As organizações de saúde na perspectiva da complexidade dos sistemas de cuidado
ENSAIO
As organizações de saúde na perspectiva da complexidade dos sistemas de cuidado
Health organizations in the perspective of complexity of care system
Las organizaciones de salud en la perspectiva de la complejidad de los sistemas
de cuidado
Alacoque Lorenzini ErdmannI; Ana Lúcia Schaefer Ferreira de MelloII; Betina
Hörner Schlindwein MeirellesIII; Selma Regina de Andrade MarinoIV
IEnfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem, Professora Titular da UFSC.
Pesquisadora CNPq
IIEnfermeira. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da UFSC.
Bolsista CAPES
IIIEnfermeira. Doutora em Enfermagem pela UFSC
IVEnfermeira. Mestre em Administração. Doutoranda do Programa de Pós-graduação
em Enfermagem da UFSC
Correspondência
1 A importância de novos olhares para as organizações da saúde
O ser humano é existência e razão das exigências de cuidar e confortar(1). O
cuidado está presente na organização da vida, coexistindo na natureza, nos seus
diversos domínios, permitindo a sobrevivência das espécies. O cuidado emerge
como o envoltório da vida, sempre necessário e racionalmente procurado, para
que a meta de um bem viver seja alcançada. As escolhas humanas, para suprirem
as necessidades de cuidado, são presididas por um pensamento racional,
maximizador de utilidades, que estimula o aperfeiçoamento, o fazer melhor.
Derivado das relações que são estabelecidas no cotidiano do viver, o cuidado
deve ser compreendido como um processo dinâmico em busca da promoção da vida.
Neste sentido constitui e é constituído pelo campo saúde da vida humana.
A sociedade moderna criou organizações complexas destinadas à produção de
serviços de cuidado à saúde. O cuidado há muito deixou de ser uma atividade
exclusiva da família ou associada a algum papel exercido por um indivíduo.
Processando-se e sendo proporcionado por meio de organizações complexas que o
conformam e o determinam, o cuidado em saúde em alguns momentos é encarado como
mais um produto do mercado, sendo produzido por organizações nem sempre
estruturadas para a promoção da vida.
Na perspectiva do "melhor compreender para melhor agir", Chaves(2) destaca a
importância da "necessidade de desenvolver novos marcos conceituais e
abordagens que nos permitam compreender o mundo em que vivemos e situar dentro
dele o setor saúde"(2:1). Por este caminho, procuramos explorar o tema do
cuidado através das organizações da saúde, numa dimensão teórico-filosófica,
capaz de auxiliar a compreensão deste fenômeno, numa visão apoiada nas Teorias
dos Sistemas e da Complexidade.
O cuidado está associado ao processo de viver e se materializa em relações
complexas entre os seres e entre estes e os ambientes organizacional,
institucional e natural. A meta viver mais, saudável e feliz, inerente à
condição humana, parece ser uma função das práticas de cuidado que se
estabelecem em vários campos, especialmente no campo da saúde, incluindo suas
organizações. Ao almejar continuados ganhos em relação ao processo de viver
mais e feliz, a sociedade parece debruçar-se sobre a melhoria contínua do
cuidado como estratégia para a promoção da saúde, buscando construir
organizações capazes de operar a complexidade dos sistemas de cuidado.
A incongruência de dimensões não ambivalentes e complementares: teoria/
concreto, dever-ser/é, abstrato/real, subjetividade/objetividade, traz à tona
alguns questionamentos sobre a atual prática do cuidado nas organizações de
saúde. Parece-nos oportuno e conveniente então desenvolver uma dimensão
teórico-referencial que direcione as ações continuamente para o melhor fazer.
Esta tarefa é desafiadora se forem considerados todos os aspectos particulares
de como cada ser humano vê e reage ao seu mundo; e de como cada organização de
saúde, seja empresarial, do terceiro setor e mesmo pública, é concebida,
compreendida e gerenciada.
A construção de novas, diferentes e mais refinadas práticas de cuidado,
pressupõe também um olhar novo, diferente e refinado para as organizações de
saúde e para o mundo que as rodeia e com o qual está em constante interação.
O objetivo deste ensaio é introduzir e interpretar o tema da complexidade no
repensar das práticas de cuidado no contexto das organizações de saúde e da
Enfermagem na perspectiva dos sistemas de cuidado, suas estruturas e
propriedades.
Bauer(3) reivindica um permanente questionamento do momento vivido pelas
organizações, afirmando a necessidade destas conviverem simultaneamente com a
ordem e a desordem. Toda organização precisa ao mesmo tempo de continuidade e
de mudança, de tradição e de inovação, de ser e de devir. As organizações são o
resultado da própria forma de pensar e interagir das pessoas nelas inseridas e,
por isso, somente uma modificação profunda nas formas de pensamento/interação é
que poderia ser capaz de transformar políticas e práticas enraizadas(4).
Especificamente nas organizações de saúde, a mudança deriva da necessidade de
comprovação de resultados eficazes e efetivos, da necessidade de demonstração
de eficiência (relação custo-benefício), e também porque valores intangíveis
constituem motivações para um melhor fazer. Serão os valores, a visão e a
missão, efetivamente praticados pela organização, que darão conteúdo ético de
responsabilidade organizacional face à promoção da saúde e da vida.
As organizações são vistas como representações do mundo real ao produzirem bens
e serviços, constituindo um universo onde reina a racionalidade instrumental. A
compreensão da organização como estrutura social impõe o reconhecimento da
complexidade que envolve os processos de mudança, tornando a sua dimensão de
racional apenas uma das faces do processo. Pouca atenção tem sido dada à
compreensão dos processos organizacionais como expressão de ambigüidades e
incertezas, advindas de seu caráter humano e social(5). Sá(6) considera
necessário lançar um olhar interdisciplinar sobre a dinâmica social
contemporânea, tanto quanto sobre a especificidade do funcionamento das
organizações de saúde, focalizando o papel dos processos subjetivos e
intersubjetivos nesta dinâmica.
O reconhecimento da contradição na realidade revela os limites da racionalidade
lógica clássica e a complexidade do real. Ao não possibilitar a abertura para a
compreensão do complexo, torna-se um instrumento a serviço de uma
"inteligibilidade utilitária", própria da racionalidade instrumental,
ultrapassando e desconsiderando o incerto e o ambíguo, como se necessário fosse
produzir sempre um diagnóstico preciso. Segundo Morin(7)pode-se afirmar que
toda introdução da contradição ou da incerteza pode transformar-se em ganho de
complexidade.
Reconhecer o fim das certezas e a presença da contradição exige uma maior
profundidade no exame do setor saúde e por conseqüência um olhar proveniente do
trabalho de diferentes disciplinas e setores da sociedade. Uma visão
unidimensional tende a deformar nossa visão de mundo e para corrigir essa
deformação deve-se sair do setor de origem, olhá-lo de fora desde muitos
ângulos e analisá-lo em suas várias dimensões(2). A análise das múltiplas
dimensões do setor saúde, presentes e expressas por meio das suas organizações,
vistas operando, condicionando, moldando sistemas de cuidado, é reveladora da
extrema complexidade do setor cuja compreensão requer o "pensamento complexo"
(8). A tarefa do pensamento complexo é saber tratar as contradições, pois não
se fecha na disjunção e necessita muitas vezes da dialógica(7). E é realmente
esta dialógica que se vê funcionar por toda parte onde há complexidade,
especialmente nas organizações que lidam com a saúde das pessoas. Rever e
redirecionar os esquemas racionais-lógicos permitindo a abertura para a
complexidade torna-se imperativo se queremos o benefício de ações
transformadoras nas organizações de saúde.
2 Os sistemas complexos e as organizações de saúde
O pensamento complexo traz consigo uma nova maneira de conceber a ação humana e
de compreender a condição humana sob diferentes perspectivas, de modo que sejam
eliminados dois grandes obstáculos: o egocentrismo e o etnocentrismo. O
complexo é um tecido de constituintes heterogêneos, de eventos/acontecimentos,
de ações e reações e de determinismos e acasos, que inclui o ambíguo, o
incerto, o contraditório. Opõe-se à redução, à abstração e à disjunção,
princípios simplificadores oriundos de Descartes e Popper(7), propondo a
existência da contradição na unidade _ o princípio dialógico; a relação espiral
da causa e efeito, em que uma produz o outro e vice-versa _ o princípio da
recursividade organizacional; e a existência do todo em distintas perspectivas
_ o princípio holográfico. Contudo, convém lembrar que o complexo não significa
o completo, nem tão pouco significa eliminar o simples. Apenas rechaça o
pensamento simplificador, que concebe um sujeito isolado e um objeto concluído,
quando sujeito e objeto coexistem e interagem na realidade(8).
A aplicação útil e necessária do pensamento complexono campo dos sistemas
sociais encerra a possibilidade de contextualizar o conhecimento, incluindo os
riscos e as incertezas como algo inerente à realidade e à condição humana,
derivados de qualquer processo de tomada de decisão.
Os sistemas sociais são aqueles "cujo componente central envolve algum tipo de
comunicação com sentido entre os seres humanos"(9:13), e que adotam por unidade
resolutiva a complexidade do mundo e sua ação entrópica(9). O cerne dos
sistemas sociais consiste na redução da complexidade, de modo a oferecer ao
homem uma forma de vida mais sensata.
O aprofundamento teórico recente no conteúdo epistemológico dos sistemas sócio-
culturais atualiza a concepção de sistemas sociais com noções de autopoiese(9)
e de auto-referência(10). Os sistemas sociais autopoiéticos e auto-referentes
podem ser entendidos como uma classe particular de unidades dinâmicas,
operacionalmente fechadas, compostas por redes de produção de componentes, com
limites e interações entre elas, que se referem a si mesmas, tanto na
constituição de seus elementos, quanto em suas operações fundamentais(9).São
sistemas que "produzem e reproduzem seus próprios elementos, dos quais são
constituídos [...], produzindo constantemente sua própria constituição"(10:16).
Entender sistema como o "mediador entre a extrema complexidade do mundo e a
pequena capacidade do homem em assimilar as múltiplas formas de vivência"(10:
12), exige-nos reconhecer a existência da imprevisibilidade e da ambigüidade,
dado que o comportamento em sistemas "não é determinístico, nem probabilístico,
mas caótico"(10:88).
Ultrapassar e transgredir a concepção harmoniosa de sistema, enquanto um
conjunto de elementos coordenados para o alcance de resultados, significa
romper com a noção de linearidade causal, da distinção entre o todo e partes,
passando para uma distinção de sistema e ambiente, na qual este último não é
apenas um condicionante da construção do sistema, mas um fator constituinte
dessa construção(9). Nesse sentido, compreender sistema de saúde na perspectiva
da complexidade significa reconhecer que este sistema produz e reproduz seus
próprios elementos e prossegue produzindo sua própria constituição. A
multidimensionalidade e a inter e transdisciplinaridade, constituintes do
sistema de saúde, envolvem tantos elementos (aqui incluídos os seres humanos),
quantos são os componentes do sistema, tornando-o intangível, dialógico,
holográfico.
Denomina-se Saúde a complexidade gerada pelas interações entre danos ambientais
e ecológicos, assim como os danos físicos, mentais, sociais ou outros(11).
Chaves(2)argumenta que saúde e doença são abstrações necessárias para descrever
diferentes graus de sucesso na interação do indivíduo com o meio que o cerca e
na dinâmica interna de seu próprio corpo. Como uma emergência do complexo,
constituído por indivíduo/sociedade/ambiente, a saúde é, portanto, uma
totalidade, na qual a análise permite oferecer o conhecimento dos componentes
das relações, porém sem alcançar a plena inteligibilidade. Assim, falar de
sistema de saúde é falar da multidimensionalidade quer do próprio setor, que de
sua inter-relação com os demais setores da sociedade, que têm impacto direto ou
indireto no processo saúde-enfermidade. As dimensões ética, ecológica,
epidemiológica, estratégica, educacional, transcendental, econômica e política
e psico-sócio-cultural do setor saúde(2), embora simplificações da realidade,
nos mostram a amplitude das conexões e interconexões que se realizam dentro e
fora do sistema. Se entendermos que estas e outras dimensões são também
componentes de outros sistemas que interagem com o sistema de saúde, tais como
o sistema agrícola-alimentar; o sistema jurídico-penal, o sistema ambiental, o
sistema de governo, o sistema educacional, e assim por diante, articula-se uma
ampla rede de relações que, para pretender sua inteligibilidade, é
imprescindível a contextualização e a historicidade.
O sistema de saúde, na condição de sistema sócio-cultural, é constituído também
por organizações, ou seja, por unidades sociais, com objetivos específicos,
sujeitas a instabilidades, perturbações, contradições, incertezas, etc. A
inserção das organizações numa realidade social delineia uma configuração
sistêmica, na qual o ambiente é fortemente considerado.
Bauer(3)utiliza conceitos da complexidade e do caos na proposição de uma nova
teoria das organizações, postulando que estas são compostas pelas interações
entre seus membros, em vez de pelos seus membros. Desta, segundo o autor,
derivam outras três, quais sejam, a de que "as estruturas são emergentes, em
vez de planejadas e produzidas; a informação é fundamentalmente livre, em vez
de controlada; e a ordem é criada principalmente a partir da informação, em vez
de pelas estruturas"(3:239). Esta concepção admite, portanto, a legitimação e o
diálogo com a incerteza; a mudança; o fluxo; a cooperação; e a convivência com
o ambiente. O autor considera que as transformações na sociedade estão se
refletindo em transformações nas organizações e aplica os conceitos de
autopoiese e de auto-organização ou auto-referência, importantes diante dos
atuais ambientes de turbulência e instabilidade. A partir das organizações de
saúde torna-se possível compreender o contexto e a singularidade da produção e
reprodução das interações contidas no sistema de saúde. É nas organizações de
saúde, sejam públicas ou privadas, que se processam as intenções e as ações que
se propõem a promover, prevenir, proteger, recuperar, reabilitar as interações
favoráveis ou prejudiciais resultantes do complexo indivíduo/sociedade/
ambiente.
O conceito canadense de "campo da saúde"(12) introduziu o pensamento sistêmico
nesta área na década de 70, sendo precursor dos avanços sobre promoção da
saúde. Ofereceu uma nova visão da relação saúde-enfermidade, nos seus processos
psico-sócio-biológicos, com a inclusão de vários outros elementos relacionados
ao ambiente, ao estilo de vida, à biologia humana e à organização dos serviços
de saúde. Podemos considerá-lo um outro modo de expressar a
multidimensionalidade da saúde, na qual as organizações e os serviços de saúde
contribuem com uma pequena parcela na interação, na produção e reprodução dos
elementos constituintes. Desse modo, os diferentes níveis de complexificação
das ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação, desenvolvidos nos
serviços de saúde e prestados por meio das organizações de saúde -
ambulatoriais, hospitalares, de apoio diagnóstico e terapêutico, de ensino e
pesquisa, da vigilância em saúde, (incluídas a sanitária, epidemiológica e
ambiental), sejam públicas ou privadas, governamentais ou não, incluem-se de
modo particular na ampla rede do sistema de saúde e do sistema de cuidados.
3 O pensamento complexo na ordem das estruturas e propriedades dos sistemas de
cuidado na saúde e na Enfermagem
O pensamento complexo surge como possibilidade para a visualização de um
sistema de cuidado, perpassando as noções de redes e suas interconexões, de
sistemas complexos nas suas estruturas e propriedades, e dos movimentos de
inter-retroações nos espaços organizacionais e nos seus possíveis processos
auto-organizadores.
A noção de sistemas de cuidado à saúde está presente na literatura na revelação
do cuidado humano como práticas de saúde. Quase todas as principais teorias de
Enfermagem sustentam-se na noção de sistemas, evoluindo de sistemas
funcionalistas para organicistas e mais recentemente, organizacionistas,
apoiadas em sistemas complexos.
O cuidado assim pode ser visto como um processo de relações, interações e
associações entre os seres, sendo parte organizador do sistema de saúde, parte
organizador do sistema de cuidados, co-organizando-se junto aos demais sistemas
sociais(13:131).
Esta noção de organização do cuidado como movimentos que estruturam redes de
ações e atitudes que envolvem seres para promover a vida, o sobreviver e talvez
o melhor viver, pode ser olhada como sistema de cuidado. Nesse sistema há
trocas, coexistem seres humanos e sistemas de idéias que se alimentam e se
auto-organizam a partir dos mecanismos de sobrevivência dos sistemas sociais e
sistema natureza.
Assim, o sistema de cuidados em saúde se configura por movimentos/ ondulações
de relações, interações e associações em estruturas e propriedades de processos
auto-eco-organizadores de dimensões variadas de cuidado. Estas são desde o
cuidar de si, de si junto com o outro, de sentir o sistema pessoal processar o
cuidado do corpo por si próprio, de ser/estar no sistema de relações múltiplas
de cuidado até a dimensão de cuidado com a natureza. Integra-se ainda o sistema
de cuidados em saúde com os demais sistemas sociais/naturais, fortalecendo o
sentimento de pertença, aproximando os seres na busca de melhor sobrevivência/
vida/civilidade humana(13).
Geus(14) identificou o conservadorismo financeiro, a flexibidade, a
adaptabilidade e a aprendizagem organizacional como fatores determinantes da
longevidade de organizações. Isto revela que a sobrevivência organizacional
parece estar associada a um modo de interagir destas organizações com seu
ambiente, onde as trocas intra, inter, trans e extra sistemas, privilegiam uma
arquitetura organizacional cujos contornos, dados por seus limites e
determinantes, são temporários, situacionais ou contingenciais, jamais
redutíveis a uma dimensão única.
A complexidade das relações de trabalho para compor e manter uma organização de
saúde faz pensar mais em uma arborescência com ramificações complexas e efeitos
aleatórios, incertos e indeterminados, não dando oportunidade para se
visualizar a multiplicidade e a amplitude de espaços que estão sendo ocupados.
No espaço específico do trabalho do cuidar da saúde humana, os territórios da
socialidade, o prazer de viver, parecem surgir das trocas pelas diferenças no
integrar/diferenciar, das buscas por novos momentos do constante processo auto-
organizador da vida, de vida vivida.
Todavia, no espaço político, palco da aparência da ação e do discurso nestas
organizações do cuidado, estão presentes os espaços de interesses, vontades,
conveniências, oportunidades e necessidades.
Na dança da ocupação de espaços, os de poder/propriedade/domínio e os do viver
em solidariedade, o pode e o deve enriquece o diálogo, onde mulheres e homens,
nas suas diferenças convivem a harmonia conflitual, a busca da igualdade,
flexibilizando as relações inter-transpessoais pela simultaneidade e
incompletude do diferenciar/integrar.
As organizações no sistema de cuidado nas quais as articulações, interações e
associações conferem espaços ainda dependentes do finalismo/funcionalidade/
formalismo, mostram uma certa ordem na estrutura ou segmentos do sistema. Esta
ordem configura uma disposição relacional, geralmente hierarquizada, que acaba
sempre acontecendo em níveis, pois a igualdade perfeita do lado a lado exclui a
diferença, não oxigenando o processo auto-organizador do sistema. Assim os
acasos, as articulações, as interações e associações encarregando-se da
complexidade dos sistemas, mostram a flexibilidade e a complementariedade
necessárias à criatividade e à inovação nos processos auto-organizadores das
múltiplas disposições dos segmentos da organização.
Com base em Morin(15),os limites na ordem da distinção/disjunção e união/
redução balançam entre a complexidade maior possível de diferenciação/distinção
e o menos complexo possível do não variado, certo, determinado, redutível à sua
finalidade. Assim, é na procura da simplicidade elementar que se chega à
complexidade fundamental; as estratégias cognitivas não podem considerar o
simples em si mesmo ou o complexo em si mesmo e sim lateralizar o pensamento
pela diferença.
A abertura para a complementaridade, parceria, lateralidade, pluralidade,
heterogeneidade e flexibilidade levam à ampliação dos limites individuais e
grupais. Nem um e nem outro, nem indivíduos e nem grupos e nem mesmo as suas
somas e sim muito mais, podem ser o caminho para a configuração de relações
únicas e peculiares de um sistema organizacional de cuidado.
A horizontalidade nas relações pessoais e a flexibilidade da estrutura e nas
operações possibilitam que as subjetividades e objetividades dos cuidadores se
sintonizem nas combinações de ações/funções em espaços, momentos, contingências
do gerenciar a complexidade organizacional. Esta gerência deve estimular um
acontecer ou viver o mais agradável possível, enquanto dure o prazer de estar
junto, onde os limites não causem desconfortos, ou pelo menos não impeçam as
trocas no que é possível ser reduzido ao simples ou no que se apresenta em
múltiplas formas, indo além da sintonia visualizada, percebida ou sentida.
As relações, interações e associações dos movimentos nos sistemas de cuidados,
nas suas estruturas e propriedades, permeiam elementos como conhecimentos e
habilidades técnico-científicas, informações ou idéias ou intuições,
sentimentos e sensações, escolhas de insumos materiais e tecnológicos,
dimensões espaço-temporais. Ainda permeiam outros elementos que ultrapassam as
possibilidades de apreensão e descrição quando olhados pela compreensão da
organização da natureza, da vida e das formas de viver mais saudável.
4 A possibilidade de ir além do instituído: o abrir-se para novos tempos/
momentos/concepções...
Nas práticas profissionais em saúde, evidencia-se que grande parte dos
problemas de saúde dos usuários do sistema público apresenta-se em inter-
relação com as condições de acesso aos bens e serviços, determinados e
produzidos pela interconexão de diversos fatores, e que desta forma exige uma
multiplicidade de abordagens e definições, que os profissionais muitas vezes
não têm condições de atender. Enfrentamos na prática do cuidado o desafio de
promover a saúde, compreendendo as relações entre sujeitos, seus saberes, suas
condições e projetos, o que sem dúvida é uma tarefa complexa diante das nossas
limitações.
O enfoque na promoção da saúde ainda é restrito em nossas práticas de cuidado,
como também é pequena a capacidade de resposta e responsabilidade dos sistemas
sociais, das organizações e dos seres humanos no sentido de processarem
mudanças frente à realidade de saúde do país. Torna-se relevante o
fortalecimento de ações interdisciplinares e intersetoriais no planejamento e
realização das ações, com respeito aos direitos humanos, individuais e sociais,
para mudanças nas práticas de cuidado à saúde.
A reflexão crítica a respeito de práticas saudáveis de viver, através da
dialogicidade, com a abertura para a complexidade, traz uma nova compreensão da
questão e possibilita a emergência de um novo olhar para a promoção da saúde.
Somente este entendimento e compreensão possibilitarão decisões pessoais,
sociais e políticas mais eficazes e precisas diante dos emergentes e complexos
problemas de saúde. Compreender que o conhecer e o interpretar a realidade
exercem importância fundamental no sentido de construção do mundo que se
deseja. Também, a discussão sobre o presente e o futuro da situação de saúde
deve passar por uma reflexão epistemológica, levando em conta fatores como o
desenvolvimento das ciências e seus reflexos na sociedade como um todo(16).
A concepção de saúde com um enfoque mais amplo, como direito humano
fundamental, que exige a ação e envolvimento dos diversos sistemas da
sociedade, passa a considerar como essencial a organização dos sistemas de
cuidado em saúde. O entendimento de saúde como um conceito positivo envolve
além das capacidades físicas, também recursos pessoais, sociais e ambientais
para o desenvolvimento e melhoria da qualidade de vida. Exige que os indivíduos
e organizações saibam identificar suas aspirações, satisfazer suas necessidades
e modificar favoravelmente o meio ambiente no qual vivem e convivem. Assim, a
promoção da saúde como um recurso aplicável à vida cotidiana, num processo
complexo, interconecto, contínuo e dinâmico, permeia as organizações de saúde,
quando considerada a perspectiva de melhores práticas em saúde.
Neste sentido, a discussão a respeito da atual saúde pública na sociedade
brasileira, que mesmo diante dos avanços decorrentes das determinações da
Constituição Federal e da conseqüente construção do Sistema Único de Saúde, não
tem acompanhado as necessidades de saúde da população. Convivemos com um
sistema de saúde, em que o setor público é insuficiente e o setor privado
dirigido a poucos, ainda voltados eminentemente aos aspectos curativos e
individuais, com organizações incapazes de operar a complexidade do cuidado.
Esta abrangência nos dirige a uma reformulação das práticas sanitárias e suas
concepções.
Temos o desafio de um novo paradigma sanitário em construção, como um corpo
científico no qual se produzem saberes e práticas que envolvem diferentes
sistemas sociais e disciplinas, buscando a horizontalidade nas decisões,
fazendo com que as organizações de saúde voltem-se às necessidades das
comunidades e aos conceitos de qualidade de vida e promoção da saúde da
coletividade.
Cientes de que a promoção da saúde e o atendimento às necessidades de cuidado à
saúde da população extrapolam o contexto da saúde, temos ainda mais este
desafio a enfrentar em nossas práticas, considerando que a responsabilidade é
coletiva.
Assim, o pensamento complexo, que considera a unidade na diversidade, surge
como possibilidade para um sistema de cuidados com suas redes e interconexões,
com estruturas complexas e retroações dos sistemas organizacionais. Na
organização do cuidado em redes sociais, com ações intersetoriais, rompendo
fronteiras, atendendo a demanda por trocas e intercâmbios nas práticas de
cuidado em saúde significa, também, chamar para o debate os diversos grupos
sociais e com eles construir projetos coletivos que caminhem em direção de uma
sociedade mais justa. Num mundo cada vez mais integrado, é urgente romper
outras fronteiras, aproximando visões de mundo, estreitando saberes,
intersectando valores e culturas as mais díspares possíveis. Entendemos que
desta forma poderemos alcançar o tão almejado convívio solidário e plural, em
que o respeito às diferenças sobressaia como o norte de todas nossas ações e
práticas(17).
Diante da complexidade da realidade, é esperado o avanço no sentido de
compreender formas de agir que possam novamente religar os conhecimentos, o
contexto e a singularidade das interações, promovendo uma ação transformadora
das organizações de saúde que considere as ambigüidades, as incertezas e a
dinâmica social contemporânea. Tais condições irão contribuir para um viver
mais saudável aos indivíduos que da sociedade são produtos e produtores e
potencializar os diversos sistemas e disciplinas nas suas interconexões, afim
de melhorar as condições de saúde e de vida da população.