A reforma psiquiátrica no Distrito Federal
PESQUISA
1 Introdução
A reforma psiquiátrica tem como meta importante a reorganização dos hospitais
psiquiátricos, substituindo a prática assistencial do modelo clínico-biológico,
hospitalocêntrico, de tradição asilar e segregadora do doente mental, para uma
cultura de reabilitação do usuário por meio da construção dos serviços
substitutivos voltados para a humanização do atendimento. Assim, para que essa
mudança ocorra, torna-se fundamental a participação dos profissionais, a ênfase
no trabalho em equipe, multiprofissional e interdisciplinar surge como um
espaço a ser construído para a efetivação de um modelo de assistência orientado
para a melhoria da qualidade da atenção à saúde, a garantia de acessibilidade
aos serviços e a maior resolubilidade das ações de saúde(1, 2).
No Distrito Federal, o Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) ocupa
historicamente uma posição importante no sistema de saúde mental, pois funciona
como hospital referência especializado em atendimento psiquiátrico,
centralizando o maior número de atendimentos do DF e região do Entorno, em
cerca de 80%, e, ainda, a centralização de emissão das Guias de autorização de
internação hospital.
O HSVP, nos últimos anos, mais intensamente, a partir da década de 1990,
conduziu e/ou sofreu modificações que influenciaram na oferta de atendimento
dos serviços de saúde mental, sob a justificativa de avançar na reforma
psiquiátrica. O atendimento do usuário foi alterado, com inserção de serviços
tais como atendimento de grupo de pacientes em uso de medicação contínua,
pacientes alccolistas, grupo operativo, hospital-dia, oficinas de capacitação,
equipes comunitárias, enfermaria de crise, acolhimento, além do Centro de
Atenção Psicossocial - CAPS. Algumas dessas iniciativas permaneceram, enquanto
outras tiveram um tempo de desenvolvimento mais intenso e dinâmico para, em
seguida, registrar uma retração ou uma descaracterização no seu
desenvolvimento.
Nesse processo de modificações, a fase de maior intensificação de medidas
visando à transformação da assistência à saúde mental ocorreu concomitante à
mudança de governo, em 1995, período em que se implementou um conjunto de ações
voltadas para a concretização dos princípios da Reforma Psiquiátrica, como
também o SÚS, dentre outras iniciativas.
Com a mudança da política em 1999, ocorre no âmbito da saúde uma reestruturação
da esfera administrativo-burocrática da Secretaria de Saúde e dos programas
assistenciais. As estratégias adotadas na saúde mental levaram a uma
descontinuidade do Plano Diretor da Saúde Mental, evidenciando-se dificuldades
dos profissionais e usuários em confirmar a adesão às propostas de ruptura e
superação de saberes e práticas burocratizados e institucionalizados.
Não houve ainda, nessa atual gestão político-administrativa da Secretaria de
Saúde do DF, na área de saúde mental, a oferta de serviços substitutivos como a
criação de CAPS, lares abrigados, leitos em Hospitais gerais, Centro de
Convivência e outras modalidades de atenção na comunidade.
2 Objetivos
Estabelecemos como objetivo apreender a conformação das práticas institucionais
de saúde mental do HSVP e as suas determinações sociais ocorridas no período de
1985 até 2001. Buscando reconstituir de forma crítica como a instituição se
organizou para lidar com a loucura e o doente mental, bem como os aspectos
envolvidos na implantação da reforma psiquiátrica e as possíveis implicações
dela para as práticas de cuidado com o usuário de assistência mental, a partir
do discurso dos atores institucionais.
3 Percurso metodológico
Trata-se de um estudo qualitativo, de natureza histórico-estrutural, por meio
da metodologia do estudo de caso. Para estudar as práticas institucionais
desenvolvidas no HSVP. Buscou-se o apoio de Albuquerque(3) que define três
categorias para a análise da prática institucional, objeto institucional,
âmbito institucional e atores institucionais.
O objeto institucional é material, como os tipos de recursos, como um sistema
de meios - que por elas são apropriados e transformados pela ação
institucional; O âmbito institucional é definido pelas relações e práticas
sociais que sustentam o objeto institucional, e não em função de suas
fronteiras materiais. O objeto, caracterizado como imaterial, impalpável,
permite a desapropriação e a tendência da instituição em negar os limites de
seu objeto, ampliando seu âmbito de ação, a expensas da ação de outras
instituições; Os atores institucionais são o elemento estruturador para a
análise institucional, uma vez que a instituição só existe "na prática dos
atores concretos que a constituem praticando-a (...) prática que consiste em
intervir nas relações sociais, submetidas à soberania da instituição"(3:72).
Destaca-se que, embora não seja objetivo deste estudo realizar análise
institucional, esses elementos foram importantes para se compreender as
práticas institucionais. Assim, buscou-se a partir da análise da fala dos
sujeitos fazer a sua caracterização como modo asilar ou psicossocial(4).
O campo de estudo foi o HSVP, que se apresenta como um complexo hospitalar
especializado, localizado em Taguatinga, cidade administrativa do DF, único
hospital psiquiátrico público que integra a rede de serviços do Estado,
constituído por diversos serviços: Emergência, Internação, Hospital-dia, CAPS,
integrado pelo Ambulatório e Oficinas de produção.
O projeto de pesquisa foi autorização pela instituição e submetido ao Comitê de
Ética em Pesquisa, da Secretaria de Saúde do DF. A coleta de dados foi
realizada no período de maio de 2000 a julho de 2001.
Inicialmente, visando reconstituir a história da instituição a partir da sua
criação como instituição psiquiátrica, foi realizada análise de dados
documentais por meio da consulta de relatórios técnicos, plano de trabalho
anual, regimentos internos, organograma, acesso aos arquivos, no âmbito
institucional, de outros documentos que identificassem o discurso oficial da
Instituição, propósitos e finalidade, e contato com pessoas-chave, que estavam
ocupando cargos administrativos e de chefia dos serviços de internação,
emergência, ambulatório e hospital-dia, para identificação da organização.
Utilizou-se, também, a observação participante não estruturada nos serviços de
emergência, internação, hospital-dia, ambulatório e oficinas do HSVP.
Após obtenção do consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, foram
realizadas entrevistas, com uso de gravador, com duas finalidades.
Primeiramente, buscou-se apreender as referências significativas dos fatos,
correlacionando-as com as práticas assistenciais em saúde mental no âmbito da
instituição, no contexto das políticas de saúde local e nacional. Com esse
objetivo, foram realizadas seis entrevistas abertas, apoiadas na técnica de
história oral, com informantes-chave, coordenadores de Saúde Mental do DF,
trabalhadores para reconstrução histórica da organização da assistência
psiquiátrica no HSVP e da reforma psiquiátrica no DF.
Na seqüência, com o objetivo de coletar subsídio para melhor entendimento das
relações desenvolvidas entre os atores institucionais envolvidos, bem como
delinear as práticas dominantes ou as estratégias de relações de poder naquele
espaço institucional, foi realizada entrevista semi-estruturada com Técnicos de
Saúde - TS (16), Usuários - U (12) e Familiares - F (9), totalizando
37entrevistados. O roteiro de entrevista dos atores institucionais contemplava
questões abertas comuns a eles: dados de identificação; participação/inserção
na área de saúde mental; caracterização do atendimento e tratamento oferecido
na instituição; conhecimento e opinião sobre a proposta de reforma
psiquiátrica; sugestões para efetivação de uma assistência psiquiátrica de
qualidade, e, para o encerramento da entrevista, foi utilizado o critério de
saturação dos conteúdos emergentes nos discursos dos sujeitos.
Para análise dos dados, apoiou-se na abordagem dialética por preservar o valor
heurístico dos dados e estabelecer uma conexão com as relações essenciais do
fenômeno estudado, ou seja, a sua historicidade, indo além da mensagem
manifesta através das representações sociais(5). E para estudar as práticas
institucionais do HSVP, entendidas estas como prática social, estabeleceu-se
como categoria analítica a ideologia, e, como categorias empíricas, a
assistência em saúde mental e a reforma psiquiátrica, com a finalidade de
estabelecer as relações dialéticas entre ambas.
3 Apresentação e discussão dos resultados
A caracterização das práticas institucionais será apresentada contemplando três
aspectos que sobressaíram em relação à organização assistencial. Esses aspectos
se referem à concepção do objeto como o espaço da emergência, à negação da
clientela nas ações de saúde mental e ao retrocesso na implementação da reforma
psiquiátrica no âmbito institucional e no DF após 1999.
3.1 A institucionalização da doença - o espaço da urgência
Verificou-se que o HSVP, desde a sua criação, em 1976, realiza suas atividades
de forma concentrada no hospital, com características do modo asilar de
atenção, perpetuando e cristalizando como o espaço da emergência, ancorado na
dominação do paradigma psiquiátrico e excludente do doente mental. As
representações da instituição, apontadas por vários técnicos de saúde como
centro especializadoque tem como vocação o atendimento de emergência, o
atendimento de urgências, expressam no seu bojo a concepção do objeto como
doença, de um saber científico tradicionalmente racionalista, centrado na
relação doença-cura, problema-solução, predominando na configuração das
práticas de saúde mental instituídas a concepção do modelo clínico-biológico,
essencialmente individual-curativa, e centrada na tríade emergência-
ambulatório-internação, utilizando como recurso principal a medicação.
O paciente entra em crise, vai para o pronto socorro e vai ser medicado, daqui
a pouco ele vai para casa e vai voltar daqui a um tempo (TS - 6).
O papel da urgência para o HSVP é reforçado no âmbito institucional quando
alguns técnicos de saúde ressaltam a importância de se manter essa instituição
e expressam a satisfação em ela ser identificada como referência de um complexo
hospitalar concentrado e especializado em atendimento psiquiátrico para o DF.
Entretanto, mesmo com as tentativas internas de expansão dos serviços, não se
verifica caracterização dos princípios da reforma psiquiátrica, quando se
analisa o conjunto de ações institucionais sob o enfoque do paradigma do modo
psicossocial. Dessa forma, a experiência se mostra isolada, quando não
articulada e integrada com a rede comunitária em saúde mental como uma política
pública.
nós sempre fomos o lugar da urgência, quando a coisa se desarticulava vinha
para cá. Será que cada um não consegue atender a sua urgência, será que as
equipes [das unidades assistenciais] não podem ser trabalhadas nesse sentido?
Isso demanda tempo. (TS - 10).
Outro resultado significativo, quanto à organização e funcionamento dos
serviços internos do HSVP, CAPS e Hospital-dia, internação e emergência, é o
fato de que estes não estão articulados entre si e com os demais serviços,
mostrando-se insuficientes para atender às demandas dos usuários, com
concentração de suas atividades na relação com o usuário e familiar. A
organização das práticas de saúde mental para os serviços Hospital-dia e CAPS
não se caracteriza como substitutivo de superação e transformação do modelo
clínico-biológico, uma vez que não tem conseguido prescindir do hospital
psiquiátrico.
Nos depoimentos dos técnicos de saúde há um reconhecimento de que a ênfase no
modelo clínico não é suficiente para lidar com o usuário da saúde mental.
Ressaltam ainda que, no momento, as condições para o tratamento nesse modo de
assistência estão limitadas e se distanciam das atuais propostas da reforma
psiquiátrica, cuja concepção enfatiza a rede de atenção em saúde mental
comunitária, práticas interdisciplinares e participação ativa dos usuários e
familiares em seu contexto sócio-econômico, estabelecendo uma articulação com a
rede de recursos sociais no processo de transformação.
Fazer medicação, levar o paciente para o banho, mandar escovar os dentes,
qualquer um pode fazer, agora não é só isso que o paciente requer, em
psiquiatria não é só isso não(TS - 11).
O modo de atenção integral à saúde mental se contrapõe ao modo de atenção
concentrado no hospital psiquiátrico, que está ligado na sua trajetória de
institucionalização ao objeto doença/cura, mostrando ser esta instituição
insuficiente para atender à complexidade do processo de adoecimento mental. O
HSVP, organizado nesse complexo hospitalar especializado e concentrando a maior
parcela do atendimento do DF, por si só, mostra-se antagônico quando cotejado
às políticas públicas em saúde mental e do SUS. Esse aspecto da tradição do
HSVP como o lugar da urgência, implicitamente, traz o questionamento também em
relação às outras unidades, contemplando principalmente o papel que vêm
ocupando no sistema de saúde e se elas estão criando mecanismos de intervenção
transformadora na relação com o doente mental.
3.2 A participação da clientela na ação institucional
As relações institucionais dos técnicos de saúde com a clientela têm o efeito
de acentuar ou minimizar os entraves burocráticos, como se ater ou não às
normas e rotinas estabelecidas, ou como elas possibilitam manter o espaço da
escuta e acolhimento para melhor intervenção às necessidades do usuário e
familiar. A formação do vínculo com a instituição é unilateral, segundo
concepções e necessidades próprias identificadas nas falas dos técnicos de
saúde e da clientela, uma vez que não está havendo uma responsabilização no
sentido de se dar continuidade às necessidades de atendimento em sofrimento
psíquico.
A instituição obstaculiza a formação de vínculos em várias ocasiões ao imprimir
ações que reforçam a descontinuidade da assistência, como, por exemplo, uma
distribuição de pessoas em papéis e funções bem definidas, com atividades
previamente determinadas. A rotinização para cumprimento de horários e tarefas
constitui forma de controle sobre o corpo profissional, de uns com os outros e
com a clientela. Configuram um conjunto de procedimentos que se destinam a
conter a demanda dentro dos limites desejados, um esquema de controle de
atendimento que limita o acesso institucional mediante horários e cotas, fila
para consulta, data estipulada para marcação de consulta, prática de
agendamento prévio, critérios de admissão nos serviços e consulta para controle
e acesso aos medicamentos.
Tanto o usuário como o familiar destacam nessa relação a atenção que recebem e
o atendimento às necessidades de internação, consulta e medicamento. A atenção
pode ser expressa sob a forma do atendimento recebido, momento em que passa a
ver a instituição sob o prisma das relações pessoais e não da finalidade
compreendida por ela. [...] cada um faz a sua parte, tem que ter paciência, se
der para atender, bem. Se não der, a gente espera, se não der [...] já fui
embora sem ser atendida (F - 4).
A intenção institucional de negar as necessidades do cliente é constatada
quando não se evidencia qualquer projeto de continuidade da assistência,
ficando esta caracterizada como intervenções imediatistas e de baixa capacidade
resolutiva. A falta de continuidade do atendimento e a despreocupação em formar
vínculos representam a negação do paciente, ficando este sujeito aos rituais de
atendimento, normas, rotinas e horários para o acesso à consulta e a
medicamentos, que ao mesmo tempo em que podem caracterizar uma necessidade de
manutenção da ordem institucional, constituem-se em um ato de violência ao
paciente, a sua negação.
Ao se referirem à situação de descontinuidade da assistência, os profissionais
projetam as dificuldades como sendo externas a eles, mencionando que o que
poderia ser feito dentro de suas competências técnicas tem sido feito. A saúde
não é concebida na perspectiva de processo social. A deficiência da condição
sócio-econômica da grande maioria dos usuários faz com que eles dependam desses
serviços para atendimento, sujeitando-se às filas e regras definidas pela
instituição ou buscando uma resposta rápida, a emergência.
Os técnicos apontam que o interesse maior de participação dos usuários ocorre
pela ociosidade no ambiente familiar e busca de contato social proporcionado no
ambiente das oficinas, transferindo para o espaço hospitalar a única
possibilidade de convívio social. Isso, se reforçado pela instituição,
estabelece outra forma de institucionalização, quando não trabalha a capacidade
de auto-gestão e sociabilidade do paciente, uma vez que as atividades, na
perspectiva do entreter para passar o tempo, em um grau notável de casualidade,
de falta de previsões, de ausência de avaliações podem resultar ou não
terapêutica, uma vez que elas não foram planejadas, coordenadas e avaliadas com
propósitos terapêuticos que possibilitem a construção da cidadania do usuário
(6).
O fato de terem atividades ocupacionais não caracteriza, em si, caminhar no
sentido da reforma, mas sim a finalidade que é dada às atividades realizadas
por meio de desenho, dança, pinturas, poesias, canto e colagem. Essas
atividades, se não são utilizadas com o objetivo de possibilitar uma expressão
de sentido, espaço de criação e expressão de subjetividades, na formação de
identidades e de cidadania, reduzem-se a atividades ocupacionais, rotineiras,
burocratizadas, sem finalidade terapêutica(6).
Observamos no HSVP que a família é tomada como objeto de intervenção, na
concepção do modelo clínico, submetendo-se às normas e rotinas. Sua
participação ocorre em momentos pontuais, quando convocada a prestar
informações, e em momentos terapêuticos, discriminados como atividade regular
na escala dos profissionais do hospital-dia, duas vezes por semana. É convidada
também a participar em momentos de festas, bazares e outros eventos realizados
em datas festivas. Trata-se de uma participação passiva, não se caracterizando
de fato como momentos de sociabilidade.
Na fala dos sujeitos do grupo familiar percebemos que eles podem se sentir
despreparados e em sofrimento para conviver e lidar com as oscilações de
comportamento do seu familiar, decorrentes também do seu processo de
adoecimento. E, ainda, pela discriminação e isolamento a que são submetidos por
seus familiares e pela sociedade, e a dificuldade em buscar e receber ajuda
institucional.
no início foi difícil mesmo aceitar, porque a gente desconhecia a psiquiatria.
E até a gente entender a forma de tratamento, como deve ser, a gente teve
muitas barreiras no início com ela, quando começou a surgir essas coisas dela,
barreiras assim, da gente não ter esclarecimento de fato. O médico dizia o
problema dela é esse, o CID é esse(F - 3).
Esse despreparo pode contribuir para reinternações constantes, necessitando a
família de suporte por parte da instituição para desenvolver atitudes mais
saudáveis para atuar como apoio do seu familiar, buscando propiciar melhor
qualidade de vida. A loucura como estigma continua presente na função social,
servindo como instrumento de classificação, subordinado à noção de ordem.
Em relação ao atendimento e tratamento que é prestado aos usuários, os
familiares na sua maioria consideram que é bom, porque sempre que procuram o
serviço, eles são atendidos, principalmente no serviço de Pronto Socorro, e
também pelo cuidado que o paciente recebe: remédio e alimento.
Eles me atendem bem, às vezes, eu me aborreço com eles, porque tem hora que eu
levo para internar e acham que não devem internar, dão uma injeção e mandam
para casa, como que eu posso com um homenzarrão daquele, mas o atendimento é
bom(D6 - F).
A inserção ampliada da família implica conhecer a proposta do trabalho
institucional. Essa participação de uma forma mais crítica pode resultar na
formação de Associações, dentro de um movimento coletivo, que pode se
caracterizar como uma instância de poder com vistas à mudança para uma
assistência de qualidade e cidadã(7).
3.3 A reestruturação da reforma psiquiátrica, o modo asilar e o modo
psicossocial
Ao falar do processo de reforma psiquiátrica no contexto institucional, a
totalidade dos técnicos remeteu, de uma forma ou de outra, ao período que
antecedeu a gestão técnico-administrativa de 1999. Os entrevistados apontaram
os aspectos positivos e conflitantes na condução do projeto terapêutico,
implementado pela gestão de 1995 a 1998, para estabelecer a caracterização do
atual processo nas práticas de saúde mental, como também, significativos que
apontam o retrocesso no espaço institucional após 1999.
A reforma psiquiátrica que se pretendeu instituir propôs fazer transformações
das práticas assistenciais do modo asilar para o modo psicossocial. Entretanto,
as representações construídas a partir da vivência do desenvolvimento desse
projeto evidenciam os conflitos e contradições em relação às concepções
ideológicas quanto ao saber, as quais conformam as práticas assistenciais
desenvolvidas no HSVP. Isso se verifica com o reconhecimento, pelos técnicos de
saúde, de que tais práticas são insuficientes para o atendimento das
necessidades reais dos pacientes e familiares.
Eu acho que a gente teve um avanço muito bom ao nível da reforma psiquiátrica,
daquilo que era proposto, porque agora a gente deu uma estagnada, eu acho que
teve um recuo (...) Porque a reforma não é desospitalizar, mas é você tratar o
paciente no momento em que ele está precisando(TS - 7).
Esse retrocesso é dimensionado, pela maioria dos técnicos, como transcendendo o
espaço institucional, atrelado ao momento político da saúde no DF que, a partir
de 1999, imprimiu a lógica capitalista de racionalidade de custos financeiros
nas ações de saúde mental e a concepção de reforma psiquiátrica como
desospitalização. Tais medidas têm como impacto negativo o desamparo dos
usuários e familiares.
Isso é evidenciado quando o princípio da desospitalização não vem acompanhado
de estratégias de criação e oferta de serviços substitutivos que façam a
superação da atenção centrada no Hospital Psiquiátrico, cujo objeto é concebido
na determinação biológica. A reforma psiquiátrica reduzida à desospitalização,
sem uma rede de recursos extra-hospitalares para a atenção a pessoas com
sofrimento mental, impõe a estas uma condição de desassistência. Elas tornam-se
os novos pacientes crônicos, que os remetem às reinternações múltiplas por
períodos curtos, fenômeno esse identificado da porta giratória(8).
Outro aspecto associado à falta de continuidade da assistência na comunidade é
a sujeição da pessoa com sofrimento mental a uma situação de abandono e de
pobreza, seja pela insuficiência ou pela falta desses serviços substitutivos,
como também pela falta de uma perspectiva de reinserção social: Os pacientes
estão tudo em casa, sem tratamento, sem controle, sem nada. Então não é falta
de orientação? Aquelas visitas que tinha em casa não têm mais aqui(D 4 - TS).
A desconstrução do aparelho psiquiátrico, na forma proposta por aquela gestão,
teve como eixo norteador o modelo psicossocial, cujo objeto de intervenção é a
pessoa em sofrimento mental e a sua família, como também a profissionalização
dos agentes institucionais. Com o pressuposto de que a sustentação do modelo
clínico ocorria pela hegemonia do saber médico como um dos problemas para a
desconstrução do manicômio, no período de 1995 a 1998, criou-se a Direção
Colegiada, envolvendo a participação de diferentes profissionais. Foram criados
outros recursos assistenciais visando à implementação da proposta da reforma
psiquiátrica, como sala de acolhimento, equipe comunitária, enfermaria de
crise, oficinas de produção na perspectiva da ressocialização, entre outras.
Esses recursos, entretanto, embora avaliados pela grande maioria dos técnicos
como válidos, em face dos princípios da reforma psiquiátrica, se posicionaram
contrários à forma como foi conduzida a implementação pela Direção Colegiada.
Outro aspecto criticado refere-se à fase em que se buscou trabalhar o hospital-
dia como porta de entrada de pacientes em crise, caracterizando o atendimento
de urgência. A idéia em si não foi criticada, mas a forma como as ações foram
implementadas, uma vez que não se considerou a infra-estrutura do local para
comportar cerca de oitenta usuários. Isso foi sentido por eles como fator de
desgaste físico e emocional.
Para um grande número de técnicos, as mudanças introduzidas no período de 1995
a 1998 ensejaram outras mudanças, em termos de seu próprio comportamento, na
forma de ver e estar com os pacientes. Como resultado, eles passaram a fazer
uma avaliação positiva das propostas, uma vez que foram desmistificando e
aprendendo uma nova forma de se relacionar e de ser com os pacientes e com a
equipe de trabalho.
A reforma psiquiátrica não é a reforma só do serviço, acho que é uma reforma na
cabeça, no jeito de tratar, no jeito de ouvir, como a gente falou nas questões
anteriores [...] hoje eu percebo que se tentou uma mudança aqui e no DF (TS-
10).
Consideramos importante o processo de socialização do conhecimento para melhor
desempenho nas intervenções terapêuticas, por permitir maior autonomia e
identificação do profissional nas práticas coletivas de saúde. A mudança de um
paradigma clínico para o modelo psicossocial requer que o profissional saia do
papel complementar das ações médicas, sustentado pelo saber da psiquiatria,
para assumir a responsabilidade das ações no atendimento ao usuário e familiar,
tendo a lógica da saúde mental comunitária como referência. Assim, ele
participa na perspectiva de um profissional crítico, ativo, capacitado para
potencializar os recursos terapêuticos na sua relação com a clientela,
avançando na construção de um projeto terapêutico de inclusão do coletivo, dos
técnicos e da clientela, nas práticas de saúde.
Para os técnicos entrevistados, foi significativo o retrocesso da reforma
psiquiátrica no HSVP e DF, quando da mudança da conjuntura política em 1999.
Para eles, a reforma psiquiátrica no âmbito político e administrativo está
conduzida como desospitalização, imputando um processo de desassistência e
descontinuidade do atendimento aos usuários, uma vez que não houve a criação de
uma rede comunitária em saúde mental.
Outra dificuldade na implantação da reforma psiquiátrica, mencionada por um
número significativo de técnicos, foi o antagonismo que se estabeleceu na
comunicação entre os profissionais. As pessoas são identificadas como sendo ou
a favor, ou contra o movimento da reforma. Esse fato reforça a divisão interna
e a desarticulação do trabalho da equipe profissional, além de interferir na
organização do trabalho.
Há essa divisão interna no próprio hospital, o pessoal que está ligado à
reforma psiquiátrica e o pessoal que desconhece e que não quer conhecer (TS -
13).
Esses argumentos evidenciam que os conflitos ideológicos emergem da tensão
entre o modo asilar e o modo psicossocial, quando se tenta ir além de
estruturas institucionais reformadas. Isso se verifica, principalmente, quando
o debate exige uma nova definição dos papéis profissionais na construção do
paradigma da saúde mental na concepção de saúde coletiva, o que requer
intervenções que transcendam o espaço intra-institucional, considerando a
participação do usuário e familiar em seu contexto sócio-econômico.
A idéia da descontinuidade da proposta assistencial tem como associação direta
as mudanças de governo, da qual decorrem propostas de novas estratégias sem uma
avaliação do impacto das ações desenvolvidas. Tal aspecto mostra que a
assistência à saúde, entre outras, está atrelada ao momento político-econômico
e ao âmbito de governo, que não tem priorizado concretamente a saúde mental
como estratégia política de saúde pública e a saúde como um direito social.
Entretanto, no HSVP, é possível a percepção de processos individuais que
apontam possibilidades de emergência de movimentos de contra-resistência rumo
ao paradigma psicossocial. Eles se referem, porém, à dificuldade em integrar e
consolidar essas atividades no cotidiano, apresentando como justificativa a
falta de liderança da pessoa responsável pela coordenação do projeto
terapêutico, que tem assumido prioritariamente uma administração burocrática,
sem fazer a valorização e aproveitamento das potencialidades dos próprios
recursos humanos existentes.
Na trajetória da organização das práticas de saúde do HSVP, houve avanços
inegáveis, embora pouco significativos no que se refere à transformação do
paradigma asilar, como a implantação do hospital-dia e das oficinas de
produção, além de algumas estratégias para a humanização da assistência como a
ampliação do espaço físico realizado. Assistimos à redução de leitos
psiquiátricos em espaços excludentes da loucura, mas os resultados evidenciam
que os recursos institucionais existentes são insuficientes para atender às
necessidades dos usuários e familiares na perspectiva da reabilitação.
4 Considerações Finais
Na trajetória da organização das práticas de saúde do HSVP, houve avanços
inegáveis, embora pouco significativo no que se refere à transformação do
paradigma asilar, como a implantação do hospital-dia e das oficinas de
produção, além de algumas estratégias para a humanização da assistência como a
ampliação do espaço físico realizado. Assistimos à redução de leitos
psiquiátricos em espaços excludentes da loucura, mas os resultados evidenciam
que os recursos institucionais existentes não são suficientes para atender às
necessidades dos usuários e familiares na perspectiva da reabilitação, conforme
mostram os resultados deste estudo. O hospital mostra-se insuficiente para
absorver as demandas que chegam a ele e, para refreá-las, a instituição usa de
estratégias de contenção, mediante o uso de normas e rotinas rígidas,
redundando na falta de continuidade do atendimento, no não estabelecimento de
vínculos com a sua clientela e na não responsabilização pelos resultados
negativos da instituição, enfim, na institucionalização da doença.
O modo asilar prevalente tem como forças antagônicas as representações que os
sujeitos têm sobre o significado de reforma psiquiátrica, percebidas através
dos conflitos e contradições presentes na instituição enfocada, quanto aos
princípios psicossociais e ao acesso do usuário a uma assistência integral em
saúde mental, práticas de trabalho em equipes interdisciplinares e constituição
de subjetividades. Esse cenário constitui espaço de lutas para novas
representações, construção de possibilidades de acesso às estratégias de
transformações do serviço, pressupondo uma redefinição de conceitos que
norteiam as suas práticas de saúde para ocupar outro papel no espaço
institucional.
Para a superação do hospital psiquiátrico é importante que os atores
institucionais sejam incluídos e se façam incluir como sujeitos ativos no
processo de reflexão e de construção de uma atenção à saúde renovada, por meio
da exploração das possibilidades e potencialidades dos atores envolvidos,
técnicos de saúde, usuários e familiares na sua capacidade de autogestão. É
recomendável que as estratégias de mudança do paradigma psicossocial,
comprometidas com os princípios do SUS, sejam recolocadas no espaço do HSVP por
meio do debate das idéias conceituais entre seus atores, com envolvimento da
participação dos trabalhadores, usuários, família, comunidade, gerentes de
saúde e governantes, na busca do resgate de compromissos para avançar na
construção de um sistema público sanitário e de saúde mental comunitária.