Visita domiciliária: um olhar da enfermagem psiquiátrica
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Visita domiciliária: um olhar da enfermagem psiquiátrica
Home visit - the perspective of the psychiatric nursing
La visita a domicilio - una mirada de la enfermería psiquiátrica
Renata Curi LabateI; Sueli Aparecida Frari GaleraI; Rita de Cássia AvanciII
IEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Professor do Departamento de Enfermagem
Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto -
USP.
IIEnfermeira. Pós graduanda do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e
Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - USP. E-mail do
autor: ravanci@bol.com.br
1 Introdução
Quando foram implantadas as primeiras Escolas de Enfermagem no Brasil, com a
ajuda das enfermeiras norte-americanas, o curriculum tinha um forte conteúdo de
enfermagem de saúde pública que elegia a visita domiciliária como a principal
atividade. Com o deslocamento do domicilio para o hospital como principal local
para tratamento, a prática da visita domiciliária perdeu seu valor
restringindo-se a alguns programas específicos(1).
Atualmente, com as propostas de redução de permanência no hospital, e maior
ênfase na promoção da saúde e tratamento na comunidade a visita domiciliária
volta a ser tema de interesse. Em psiquiatria, até a década de 80 o hospital
psiquiátrico foi o único local de tratamento. A partir desta década, com a
implantação de serviços psiquiátricos na comunidade, a necessidade de realizar
visita domiciliária tornou-se evidente. No momento atual, o ensino de
Enfermagem psiquiátrica está em transformação em consonância com o movimento da
Reforma Psiquiátrica. A qual tem como principal objetivo transformar as
relações que a sociedade, os sujeitos e as instituições estabelecem com a
loucura, com o louco e com a doença(2). Assim, nos últimos anos com o desmonte
dos hospitais psiquiátricos, a visita domiciliária em psiquiatria torna-se
ferramenta essencial.
O Programa de Saúde da Família (PSF) é também uma nova estratégia para
trabalhar a saúde mental na comunidade, apesar de estar vinculado, até o
momento, ao modelo médico. Este modelo poderá ser superado através da mudança
da formação e da conduta dos profissionais, que necessitam reconhecer a
existência de casos psiquiátricos na comunidade e trabalhar, também, na
prevenção(3).
Embora essa prática ainda seja insuficiente, alguns serviços realizam visitas
domiciliares, como por exemplo, o Núcleo de Saúde Mental. O serviço é uma
especialidade da Unidade Básica e Distrital de Saúde do Distrito Oeste de
Ribeirão Preto, responsável pelo atendimento em psiquiatria da região que está
em torno de 130 mil habitantes.
O Núcleo realiza visita domiciliária para pacientes faltosos, por solicitação
médica, quando a história do doente não está clara, ou quando a profissional
suspeita de algum problema no lar.
Por um período de um ano estivemos envolvidos com a visita domiciliária desta
instituição, solicitando-a ou realizando-a para alguns pacientes. O objetivo
deste trabalho é relatar a nossa experiência com a visita domiciliária para
portadores de doença mental, destacando os aspectos: - o Espaço Público e o
Privado da família; - a articulação entre visitadores e os recursos da
comunidade
2 O Espaço Público e o Privado
A expressão "família" foi criada na idade antiga pelos romanos. A família
romana tinha como chefe o pai e como subordinados a mulher e os filhos. Com o
avanço do processo histórico a constituição e os papéis foram se modificando.
Na modernidade a família é chamada nuclear, composta por mãe, pai e filhos.
Com as modificações sociais, o processo de industrialização, a revolução
feminista, a família nuclear foi modificada, as mulheres deixaram seus lares e
foram trabalhar fora de casa. Desta forma a família adquiriu outras formas de
composição e dinâmica de convivência. Porém a idéia de família nuclear, como
modelo ideal ainda permanece.
Dentro da família convivem o espaço público e o privado, sendo o primeiro tudo
que vem a público, e o segundo constitui o espaço em que o grupo divide a
convivência entre seus membros. Ambos os espaços convivem constantemente, pois
dependem um do outro(4). Quando encontramos o paciente e seu familiar na
instituição comunitária temos contato com os aspectos públicos da família.
Porém quando vamos até a casa do doente entramos em contato com o aspecto
privado.
O lar representa o espaço privado da vida familiar. As salas, os quartos e as
demais dependências são os espaços de privacidade, onde os membros estabelecem
as relações mais intimas e procuram refugio na busca da liberdade(4).
Observamos que muitas famílias vivem em condições sociais precárias, tais como
moradias pequenas ou coletivas que transformam o espaço privado em espaço
público. Isto é os locais da moradia são pequenos e superpopulosos dificultando
que as pessoas tenham alguma privacidade. Assim, as questões familiares mais
particulares acabam sendo tratadas no espaço público. Embora esta
característica das moradias populares possam ser entendidas negativamente,
alertamos para as diferenças existentes entre nós profissionais de saúde de
classe média e a clientela da saúde pública(5). Para nós, a rua é um espaço
onde a gente se move, é o espaço do perigo, do assalto, mas para os extratos
mais baixos da sociedade a rua é o espaço onde se dá a socialização das
pessoas. É importante perceber que é outro espaço o qual talvez não possamos
apreender totalmente.
Salientamos ainda, que ocorre uma invasão cultural quando visitamos a família
no seu domicílio(5). E aí reside um grande perigo, pois podemos tomar certos
aspectos, como por exemplo, a falta de privacidade, como "patológico" ou uma
alteração da normalidade, quando é somente um modo de vida diferente.
Em relação às pessoas portadoras de doença mental, observamos que geralmente os
familiares tomam as decisões sobre o local de moradia do doente, tornado-
o vulnerável aos interesses do restante da família sendo que suas preferências
de moradia muitas vezes não são consideradas.
Visitamos uma doente que no início morava com os filhos em três cômodos no
fundo da casa de seus pais. Com o passar do tempo e com as suas recaídas, um
dos cômodos lhe foi retirado e alugado para uma pessoa estranha à família.
Dessa forma observamos a exclusão do doente em seu espaço privado, tornando
esse espaço vulnerável, limitando a liberdade da doente e de seus filhos.
A visita domiciliária possibilita a equipe de saúde à observação do indivíduo
dentro do seu contexto, do seu meio ambiente, condições de habitação, de
higiene, saneamento básico e relações afetivo-social entre os membros da
família(6).
A enfermeira visitadora deve estar consciente da existência desses espaços e
compreender que quando chega à casa de um paciente também estará invadindo o
espaço privado. Por isso a visita domiciliaria deve ser realizada com cuidado e
necessita de um tempo para que se estabeleça uma relação de confiança entre os
visitadores e a família.
A proposta da visita domiciliária se torna essencial, pois o profissional ao
adentrar no espaço privado da família poderá obter maiores informações sobre as
relações familiares e sobre a relação da família com o contexto social de sua
comunidade. Ampliando a compreensão do profissional sobre a família e seu
contexto, aumentando as possibilidades de oferecer uma assistência adequada.
3 A articulação entre visitadores e os recursos da comunidade
Para trabalhar no atendimento domiciliar, o enfermeiro deve ter um senso claro
de seu papel na vida do paciente e ser capaz de articular o tipo de ajuda que
pode ou não ser oferecida. Defrontar-se-á com situações complexas.
As famílias que tem um portador de doença mental entre seus membros apresentam
todos os problemas da vida cotidiana. Porém, a presença da doença mental
freqüentemente agrava estas situações. Uma simples atividade rotineira como
sair de casa para ir ao mercado, atender um telefone, receber visitas podem
torna-se um problema para essas famílias.
A enfermeira visitadora pode contribuir, auxiliando a família a pensar sobre
formas de enfrentar os problemas utilizando os recursos da comunidade. A
possibilidade de realizar esta discussão no âmbito familiar permite
democratizar soluções sobre o que é melhor para o paciente e para os outros
membros da família. Nas discussões é possível envolver o bairro, a comunidade e
os amigos, estimulando o fortalecimento de uma rede de solidariedade. O bairro
aparece assim, como lugar onde se manifesta o engajamento social.
Assim, reconhecemos a necessidade da visitadora conhecer os recursos da
comunidade, estar engajada com eles de modo que a articulação entre a família e
os recursos sejam mais rápidos e eficientes. É importante considerar as
diferenças culturais e de valores que estão presentes na interação enfermeiras
- família e comunidade.
Percebemos que a prática da visita domiciliaria nos coloca frente a inúmeras
dificuldades geradas pela incompatibilidade prática entre o que é definido como
a prática ideal e sua aplicabilidade. Assim, o que é proposto pelas políticas
sociais e de saúde são de difícil operacionalização frente à complexidade da
dinâmica familiar e a desarticulação entre recursos da comunidade e serviços de
saúde.
A negociação, o trabalho interdisciplinar e a participação efetiva da família
são caminhos trilhados por todos aqueles que visam uma melhor qualidade de vida
na sociedade(4). Acreditamos que, apesar das dificuldades, aumentar o
engajamento do profissional com a família e seu contexto social possibilita
melhores chances de oferecermos assistência de qualidade.
4 Considerações finais
A visita domiciliária é um instrumento importante que aproxima a equipe de
saúde mental da família e comunidade. Amplia nossa compreensão sobre o
sofrimento psíquico e suas conseqüências sociais. Permite compartilhar
conhecimentos que contribuirão para condutas terapêuticas adequadas.
A visita domiciliária pode também tornar-se um instrumento de ensino para
estudantes de graduação, ampliando a visão do estudante sobre as possibilidades
de atuação do enfermeiro psiquiátrico. A aproximação do estudante com o
ambiente do doente mental facilita também romper com o estigma associado à
doença mental como algo incapacitante.
A visita domiciliária nos coloca em movimento, saímos do conforto do nosso
local de trabalho para enfrentar as ruas, as comunidades carentes e diferentes
de nosso mundo particular. Sair para visitas exige disposição e consciência da
possibilidade do inesperado, do incomum, das diferentes formas de ser recebido
e aceito no espaço privado da família.