Enfermagem de nível superior no Brasil e vida associativa
HISTÓRIA DA ENFERMAGEM
Enfermagem de nível superior no Brasil e vida associativa
Superior Nursing in Brazil and associative life
Enfermería de nivel superior en Brasil y vida asociativa
Suely de Souza BaptistaI; Ieda de Alencar BarreiraII
IProfessora Visitante do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ,
Riode Janeiro, RJ. Pesquisadora 1 B do CNPq. Membro fundador e pesquisador do
Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras)
IIEx-Professora Titular do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ,
Rio de Janeiro. Pesquisadora 1 A do CNPq. Membro fundador e pesquisador do
Nuphebras
Endereço_para_contato
1. INTRODUÇÃO
O objeto deste estudo é a consolidação dos cursos superiores de enfermagem no
Brasil, ocorrido no bojo de um processo de cientificização da profissão, a
partir do início do século 20, em íntima relação com a Associação Brasileira de
Enfermagem (ABEn).
As lutas pela formação da comunidade científica brasileira e pela constituição
dos seus espaços ocorreram inicialmente fora das universidades, em institutos
independentes, apoiados por centros de pesquisa avançada, localizados no
exterior. A formação de cientistas brasileiros, em outros países ou no Brasil,
mas por pesquisadores estrangeiros, levou à formação de núcleos de pesquisa
nacionais e ao surgimento da figura do cientista em nossa sociedade(1). Essa
foi a origem da comunidade científica no Brasil, cujo marco inaugural pode ser
considerado a criação do Conselho Nacional de Pesquisas atual Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951(2). Deste modo,
além do fato de que a questão da pesquisa só bem mais tarde viria a ser
colocada às universidades, as dificuldades havidas para a enfermagem nelas se
inserir, decorreram dos prejuízos a ela acarretados por uma representação da
profissão como uma extensão do papel tradicional da mulher, bem como por sua
caracterização como "um campo de práticas e de saberes, sem grandes
preocupações teóricas"(3).
Nosso interesse é o de - comentar os nexos históricos existentes entre a
consolidação do ensino de nível superior na enfermagem e a ABEn e - discutir a
contribuição do ensino superior de enfermagem para o desenvolvimento da
profissão.
2. ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA
Trata-se de um estudo de natureza histórico-social, de corte longitudinal. As
fontes primárias utilizadas foram: Site do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Banco de Dados sobre os cursos
de Enfermagem (Nuphebras), Legislação de Enfermagem, Site da ABEn e o livro
Associação Brasileira de Enfermagem: 1926-1976 - documentário, de autoria de
Anayde Corrêa de Carvalho. Fontes secundárias: artigos e livros sobre as
temáticas: História da Enfermagem, História da Educação, Escolas/Cursos de
Enfermagem, Políticas Públicas, História da Mulher. O tratamento dos dados
incluiu análises quantitativas e qualitativas. A classificação dos achados foi
feita a partir das estruturas de relevância apreendidas na ordenação das
informações, bem como pela incidência de ênfase em determinados aspectos da
realidade. As categorias de análise e interpretação emergiram das fontes
secundárias e da teoria do Mundo Social, de Pierre Bourdieu, que estuda os
diferentes espaços sociais, sua configuração e origem, bem como as hierarquias
e as lutas entre os agentes no interior desses espaços. Tomamos como
pressuposto que as configurações apresentadas no mundo social correspondem a
realidades sempre em movimento, cujas determinações são sociais e históricas.
Ao mesmo tempo, os participantes dos diversos campos são atores sociais que
lutam pela realização de seus projetos. A legitimação de um grupo, no interior
de um dado campo se faz pelo reconhecimento das afirmações por ele enunciadas
como corretas e evidentes ou, nas palavras de Pierre Bourdieu, "pelo poder de
fazer ver e fazer crer"(4). Não obstante, se o mundo social resulta, em grande
parte, da ação desses sujeitos, eles isoladamente não têm a liberdade "de o
desfazer e de o refazer"(4).
3. A INSERÇÃO DA ENFERMAGEM NO ENSINO DE NÍVEL SUPERIOR
Os primeiros cursos de enfermagem surgiram no Brasil na Primeira República,
segundo modelos europeus; entre eles estão: a atual Escola de Enfermagem
Alfredo Pinto, da UNIRIOo e os cursos da Cruz Vermelha Brasileira. A Escola
Anna Nery, implantada no interior do aparelho de Estado por uma missão de
enfermeiras norte-americanas, adotou o modelo anglo-americano de ensino de
enfermagem. Diplomada a turma pioneira desta escola, as líderes de enfermagem,
americanas e brasileiras, tomaram a iniciativa, em 1926, de fundar nossa
primeira entidade de classe, a atual ABEn, a qual viria a ter importância
decisiva nos rumos do ensino de enfermagem no Brasil. A revista, criada em
1932, atualmente intitulada Revista Brasileira de Enfermagem (REBEn), serviu de
órgão de divulgação da incipiente produção científica da enfermagem brasileira.
Nos anos 30 e 40, a Escola Anna Nery funcionou como padrão oficial para o país.
O fato de ser esta uma escola exclusivamente feminina contribuiu para que as
escolas de enfermagem criadas no Brasil, de acordo com o "padrão Ana Neri",
tenham permanecido voltadas para a profissionalização de mulheres. Assim, o
desenvolvimento da enfermagem no Brasil sempre esteve relacionado à condição da
mulher em nossa sociedade. Com o início da Era Vargas, aumenta a presença da
Igreja católica na enfermagem profissional. Ao mesmo tempo, teve grande
repercussão a incorporação da Escola Anna Nery à Universidade do Brasil, em
1937, e sua ascensão no interior da mesma (hoje Universidade Federal do Rio de
Janeiro), passando de instituição complementar à unidade autônoma, logo após o
término da segunda guerra mundial. Tanto que, enquanto em 1939 existiam sete
escolas de enfermagem, em 1949 este número já era de vinte e três. Nessa época,
eram preocupações da Comissão de Educação da ABEn o acompanhamento das
nascentes escolas de enfermagem, a melhor qualificação de suas professoras em
áreas como Administração e Supervisão, Ensino e Psiquiatria, bem como o debate
de uma proposta de currículo mínimo(5).
É interessante notar que, se a ABEn teve sua origem em uma escola de
enfermagem, também se observa, uma relação direta entre o surgimento de escolas
de enfermagem e a criação das seções estaduais da ABEn. Estas foram criadas
entre 1945 e 1963, sendo que em 77% dos casos (16:21), a existência de uma
escola de enfermagem, ou mesmo de auxiliar de enfermagem, mostrou-se condição
necessária e suficiente para a criação da seção estadual correspondente(5). Em
contrapartida, a ABEn, na qualidade de sociedade civil de âmbito nacional,
tinha autoridade legal e moral para atuar como porta-voz autorizada junto às
autoridades federais e para respaldar as pretensões de cada seção, no nível
local. Também é interessante assinalar o importante papel desempenhado por
órgãos federais de saúde pública, como o Serviço Especial de Saúde Pública
(SESP) e a Campanha Nacional Contra a Tuberculose (CNCT), ambos criados nos
anos 40, para o desenvolvimento, tanto das escolas de enfermagem, como das
Seções estaduais da ABEn. Tal mediação se dava por um lado pelo encaminhamento
de candidatas às escolas de enfermagem, pela concessão de bolsas de estudo para
alunas e professoras, pela participação direta no ensino teórico e prático,
pela cessão de enfermeiras às escolas de enfermagem, e, por outro lado, pelo
incentivo à filiação de suas enfermeiras à ABEn, à sua participação nos
Congressos Brasileiros de Enfermagem e à publicação de trabalhos na REBEn.
A Lei 775/49, que regulamentou o ensino da enfermagem em todo o território
nacional, que tornou obrigatório o vínculo das escolas a um Centro
Universitário ou a uma Faculdade de Medicina, que criou o curso de auxiliar de
enfermagem e que estipulou auxílio federal às escolas de enfermagem
oficialmente reconhecidas, deu um novo impulso à profissão(5,6). De outro modo,
a Lei 775/49 evitara elevar imediatamente a escolaridade exigida das candidatas
para doze anos, pelo receio de que entre o pequeno contingente de mulheres de
classe média houvesse aquelas que tivessem a aspiração, as possibilidades
materiais e o apoio da família para fazer outros estudos. Com a política
ministerial de incentivo à organização de universidades, mediante a
federalização e aglutinação de instituições de ensino superior, tomou impulso o
movimento de ingresso das escolas de enfermagem na universidade. E aí ganhava
relevo a polêmica sobre a escolaridade das candidatas às escolas de enfermagem.
E se a questão da escolaridade não chegou a impedir a entrada das escolas de
enfermagem nas universidades, certamente lhes acarretou uma posição incômoda,
em relação às demais carreiras de nível superior(7).
E isto porque, algumas escolas de enfermagem foram criadas anexas a faculdades
de medicina; o currículo de enfermagem atendia às incipientes especialidades
médicas e professores médicos participavam de seu corpo docente, o que lhes
granjeava "uma relativa aceitação no campo (...)"(8). Ainda mais, a maioria das
escolas de enfermagem se diferenciavam das demais unidades universitárias por
não aceitarem candidatos do sexo masculino e pela existência de internatos
exclusivos para suas alunas(9). Não obstante, os diplomas fornecidos pelas
escolas de enfermagem equiparadas à EAN ou reconhecidas pelo Ministério da
Educação já eram registrados na Diretoria de Ensino Superior. Neste sentido,
como nos ensina Haydée Guanaes Dourado, "é elitista a concepção de que o curso
de enfermagem passou a ser do nível superior somente após a obrigatoriedade da
exigência do curso secundário completo (pois) existem outras vertentes para
definir o que é uma profissão: a idoneidade de um curso não pode ser avaliada
pela lei de um momento histórico posterior"(10,11).
Por outro lado, evidencia-se que a carreira de enfermagem, desde os seus
primórdios, constituiu-se, de certo modo, como um fator de democratização do
acesso ao ensino superior, uma vez que franqueava suas portas às "moças de boa
família", o que poderia incluir as filhas de famílias pobres; já as moças
negras, encontraram dificuldades maiores, principalmente na fase de implantação
e consolidação do novo padrão de ensino de enfermagem(12).
Em meados do século 20, a enfermagem necessitava definir os rumos da profissão
na sociedade brasileira. Nesse momento, a ABEn promoveu a realização do
diagnóstico da situação da enfermagem no país, o que veio a se constituir na
primeira pesquisa de enfermagem, cujo âmbito e complexidade a caracterizaram
como trabalho de grande envergadura, representativo da capacidade das
enfermeiras brasileiras, o qual sendo intensamente divulgado também pelas
escolas de enfermagem, se constituiu em capital cultural comum a todos os
membros da profissão(7). A questão da escolaridade das alunas de enfermagem,
intensamente debatida no âmbito da Associação Brasileira de Enfermagem, durante
doze anos, veio a ser resolvida à revelia das lideranças da enfermagem, por
força da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961 (LDB/61), que
determinou a exigência do curso secundário completo para o ingresso em qualquer
instituição de ensino superior. Este fato, evidenciou que nem todas as escolas
poderiam contribuir para firmar a enfermagem como uma carreira universitária,
ocorrendo então que muitas delas foram transformadas em escolas de auxiliares
de enfermagem(7).
Nos anos 60, ABEn e escolas de enfermagem conjugaram esforços para pleitear
junto ao Conselho Federal de Educação (CFE), revisão do currículo mínimo de
enfermagem, estabelecido após a LDB/61, pelo Parecer 271/62, o qual apresentava
grandes inconveniências como a redução do tempo de duração do curso, a extinção
da disciplina de saúde pública do curso geral e a introdução de um quarto ano
facultativo, com opção para enfermagem de saúde pública ou enfermagem
obstétrica. A questão da formação da obstetriz foi resolvida mediante o Parecer
303/63, o qual fixou o cursou em três anos(5).
Se, até 1953, existiam no país apenas dezesseis universidades, no decênio 1954-
1964, observou-se um crescimento no número de universidades brasileiras
superior a 130% (16:37), entre federais, estaduais e religiosas, espalhadas
pela maioria dos estados da Federação(13). A partir daí, várias escolas de
enfermagem (mas não todas) foram criadas já no interior das universidades,
embora com diferentes graus de autonomia, administrativa e técnico-pedagógica.
Essa inserção das escolas de enfermagem no mundo universitário lhes exigiiu uma
nova postura, mais propriamente acadêmica e um discurso mais bem fundamentado
na investigação científica. No 16º Congresso Brasileiro de Enfermagem, quatro
meses após o golpe militar de 1964, foi discutida a importância da pesquisa
para o desenvolvimento da profissão, os modos de pesquisar, a pesquisa como uma
nova responsabilidade das escolas de enfermagem e as dificuldades a serem
enfrentadas. Foram apresentados apenas três relatórios de pesquisa. As
temáticas mais abordadas na produção científica das enfermeiras eram: recursos
e necessidades de enfermagem; administração em enfermagem; requisitos
educacionais para a prática da enfermagem; fatores culturais que afetam a
enfermagem; e educação em enfermagem(14).
4. A REFORMA UNIVERSITÁRIA DE 1968 E A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO DE ENFERMAGEM
Ao final dos anos 60, havia no Brasil trinta e dois cursos superiores de
enfermagem em funcionamento: vinte e oito (87,5%) governamentais ou mantidos
por congregações religiosas que, em sua maioria, ofereciam cursos gratuitos; e
apenas quatro cursos (12,5%) vinculados a estabelecimentos com fins lucrativos
(7).
As "Reformas de Base", do governo João Goulart, incluiu uma reforma
universitária, que já vinha sendo discutida desde meados dos anos 50. No
entanto tais reformas foram neutralizadas pelo golpe militar, em 1964. O
controle da sociedade, exercido pela ditadura, incluiu muitas mudanças no campo
da educação de nível superior. A Lei 5540/68 estabeleceu uma Reforma
Universitária, de cunho funcionalista, segundo certas características das
universidades americanas, mudou a estrutura dos cursos e determinou, como regra
geral, que o ensino superior seria ministrado em universidades, aliando o
ensino à pesquisa uma antiga reivindicação de professores e estudantes.
No que se refere à enfermagem, a RU rompeu com o modelo pedagógico vigente,
acarretando a perda do controle das dirigentes sobre a composição qualitativa e
quantitativa do corpo discente e o afastamento físico entre professores e
estudantes de enfermagem durante os semestres do ciclo pré-profissional, comum
às carreiras da saúde. De outro modo, a convivência de estudantes e professores
de enfermagem com estudantes e professores de outros cursos instaurou um
processo de reelaboração e atualização das representações sociais sobre as
diversas carreiras na academia(7).
As escolas de enfermagem que conseguiram cumprir as novas exigências legais
passaram a ocupar uma posição mais adequada à sua condição de unidades
universitárias. Desde logo, por se incorporarem aos Centros de Ciências da
Saúde, ou Biomédicos, o que correspondeu ao seu reconhecimento como área de
saber. Também porque a Reforma determinou, e pela primeira vez, que o corpo
docente das escolas de enfermagem passasse a ter uma maioria de enfermeiras, as
quais tiveram que envidar esforços, no sentido de obter o grau de mestre. E
depois, pela própria instituição da pós-graduação stricto sensu que, ao gerar
uma produção científica de enfermagem mais significativa, propiciou a inserção
de professoras de enfermagem na comunidade nacional de pesquisadores. Além
disso, o novo currículo mínimo, decorrente da RU (Parecer 163/72), apesar de
seus problemas estruturais, ainda foi considerado pela maioria, como um avanço
na formação de enfermeiros.
Os Congressos Brasileiros de Enfermagem, promovidos anualmente pela ABEn, no
ano de 1967 e nos anos seguintes tiveram como centro dos debates as questões
ligadas às implicações da RU para a formação do profissional de enfermagem. Os
Seminários sobre Educação em Enfermagem, realizados em 1968 e 1970, pela EE da
USP-São Paulo e EE da USP-Ribeirão Preto, respectivamente, ambos com o apoio da
Opas/OMS, forneceram importantes subsídios aos debates(5).
Na década de 70 se iniciaram os debates sobre temas como os inconvenientes das
habilitações específicas do curso de graduação, entendidas como "pré-
especializações"; a importância da iniciação do estudante na prática da
pesquisa; e a articulação entre os níveis de graduação e pós-graduação(15).
Frente a isso, a Comissão de Especialistas no Ensino de Enfermagem, do SESU/
MEC, presidida pela presidente da ABEn Nacional, em 1980 promoveu um Seminário
na cidade de Salvador para discutir as questões do currículo mínimo. No
entanto, a conjuntura social do momento não permitiu que as discussões
avançassem.
Em 1977, a ABEn editou o primeiro catálogo de teses de enfermeiros brasileiros.
Em 1979, o Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem (Cepen), promoveu o
Primeiro Seminário Nacional de Pesquisa em Enfermagem (Senpe), com o apoio do
CNPq. Nele foram realizadas três sessões de análise crítica de pesquisas de
enfermagem e discussões sobre as prioridades e limitações da pesquisa na área
(16). Em 1982, foi discutida a posição da Enfermagem no Plano Básico de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico do CNPq, mediante questionamentos
sobre a situação dos cursos de pós-graduação, os núcleos emergentes de
pesquisa, o apoio à produção científica de enfermagem, o impacto da produção do
conhecimento, as temáticas relevantes para a pesquisa em enfermagem e suas
perspectivas(17).
Ainda nos anos 70, a enfermagem começa a atuar no CNPq e na Capes, a título de
consultoria; mas nos anos 80 ela passa a se inserir nesses órgãos com o status
de área do conhecimento(18). Nesta época, as líderes da enfermagem também se
empenhavam em atender às diretrizes emanadas do Plano Decenal de Saúde para as
Américas (1972), o qual tinha entre suas metas a de aumentar o número de
enfermeiros, como estratégia para a melhoria da qualidade da assistência à
saúde das populações. Para isto, seria necessária a ampliação do número de
vagas nas escolas de enfermagem existentes, bem como a abertura de novas
escolas de enfermagem no país. Para tanto, o Departamento de Assuntos
Universitários do Ministério da Educação e Cultura (DAU/MEC), a partir do
relatório de um grupo de trabalho sobre os cursos de enfermagem, lançou um
programa de expansão dos cursos de enfermagem. Assim é que, nos anos 70 e até
meados dos 80, o DAU/MEC promoveu a criação de trinta e seis cursos superiores
de enfermagem, sendo 67% (vinte e quatro) públicos e 33% (doze) particulares.
A integração das atividades de ensino e pesquisa nas universidades públicas
limitou suas possibilidades de expansão. Com isto, o setor privado aproveitou a
oportunidade para atender à crescente demanda social por ensino superior. Neste
sentido, o CFE passou a autorizar o funcionamento de um número cada vez maior
de faculdades isoladas. Além disso, o governo federal, criou em 1976, o
Programa de Crédito Educativo (Creduc), para o financiamento de vagas em
instituições privadas, mediante o compromisso do aluno de pagar o empréstimo,
depois de formado.
O fato é o de que, de 1970 a 1989, foram criados no Brasil, 66 cursos
superiores de enfermagem, sendo 37 (56%) públicos e 29 (44%) privados. Vale
lembrar que o crescimento das escolas de enfermagem decorreu, tanto da criação
de novos cursos, como da ampliação do número de vagas ofertadas para a
carreira, no bojo do processo geral de massificação do ensino superior.
No governo de José Sarney (1986-1989), caracterizado como de transição
democrática, foi promulgada uma nova Constituição, que enunciava que "o ensino
é livre à iniciativa privada", desde que cumpridas as normas gerais da educação
nacional e na vigência de autorização e avaliação de qualidade pelo poder
público. Contudo, destaca-se, sobremaneira, a inclusão do artigo que destina
recursos públicos também para instituições educacionais privadas confessionais
e comunitárias, ditas sem fins lucrativos.
5. NOVOS RUMOS NO ENSINO DE ENFERMAGEM
A partir da segunda metade dos anos 70, os profissionais de enfermagem que
participavam dos grupos que se organizaram durante os anos de repressão
política manifestaram-se no âmbito da ABEn, sob a forma de uma oposição, que se
articulava nacionalmente, e propunha a reconfiguração da Associação, de modo a
redirecionar sua ação política. Este grupo, que se autodenominou "movimento
participação", assumiu a direção da ABEn em 1986.
No que se refere à formação do enfermeiro, a série de Seminários de Ensino de
Enfermagem, promovidos pela ABEn, de 1986 a 1991, resultou em proposta de
substituição do Parecer 163/72, encaminhada ao CFE e que resultou no Parecer
314/94, que estabeleceu um novo currículo mínimo para o ensino de graduação em
enfermagem.
Em 1994 foi promovido pela ABEn o primeiro Seminário Nacional de Diretrizes
para a Educação em Enfermagem/Senaden(15), o qual neste ano de 2006, apresentou
sua 10ª versão. Os Fóruns de Escolas de Enfermagem, que funcionam junto às
seções estaduais da ABEn, também vêm contribuindo de forma efetiva para a
formação de consensos acerca dos destinos da formação dos enfermeiros
brasileiros.
O agravamento da crise econômica em 1989-90 e o esgotamento do modelo
desenvolvimentista brasileiro determinou o incremento da proposta neoliberal. O
Estado deixava de regular os preços da economia em geral e a regulação da
relação capital-trabalho, substituída pelo "livre jogo do mercado", deu ensejo
a propostas de privatização das empresas estatais, o que contribuiu para a
redução dos gastos públicos. A proposta do governo Fernando Collor (1990-1992),
de cortar os gastos públicos, foi viabilizada por uma Reforma Constitucional,
que introduziu o ensino pago e o fim da estabilidade no emprego público. Ao
impeachment do presidente Collor, seguiu-se o governo de transição de Itamar
Franco.
A política neoliberal do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) - 1995 a 2002,
incluiu uma nova Lei de Diretrizes e Bases em 1996 (LDB/96), que propiciou a
expansão do ensino superior privado, ao conferir às Instituições de Ensino
Superior maior autonomia na definição dos seus currículos, amoldando-se às
demandas sociais. A graduação passa a se constituir uma etapa inicial de um
processo de educação permanente. O tempo de duração do curso passa a ser
variável, de acordo com a disponibilidade e esforço do aluno. Também foi
criado, em 1999, o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior FIES,
em continuidade ao antigo Creduc, de modo a manter os incentivos ao setor
privado, entendido pelo governo federal, como solução para a expansão do ensino
superior, diante da carência de recursos públicos. Tanto assim que, no período
FHC, entraram em funcionamento no Brasil, cento e setenta e um cursos
superiores de enfermagem, sendo 88% (cento e cinqüenta) privados e apenas 12%
(vinte e um) públicos.
6. PERPLEXIDADES E POSSIBILIDADES ATUAIS
O governo Lula, iniciado no dia primeiro de janeiro de 2003, declarou-se
contrário à política neoliberal. Porém, o projeto de Reforma Universitária ora
proposto pelo MEC inclui o Programa Universidade para Todos (ProUni) que
destina verbas públicas à iniciativa privada mediante a "compra" de vagas de
universidades particulares, sob a alegação de abrir o acesso ao ensino superior
a todas as camadas da população.
De 2003 a 2005 foram criados cento e oitenta e três novos cursos superiores de
enfermagem. Destes, 94% (cento e setenta e dois) pertenciam a instituições
privadas e apenas 6% (onze) estavam vinculados ao governo (federal, estadual ou
municipal).
Em 2005, estavam em funcionamento no Brasil aproximadamente quatrocentos e
cinqüenta cursos superiores de enfermagem, cujo processo de expansão sofre
influência direta dos contextos regionais. As regiões Sul e Sudeste
concentravam 72% dos cursos, enquanto que o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste
contavam com apenas 28% deles. O mais extraordinário aumento do número de
cursos e a maior preponderância do ensino privado, ocorrem no Sudeste e no Sul,
as mais urbanizadas, industrializadas e economicamente desenvolvidas dentre as
cinco regiões brasileiras. No Brasil os investimentos em educação são altamente
produtivos. Além disso, as regiões e grupos sociais que mais consomem bens
educacionais são os que mais aumentam sua produtividade e mais conseguem atrair
e fixar investimentos, em benefício de suas regiões e de sua população.
Portanto, na série histórica, verifica-se que em 1969 funcionavam 32 cursos
superiores de enfermagem, sendo 87,5% (vinte e oito) públicos e 12,5% (quatro)
privados. Em 1999, já contávamos com 152 cursos, sendo 53% (oitenta) públicos e
47% (setenta e dois) privados. Isto quer dizer que em trinta anos (1970-1999),
o aumento do número destes cursos foi de 475%. Entre 2000 e 2005, entraram em
funcionamento mais 310 cursos, sendo 93% (duzentos e oitenta e oito) privados e
apenas 7% (vinte e dois) públicos, o que eqüivale a um aumento de 204%, em
apenas seis anos. Vale ressaltar que o número de cursos que entrou em
funcionamento nos últimos seis anos é maior do que o de todos os cursos criados
entre 1890 e 1999, ou seja, em cento e dez anos de existência da enfermagem
profissional no Brasil.
São formidáveis os desafios impostos pela LDB/96 à ABEn e aos cursos de
enfermagem, como a redução da carga horária do curso, prevista no Parecer 108/
2003. Exemplos desses esforços são a promoção de fóruns de discussão sobre
competências, modelos curriculares, prioridades e políticas de formação de
enfermagem e a Oficina realizada em agosto de 2005, em parceria com o ME e o
Inep, sobre a construção de indicadores de qualidade para a avaliação dos
cursos de graduação em enfermagem(19).
Uma questão não resolvida nos cursos superiores de enfermagem é a permanência
da caracterização da profissão como feminina, segundo o modelo tradicional de
divisão do trabalho, decorrente da ideologia da distribuição de dons inatos
entre homens e mulheres(20), que dificulta o reconhecimento social de certas
profissões como a enfermagem.
Outra questão que se coloca às escolas e aos cursos de enfermagem é a de como
conciliar, no espaço curricular, os ideais de humanização da assistência e os
imperativos da conduta ética com as premências da capacitação do aluno para
atuar em um mercado de trabalho, no qual a atuação requerida do enfermeiro é,
cada vez mais, voltada para a gerência de processos e para procedimentos
tecnológicos complexos.
Mas o maior desafio que as escolas de enfermagem tiveram que enfrentar desde o
início da enfermagem moderna no Brasil foi o da produção do conhecimento. Não
obstante todos os esforços, somente na virada do século 20 para o século 21, é
que a enfermagem logrou firmar sua reputação de produtora de conhecimento na
comunidade científica nacional e internacional. Isto se fez pela demonstração
de sua capacidade de ampliar e renovar, através as gerações, o seu contingente
de pesquisadores, o que passa necessariamente pela iniciação científica do
estudante de graduação e o engajamento precoce do diplomado nos cursos de pós-
graduação stricto sensu.
Para tanto, os apoios institucionais recebidos são insuficientes. O CNPq,
principal agência de fomento à pesquisa em nosso país, apóia apenas cerca de
cem enfermeiros pesquisadores com bolsas de Produtividade de Pesquisa e o
número de bolsas de iniciação científica (diretamente concedidas pelo CNPq
somadas às repassadas às universidades pelo Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica/Pibic) beneficiam apenas cerca de trezentos estudantes de
graduação. Além destas, os pesquisadores da área de enfermagem contam apenas
com aproximadamente cinqüenta bolsas de Apoio Técnico à Pesquisa(2). Fontes
complementares de recursos são as fundações estaduais de amparo à pesquisa,
tanto na distribuição de auxílios financeiros, como na concessão de bolsas.
Acontecimentos importantes para a valorização da produção científica de
enfermagem foi o surgimento de novas revistas específicas e a requalificação da
REBEn, editada pela ABEn desde 1932, de acordo com as exigências da Capes, para
a classificação de periódicos no sistema Qualis(21).
Em 2005, durante o Seminário Nacional de Pesquisa, realizado em São Luiz do
Maranhão, considerando a enorme demanda reprimida dos pesquisadores de
enfermagem, junto às agências oficiais de fomento, e de modo a ampliar o debate
sobre os rumos da pesquisa em enfermagem, a ABEn criou o Fórum Nacional de
Pesquisadores, ligado ao seu Cepen.
De outro modo, a criação, em junho de 2006, do Comitê Assessor de Enfermagem na
estrutura do CNPq, corresponde ao seu reconhecimento como área de conhecimento
consolidada1. A criação de um comitê específico para a enfermagem, antiga
aspiração da comunidade científica de enfermagem, cuja reivindicação foi
apoiada inclusive pela ABEn, abre novas perspectivas para o desenvolvimento da
área, que conta com 1400 doutores, 28 programas de pós-graduação (sendo 12 com
doutorado) e quase trezentos Grupos de Pesquisa no diretório do CNPq, no
sentido de melhor atender à demanda reprimida, em relação ao acesso às bolsas e
outras formas de fomento(22).
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fato que a mudança do cenário da educação superior e as dificuldades aí
apresentadas têm levado os diversos setores da sociedade a questionar mais
intensamente a universidade pública e a cobrar os investimentos nela efetuados.
Mas não podemos esquecer que, apesar de todos os percalços, têm sido as
universidades públicas que têm sustentado, os padrões de qualidade do ensino e
da pesquisa no Brasil. Hoje, enquanto apenas 15% das matrículas do ensino
superior estão alocadas nas universidades públicas, estas detém 85% dos
professores com doutorado, oferecem 94% dos cursos de mestrado e 93% dos cursos
de doutorado do país. Na área de enfermagem, 97,5% dos cursos stricto sensu são
oferecidos por universidades públicas(21).
Durante todo o século 20 e no início do atual, a universidade vem sendo
pressionada a formar pessoas habilitadas a exercer um número cada vez mais
diversificado de profissões valorizadas por sua utilidade social, facilitando o
acesso de parcelas cada vez maiores de todas as camadas sociais.
As transformações ora em curso na sociedade brasileira estão afetando duramente
a instituição universitária. Há um embate entre a idéia de que cabe à
universidade a maior responsabilidade na produção do conhecimento e na formação
de uma massa crítica que possa contribuir para a elaboração de um projeto
nacional e os interesses meramente empresariais investidos no ensino superior
brasileiro. Dessas posições divergentes de universidade decorrem diferentes
concepções de professor e de estudante.
Existem atualmente cerca de quinhentos cursos de enfermagem de nível superior,
espalhados por todo o território nacional, com cerca de setenta mil alunos de
graduação, formando mais de quinze mil enfermeiros por ano(23).
No nível da pós-graduação existem vinte e quatro cursos de mestrado acadêmico e
três de mestrado, na modalidade profissional, oferecidos por vinte e duas
escolas de enfermagem governamentais e uma particular. Destas vinte e três
escolas, nove delas oferecem também treze cursos de doutorado. Vale dizer que,
dessas nove, algumas delas oferecem programas de pós-graduação, em sistema de
extensão, para outros estados brasileiros e para outros países, principalmente
os da América Latina(21).
As escolas de enfermagem e a ABEn, pelas posições que ocupam no campo da
educação, têm grande influência na atualização das representações sociais do
enfermeiro e da enfermagem. Têm ainda um importante papel nas mudanças das
concepções relativas à saúde e à doença, que se constroem nas relações sociais.
A ABEn, desde sua fundação, se vem constituindo em locus primário de definição
das posições e disposições no campo do ensino superior de enfermagem, no que se
refere à enunciação de um discurso autorizado sobre a formação do profissional
de enfermagem.
É importante ressaltar que do presente, não faz parte apenas o passado próximo
ou remoto, mas também o futuro, próximo ou distante. Por conseguinte, o que
somos agora, é uma resultante do que fomos, do que temos lutado para ser, mas
também daquilo que pretendemos vir a ser, pois "a concepção e a formulação de
uma representação, mais ou menos, elaborada de um futuro coletivo" impõe um
esforço crítico e reflexivo, sobre os caminhos que nos trouxeram à realidade
presente, e sobre as possibilidades de ruptura com os modelos vigentes de visão
e de classificação do espaço social, em que trabalhamos e convivemos, o que
inclui a produção de novas categorias de percepção e de apreciação(4).