas(7).
Trata-se de dar voz aos alunos por tanto tempo emudecidos pela pedagogia da
resposta, estando muitas vezes "desabituados a fazer uso da palavra, a fazer
uso deste instrumento de poder" (13:7). O espaço da sala de aula pode ser um
espaço para ensinar aos alunos a estudar (aprender a aprender), a saber ler e
interpretar um texto, criticando-o, ou seja, criticando o mundo.
A leitura, para que se torne um momento de aprendizagem e possibilite a
reconstrução pessoal, necessita da sistematização da atividade, perpassando
pelo texto, tomando nota, riscando-o, reclamando, aplaudindo, reconstruindo-o
(18).
Como a atividade em grupo necessita de disciplina, a figura de um
coordenador torna-se necessária para que todos possam falar e
apresentar suas argumentações, como também escutar, tanto quanto à de
um relator para que se tenha um fluxo de produção.
O coordenador pode mediar as discussões na busca de consensos, cujos
caminhos por vezes são árduos, considerando-se que há perdas e ganhos
no percurso; pode-se valorizar as diferenças de argumentações,
tentando fazer delas a riqueza do grupo [...] com isso, podemos
ressaltar valores pedagógicos da solidariedade e generosidade,
necessários para a vida em comum(18:88).
Quando convivemos em uma profissão na qual o trabalho em equipe se faz
necessário para resolver os problemas identificados, há necessidade de uma ação
conjunta para a abordagem das suas várias interfaces para a resolução dos
problemas. Temos também que aprender a conviver com as diversas opiniões e
desenvolver a capacidade de saber lidar com as situações que surgirem
mobilizando conhecimentos, habilidades e atitudes.
Nas unidades educacionais alguns desempenhos são esperados para realização do
trabalho em grupo, a saber: apresenta compromisso com a tarefa assumida;
participa respeitando opiniões diferentes, identificando conflitos e
intervindo; coopera com os colegas e compartilha informações; reconhece os
diversos papéis e favorece a troca dos mesmos no desenvolvimento do grupo.
No desenvolvimento desta estratégia os alunos ressaltam que devem respeitar as
opiniões e diferenças, saber ouvir e tentar compreender o que o outro pensa
sobre as coisas, receber as críticas e tentar refletir sobre elas, poder rever
a sua opinião quando o outro apresenta uma argumentação, mostrar para o outro
do grupo como pensa através de suas atitudes, aprender a negociar como
estratégia para buscar construir consensos.
Os alunos relatam nos discursos que não foi fácil o começo desta atividade, ou
seja, aprender a enfrentarem os conflitos, saber entender aqueles que tinham
dificuldade de se expressarem no grupo ou os que não queriam participar, pois
vinham de um processo de seleção do vestibular, individualista e competitivo, e
começar a trabalhar em grupo, tudo isso exigiu uma fase muito grande de
adaptação.
Os alunos reconhecem que não só eles tiveram dificuldades em lidar com os
conflitos, pois também os docentes a tinham e, no caso, estes deveriam ser o
elemento estratégico para ajudar os alunos a aprenderem a trabalhar com os
problemas que aparecessem.
Dessa forma, as dificuldades acabam se estendendo também na compreensão de como
poderiam ser encaminhados os problemas nos cenários de ensino-aprendizagem.
Um dos empecilhos que contribuíram para que os conflitos não fossem trabalhados
adequadamente com os alunos, de forma que os mesmos pudessem enfrentar o que
estava acontecendo, foi a exigüidade do tempo para que se discutissem os
problemas e se tentasse trabalhar as estratégias que tinham sido pensadas como
intervenção. A verdade é que tanto os alunos como os docentes necessitam de um
intervalo maior de tempo para que se coloquem em prática as propostas de
solução e que se tenha tempo para avaliá-las conforme o encaminhamento, ou
mesmo haver a oportunidade para que se pense em outras estratégias, ao se
considerar que as que foram pensadas num primeiro momento não tenham sido
suficientes ou adequadas. Temos que considerar novamente que a inabilidade dos
docentes para lidar com os conflitos também pode contribuir para que o grupo
não possa ter sucesso desejado no enfrentamento do problema.
Nas atividades grupais, estamos expondo as idéias, analisando as situações que
ocorrem no cotidiano dos cenários de ensino-aprendizagem, evidenciando
contradições e conflitos existentes neste contexto, através das diversas visões
sobre o mundo.
No plano social, é ato pedagógico desvelar as contradições
existentes, evidenciá-las com vistas à sua superação. O educador,
nesse sentido, não é o que cria as contradições e os conflitos. Ele
apenas os revela, isto é, tira os homens da inconsciência. Educar
passa a ser (nesta visão) essencialmente conscientizar. Conscientizar
sobre o nada? Não. Sobre a realidade social e individual do educando.
Formar a consciência crítica de si mesmo e da sociedade(19:70).
O professor tem, portanto, o papel de ajudar o aluno a lidar com os conflitos,
realizando as mediações nas dificuldades surgidas nessas atividades, sabendo
respeitar o aluno e sua opinião, considerando suas diferenças culturais,
dificuldades na aprendizagem, numa relação horizontalizada, rompendo com o
autoritarismo e não com a autoridade enquanto condutor do processo ensino-
aprendizagem de forma intencional.
Os alunos consideram que tanto os professores das disciplinas de área básica
como os docentes enfermeiros têm a referida dificuldade ao ignorarem os
conflitos no transcorrer das atividades das unidades educacionais, considerando
muitas vezes que o mais importante era cumprir o cronograma de atividades, em
vez de trabalhar as possibilidades de superação dos conflitos entre os alunos.
Muitas vezes esta postura motivou mais conflitos nos grupos, prejudicando o
processo ensino-aprendizagem.
Quando não trabalhamos o conflito entre os alunos, estamos na metodologia
tradicional em que o que aparece como problemas pode ser considerado como
desvio da normalidade, ignorando que, no contexto onde vivem as pessoas, há
diversidade de opiniões, modos diferentes de ver o mesmo objeto. Em vez de
ignorarmos essas atitudes e pensamentos, precisamos abrir espaço para o diálogo
e buscar o debate e as possibilidades de convivermos com essas situações, na
busca da superação das contradições.
Quando os docentes não atuavam junto aos alunos para que pudessem encaminhar o
diálogo e a negociação sobre o que estava acontecendo nos grupos, os problemas
ficavam camuflados, reaparecendo novamente em outras ocasiões.
4 Considerações Finais
Os próprios alunos apontam que não existe uma receita que sirva de modelo para
toda e qualquer situação a ser resolvida. Portanto, cada curso construirá o seu
projeto, uma vez que se trata de um processo histórico, dinâmico, construído
pelos sujeitos que estão atuando no contexto do projeto, sabendo de antemão que
podem ou não ocorrer as mudanças e o impacto desejados, a depender das
possibilidades construídas pelos mesmos e da conjuntura em que está sendo
implementado, com determinações políticas, econômicas, culturais e estruturais.
A qualificação do projeto como político fica evidente à medida que cada sujeito
assume uma postura frente ao projeto pensado, atuando de forma consciente ou
não, manifestando sua forma de compreensão do mesmo na prática cotidiana.
Evidenciamos nos discursos dos alunos que participaram da pesquisa algumas
marcas construídas no percurso de sua formação. Revelam que a aprendizagem se
dá num processo com sucessivas aproximações, ao longo da vida, sendo a
graduação o princípio de um processo que se estenderá pela vida profissional.
Os alunos mencionam também que viveram experiências nas quais partilharam os
conhecimentos, os conflitos, reconheceram a necessidade do trabalho em grupo e
em equipe, e que a ação em equipe requer negociação de consensos apresentando
argumentos, estabelecendo limites, considerando o ponto de vista do outro.
Isto possivelmente irá repercutir na sua vida dos futuros profissionais, uma
vez que tiveram a oportunidade de viver e muitas vezes aprender a lidar de
alguma forma com as situações citadas.
Os conflitos existentes nas situações vividas, porém, nem sempre foram
considerados como fazendo parte da dinâmica social e, dessa forma, considerado
como aspecto fundamental da formação.
Muitas vezes não valorizamos o conflito como princípio de uma boa educação,
podendo ser considerado como um desvio ou nem mesmo sendo suportado como
fazendo parte da dinâmica em sociedade.
Percebemos também pela pesquisa a presença da tensão entre o velho e o novo
convivendo no mesmo espaço. Assim, não há artefatos vencedores ou perdedores;
pelo contrário, o projeto torna-se válido à medida que possamos expor suas
contradições e por inclusão podermos superá-las num movimento de mudanças,
incorporando a diversidade de opiniões, a impossibilidade, a diferença e não as
eliminando, numa perspectiva positivista de escolha entre o antigo ou o novo. O
fato de termos a possibilidade da tensão entre os contrários é que mobiliza as
mudanças.
As mudanças têm possibilidade de ocorrer à medida que os profissionais puderem
atuar enquanto sujeitos do processo de atenção à saúde.
No processo de formação crítico-reflexivo ficou claro nos discursos dos alunos
que o professor tem um papel fundamental como provocador e condutor das
atividades para a constituição da visão crítica dos alunos. Além disso, fica
evidente também que a forma como se constrói a inserção dos professores nos
serviços de saúde por meio da parceria também determina o movimento de ação-
reflexão-ação transformadora.
Ao considerarmos que um projeto não é um sistema fechado, pelo contrário pode
estar em constante movimento, podendo provocar mudanças nos cenários, nos
sujeitos, em suas relações e práticas, temos uma perspectiva de futuro que
possibilita a reformulação constante do que se faz e pensa. Dessa forma, os
processos de capacitação, como os de parceria podem ser espaços férteis de
reflexão das práticas, podendo ser re-elaboradas e implementadas tendo como
direcionalidade os referenciais do PPP e os princípios do SUS, na busca da
construção e reconstrução das mesmas ampliando a competência com qualidade
política dos sujeitos no processo.