O lugar da mãe na prática da amamentação de sua filha nutriz: o estar junto
PESQUISA
O lugar da mãe na prática da amamentação de sua filha nutriz: o estar junto
The mother´s role in breasfeeding her promiparous daughter: "the toget herness"
El papel de madre en la práctica de la lactación de su hija nutriz: "estar a su
lado"
Ana Rita Marinho MachadoI; Ana Márcia Spanó NakanoII; Ana Maria de AlmeidaIII;
Marli Villela MamedeIV
IEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Professora do Departamento de Enfermagem da
Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro - Uberaba
IIEnfermeira. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno Infantil
e Saúde Pública da Escola de Enfermagem Ribeirão Preto/USP
IIIEnfermeira. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno
Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem Ribeirão Preto/USP
IVEnfermeira. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Materno Infantil
e Saúde Pública da Escola de Enfermagem Ribeirão Preto/USP
E-maildo autor: nakano@eerp.usp.br
1 Introdução
De acordo com a OMS/UNICEF, a amamentação não é totalmente instintiva no ser
humano, muitas vezes tem que ser aprendida para ser prolongada com êxito, e a
maioria das nutrizes precisa de reforço e apoio constantes.
Corroborando com tais idéias observamos que as mulheres ao se depararem pela
primeira vez com o aleitamento materno, requerem que lhes sejam apresentados
modelos ou guias práticos de como devem se conduzir nesse processo. Na maioria
das vezes, têm como primeira referência o meio relacional familiar, suas
amizades e vizinhança nos quais estão inseridas. Há de considerar, ainda, que
embora a amamentação tenha início em um contexto hospitalar sob a hegemonia do
profissional de saúde, esta só se estabelece no ambiente doméstico sob o
domínio das mulheres(1).
Nesse sentido, é no ambiente doméstico e feminino que as mulheres tentam, em
primeira mão, resolver os problemas relacionados ao aleitamento materno,
revelando a presença de múltiplos poderes nesse processo(2).
O marido e a mãe da nutriz são importantes influenciadores no processo de
aleitamento materno, pois o primeiro apresenta-se como agente estimulador da
prática e a mãe como modelo de referência(3). Já os profissionais de saúde
surgem como incentivadores da prática, dando ênfase aos procedimentos técnicos,
tais como cuidados com a mama, técnicas para amamentação, entre outros. Como
parte desse jogo de relações que influencia o aleitamento materno, aparecem,
ainda, colegas, vizinhas e a própria mídia.
Os profissionais de saúde, parentes, vizinhos ou amigos são os responsáveis
pela introdução da mamadeira e do desmame(4). No entanto, considera-se que o
apoio do marido/companheiro talvez seja a fonte mais significativa de estímulo
à amamentação que uma mulher recebe(5).
Outros autores realçam o papel das mulheres no meio familiar, como importante
elemento de referência. A arte de amamentar não é inata à mulher, mas tem sido
aprendida durante séculos, através do contato direto de mulheres experientes
com as menos experientes(6). Ainda sobre o assunto, podemos referir as mulheres
do meio familiar: mães, avós, tias maternas e irmãs mais velhas, como exemplos
a serem seguidos, fontes seguras de informação não só para a amamentação(7).
Nessa configuração de relações favoráveis ao aleitamento materno, destacamos o
papel da avó materna do recém-nascido, a mãe da nova mãe; que exerce influência
significativa sobre a jovem mãe, sua filha, refletindo-se na forma como essa
percebe e age no desempenho das funções maternas. No processo de socialização
familiar, as mulheres são treinadas para exercerem sua função primordial, a
maternidade e, por extensão, a de educadora, de modo que preparam as filhas,
futuras mães, para o cuidado materno. Assim, a menina se identifica com a
própria mãe quando cresce, identificação que a produz mãe(8).
A mulher como ser social, no exercício dos atributos maternos, busca abastecer-
se de informações no universo de significados interiorizados, durante sua vida.
Por meio do processo contínuo de socialização mediado por esses significados,
incorpora outros significados para compreender, interpretar e atuar nas
situações vivenciadas. Entretanto, descontinuidades socializatórias podem se
apresentar, revelando conflitos entre o sistema simbólico interiorizado e a
realidade contextual em que a mulher se insere(9).
Na transmissão de valores à nutriz, a mãe poderá transmitir, também, tabus,
crenças e proibições inerentes a um dado contexto histórico-social, atuando
ainda de forma indireta como elemento desestimulador ou estimulador à
amamentação, quando sua experiência é tomada na família como padrão de
amamentação.
Durante o parto, o obstetra assiste a quatro nascimentos: nasce uma criança, um
pai, uma mãe e uma família(10). Às vezes, também nasce uma avó que pode ser
muito útil ou nociva para esta mãe.
Na amplitude deste campo de investigação, é nosso intuito compreender, sob a
ótica das nutrizes e de suas respectivas mães, a lógica que sustenta a prática
do aleitamento materno e identificar o significado da participação das mães na
maternidade das filhas.
Pressupomos que os significados atribuídos pelas mulheres acerca de suas
vivências no aleitamento materno reproduzem, em parte, os significados
construídos por suas mães, estando estes fundados em experiências maternas
anteriores. Entretanto, conflitos e contradições podem estar presentes.
Acreditamos que a compreensão destas questões nos possibilitará não só
direcionar nossas ações à mãe da nutriz, como também criar estratégias mais
efetivas direcionadas à assistência oferecida à mulher/nutriz, com o fim de lhe
oferecer subsídios para que tenha apoio e suporte social efetivos, de forma a
proteger e promover sua prática de aleitamento materno.
2 Procedimentos metodológicos
Desenvolvemos uma pesquisa qualitativa no município de Uberaba, localizado na
micro-região do Triângulo Mineiro, com mulheres primíparas, no período pós-
parto entre 1 a 6 meses, que estavam amamentando. Um outro critério para sua
inclusão na pesquisa é que suas mães deveriam estar envolvidas no processo,
compartilhando das vivências de suas filhas, e que ambas, mãe e filha
consentissem participar da mesma. Assim fizeram parte do recorte empírico desse
estudo 10 mulheres, entre as quais: 5 nutrizes e respectivas mães. O primeiro
contato foi na UBS quando da realização do teste do pezinho e/ou vacina BCG,
entretanto; realizamos as entrevista no domicílio.
De acordo com as diretrizes de normas éticas em pesquisa com seres humanos os
dados foram coletados por meio de entrevista semi-estruturada, direcionada por
roteiros distintos para as nutrizes e suas mães, após o consentimento livre
esclarecido e assinatura do termo pelas informantes.
Os dados foram submetidos à técnica de análise de conteúdo que permitiu
articular as estruturas semânticas (significantes) com estruturas sociológicas
(significados) dos enunciados dos depoimentos de mães e filhas. Optamos pela
análise temática, pois ela permitiu identificar, nos depoimentos dos sujeitos o
significado das vivências do processo de aleitamento e sua reprodução através
de gerações(11). Assim os relatos, tanto das mães como filhos foram lidos e
relidos, procurando identificar unidades temáticas que nos auxiliassem na
compreensão sobre como mães e filhas/nutrizes percebem e agem frente o
aleitamento materno. Assim foi possível identificar as seguintes unidades
temáticas: a lógica que sustenta a prática do aleitamento materno em ambas as
gerações; o perfil das mulheres para amamentar na concepção das mães e das
filhas e a participação das mães na maternidade das filhas.
2.1 Os sujeitos investigados
A idade das mães das nutrizes variou entre 44 e 49 anos, com a média de 47
anos, enquanto o grupo das filhas apresentou idade variável entre 17 e 29 anos,
estando a média em 21,8 anos de idade.
Comparando a média da idade das mães das nutrizes por ocasião do nascimento do
primeiro filho (25,2 anos) com a média da idade das filhas (21,8 anos), podemos
observar que estas iniciaram a procriação em idade mais jovem que a das suas
mães. Dados do Ministério da Saúde revelam que em 1993, de todos os partos
realizados pelo SUS, 21,41% foram de jovens com 15 a 19 anos. Em 1996, esse
percentual subiu para 24,63%(12).
Quanto ao nível de escolaridade das mães das nutrizes, 03 possuíam o 1º grau
incompleto; 01 concluiu o 2º grau e outra o 3º grau. Em relação às filhas, 03
concluíram o 2º grau; 01 possuía o 2º grau incompleto e 01 estava cursando o 3º
grau.
Quanto à ocupação, 03 mães das nutrizes não trabalhavam fora do lar por ocasião
da maternidade e 02 eram autônomas, porém, atualmente, todas as mulheres deste
grupo têm uma ocupação fora do lar. No que diz respeito às filhas, 03 delas
participavam do mercado de trabalho formal (estando, inclusive, usufruindo a
licença gestante).
O crescimento da participação feminina no mercado de trabalho brasileiro foi
uma das mais marcantes transformações sociais ocorridas no país desde os anos
70. As estatísticas têm revelado que a presença das mulheres no mercado de
trabalho brasileiro é cada vez mais intensa e diversificada e não mostra
nenhuma tendência de retrocesso(13). Portanto, as mulheres vêm beneficiando-se
da democratização da educação formal no Brasil, nas últimas décadas(14). As
mulheres participam do sistema educacional brasileiro na mesma proporção que os
homens.
Sobre a prática do aleitamento materno dos sujeitos da investigação, entre as
mães das nutrizes apenas 02 apresentam duração média de aleitamento materno
além dos 06 meses. Aspectos sociais e culturais são apresentados como
delimitadores do tempo de amamentação. Entretanto, observa-se que todas as
nutrizes (filhas) apresentaram uma duração de aleitamento materno até os 6
meses.
À medida que as dificuldades frente à continuidade da amamentação se mostram
presentes, as mulheres deixam de se ater ao idealizado para adaptar-se à sua
condição específica, o que justifica o fato de apresentarem um discurso
diferente da sua prática, onde predomina o desmame precoce. Pesquisa Nacional,
realizada recentemente, revela que as mães brasileiras, em média, amamentam
exclusivamente por 34 dias.
3 A lógica que sustenta a prática do aleitamento materno em ambas as gerações
3.1 Aleitamento materno com finalidade nos benefícios para a criança
Os aspectos relacionados ao benefício que o aleitamento materno traz à criança
mostram-se consolidados para ambas as gerações. O conhecimento expresso pelas
mulheres sobre o aleitamento materno lembram as mensagens difundidas pela
mídia, enfatizando as propriedades do leite humano e sua influência na condição
de saúde da criança.
Eu acho importante, eu acho que toda mãe, assim, tem que amamentar, porque é
bom para a mãe e melhor ainda para o bebêDiana(Filha).
3.2 Aleitamento materno como prática aprendida
O aprendizado para as mães das nutrizes acerca da prática do aleitamento
materno é entendido como algo intimamente ligado à transmissão de experiência
já vivida e seguida enquanto fonte de autoridade para conduzir-se na prática da
amamentação.
O que eu aprendi com a minha mãe, porque a gente não tinha orientação , né? Da
forma que ela sabia também ela me passouAnábile (Mãe).
Já as filhas buscam referenciar o seu fazer como nutriz nas orientações
técnicas e científicas dos profissionais de saúde. Hoje a gente tem aonde
correr, aonde apoiar, né? Porque você pode ir numa médica, você tem as
enfermeiras que sempre tão lá, né? Tão disponível para você perguntar, para
você questionar.Valquíria (Filha).
Verificamos um certo distanciamento na rede de aconselhamento e de experiência
familiar quando as filhas as substituem por recomendações dos profissionais de
saúde. É reconhecido o valor do conhecimento técnico-científico também pelas
mães das nutrizes, como sendo o mais apropriado. Com isso, as mães perdem o
lugar de destaque como autoridade potencial na transmissão de normas e
costumes.
É , eu acho que está melhor. As coisas estão mais fáceis, da pessoa, assim,
saber melhor. Tem mais orientação , do que a gente recebia.Maria do Socorro
(Mãe).
Tem-se a considerar alguns aspectos sugestivos de influências no
desencadeamento desse movimento de descontinuidade evidenciado na fala dessas
mulheres. Com a medicalização, as mulheres foram alijadas, paulatinamente, de
seus conhecimentos, que foram aos poucos substituídos pelo discurso competente,
ou seja, aquele que é instituído como verdadeiro. As mulheres foram esvaziadas
de si mesmas, ao mesmo tempo em que passaram a responder à determinação
externa, isto é, à dominação(15).
Destituída do saber acumulado e transmitido pelas gerações e desvalorizada por
suas experiências de vida, as mulheres mostram-se dependentes de padrões
normatizadores sobre a prática da amamentação. Neste contexto, o profissional
de saúde ganha destaque, sendo valorizado e até mesmo tomado pelas mulheres
como referência para amamentação, já que para elas não há uma sustentação junto
ao modelo tradicional.
3.3 Amamentar é da natureza da mulher
As mulheres, identificadas à natureza devido às suas especificidades
fisiológicas, foram tomadas como bases fundamentais de construção da figura da
"mãe higiênica" criada no passado. A mulher que não amamentava dizia-se que
rompia duplamente os cânones naturais. Em primeiro lugar porque conduzia de
modo contrário a todas as fêmeas da classe dos mamíferos; em segundo lugar,
porque contrariava sua outra vocação 'natural', a de ser mãe, conforme figurino
higiênico(16).
É normal, via assim, a mamãe amamentar, todas as mães amamentar, então parece
que, né? a gente [...] quando nascia já ia amamentar sem alguém orientar,Maria
do Socorro (Mãe).
Entretanto, a amamentação considerada como instintiva, natural e biológica para
os mamíferos, tem se apresentado na prática como facultativa para a espécie
humana. O que revela ser a amamentação uma prática determinada não só pela
biologia, mas também condicionada pela sociedade e pela cultura, sendo portanto
definida como híbrido natureza-cultura(17).
A construção social das mulheres para a maternidade, tida como fazendo parte da
própria natureza, tem manifestado nelas um certo juízo moral quando se vêem
diante da possibilidade de utilizar-se de meio alternativo para substituir-se
ou inclusive aliviar-se na função de nutriz, como podemos observar nas falas
tanto das mães quanto das filhas nutrizes.
Parece que as mães antigamente eram mais, sei lá, mais conscientizadas, não
sei. E não tinha esse negócio assim, desse leite 'NAN', leite ninho, era só
peito, peito.Elenice (mãe)
Percebem-se desviantes da natureza quando imprimem um julgamento moral frente à
adoção de meios alternativos para aliviar-se ou substituir-se nessa função.
3.4 O perfil das mulheres para amamentar na concepção das mães e das filhas
3.4.1 Ser nutriz é ser paciente e ter vontade
As imposições morais e de comportamento sobre o corpo feminino fundamentam-se
na reprodução como função precípua da mulher. Nesse sentido, o corpo
socialmente adaptado ao modelo de maternidade de doação e sacrifício tem força
para legitimar a prática efetiva da amamentação por um tempo duradouro e
recomendado. Isso foi observado nas duas gerações.
O centro agora é o neném, é o filho. Agora...é tudo mesmo. Tudo que eu faço, eu
faço pensando nele.Diana (filha).
Você teve seu bebezinho, minha filha, você vive por ele assim, enquanto ele for
bebê, sabe?Ângela Maria (Mãe).
Para ambas as gerações, as mulheres do passado eram mais dotadas de paciência,
vontade e perseverança, aspectos que as atuais mães são destituídas, o que
justifica para elas o fato das mulheres amamentarem mais no passado que na
atualidade.
Amamentam, mas acho que não é assim, igual era, não. Tem muitas mães que não
gosta muito não. Não tem paciência,Elenice (mãe).
Amamentar significa conhecimento, tempo, disponibilidade, boa alimentação,
tranqüilidade e outros requisitos, que via de regra, não estão disponíveis para
a maioria das mulheres(18).
Observamos que as mulheres buscam aterem-se a um limite temporal de dedicação
integral às funções maternas/amamentação, de forma não declarada mas sob
manifestação invisível e por vezes, até inconsciente que limitam a amamentação
com base na sua incapacidade fisiológica para tal função(19). Tal justificativa
as protegem de qualquer desaprovação do social, obtendo a solidariedade do
grupo a qual pertencem.
3.4.2 Ser nutriz é privilegiar a amamentação em detrimento à imagem corporal
A questão da estética tem sido uma das preocupações das mulheres na atualidade,
o que, na opinião de mães e filhas, estaria determinado o abandono da
amamentação por medo do "peito cair" e da flacidez.
É... como que eu posso falar? Assim, padrão físico, muito preocupada assim, em
manter o corpo e tal. Acha que amamentar vai atrapalhar.Lígia (filha)
Algumas mulheres apontam aspectos estéticos como fundamentais na escolha ou não
da amamentação, mas estes não parecem ser um fator determinante na decisão de
amamentar ou não(18). O sentido que os sujeitos atribuem às mamas integra a
rede de sentidos do grupo social do qual faz parte. Neste aspecto a mama,
apresenta-se ora significativamente ligada à maternidade, ora à sexualidade na
dependência de valores sociais e até mesmo do momento circunstancial e singular
de vida de cada mulher.
3.5 A participação das mães na maternidade das filhas
3.5.1. Estreitamento dos vínculos
Os laços mãe-filha estreitam-se por ocasião da maternidade da filha, por
trazerem de forma concreta, a representação simbólica do que seja ser mãe.
A gente aprende a dar mais valor na mãe. Aí a gente aprende o tanto que uma mãe
gosta de um filho e sabe que tudo que faz é para o bem do filho, nada é por
acaso.Diana (filha)
Na vivência da maternidade, as filhas passam a dar valor às suas mães,
renovando o "vínculo fusional" que tinham com elas. A maternidade que poderia
servir como linha de delimitação entre infância e idade adulta da mulher, não
traz em si, como experiência o movimento de separação de um vínculo visceral,
mas ao contrário, re-encena, fora do ventre a visceralidade deste vínculo(20).
Na visão das mães das nutrizes, tal condição manifesta-se na mudança do
comportamento de suas filhas para com elas, tornando-as mais afetivas. Há
muitas vezes uma reconciliação entre mãe e filha que anteriormente envolveram-
se em algum atrito.
[...] mas depois desse bebê, ela tem sido um pouquinho mais carinhosa
comigo, sabe? Mesmo quando ela fica nervosinha assim comigo, ela já
fala com mais carinho, sabe? [...] Eu tenho impressão que a filha se
sente um pouco [...] o sentimento da mãe, né?Ângela Maria (mãe).
O sentido feminino de relação e vínculo propicia espaço para transmissão de
valores e conhecimentos das mães para as filhas respaldados na experiência e na
tradição do que é ser mãe. A mãe transmite às filhas as mensagens que recebeu
muitas vezes de sua mãe.
A minha mãe foi muito importante. Eu espelhei muito nela, quando elas nasceram
[...] o que eu sei assim, eu não sei muito, mas o pouco que eu sei eu passo
para a ela,Glória (mãe).
Desta forma, as mães atuam junto às filhas, dão força, incentivo e às vezes,
usam de seu status de mãe para lembrar-lhes os deveres e responsabilidades de
ser mãe(21).
[...] que às vezes chora lá dentro, ela sai lá fora: 'Lígia, põe uma
fraldinha na cabeça dele', 'Ah, mãe. Ta calor'. Eu falei assim: 'Mas
dá dor de barriga'. Ué mãe! Você ta pensando que é mãe dele? Eu
falei: 'eu não sou mãe dele não, mas sou vó. Faz favor,Amábile(mãe).
Percebemos que o social constrói a identidade de gênero para o exercício dos
papéis maternos, e, na maioria das vezes, é a própria mulher que se constitui
elemento de reprodução e manutenção dessa identidade. São situações que podem
gerar relação conflitante entre mãe e filha quanto ao que significa ser mãe.
3.5.2 Ajudando nos afazeres domésticos e prestando cuidados
O suporte e ou apoio do seu meio relacional, na maioria das vezes, advém da
própria mãe durante as primeiras semanas no pós-parto.
A minha mãe sempre me ajudou muito nesse ponto, sabe? Ela faz quase todo o
serviço. Agora que eu estou começando a fazer o serviço de casa.Naira (filha).
Arranjos familiares são realizados para que a mãe possa ajudar na maternidade
da filha: mudando de residência temporariamente, conciliando licença no
trabalho com o período de pós-parto da filha.
Algumas mães revivem com a maternidade das filhas as próprias dificuldades
quando se tornaram mães. O vínculo de proteção para com a filha que está em
fase de restabelecimento puerperal é re-encenado.
Ah, no resguardo [...] ela ficava muito brava comigo. Ela falava:
mãe! Eu não estou doente! [...]Eu tive que ter um pouco mais de
repouso, por causa da operação né? Eu queria fazer tudinho para ela,
né? Só que ela não aceitava não,Ângela Maria (mãe).
O reconhecimento do valor social da prática do cuidado prestado pelas mulheres
é um fato social atribuído à mulher devido à antiqüíssima divisão social do
trabalho(22). A mãe ao prestar cuidado se respalda no conhecimento
interiorizado do vivido, na experiência de toda uma vida. A mãe como prestadora
de cuidados toma para si a responsabilidade e o compromisso(23).
O cuidar é uma atividade regida pelo gênero (...) conforme os papéis
tradicionais de gênero em nossa sociedade implica que os homens tenham 'cuidado
com' (preocupar-se) e as mulheres 'cuidam de', que se reflete sobre as
obrigações sociais atribuídas a quem cuida e sobre quem faz essa atribuição.
Nesse sentido, as mães expressam no ato de cuidar a essência do feminino de ser
para os outros(23).
3.5.3 Estar junto
Na situação particular da participação da mãe na maternidade da filha, o "estar
junto" é compartilhar dos conhecimentos e experiências. Embora possam ocorrer
conflitos, simultaneamente abre-se espaço para elas perceberem o quanto ambas
têm em comum.
Ela sempre estava junto de mim. A participação dela é estar junto, né?Vanda
(Filha).
Continuar, junto, o tempo todo [...] Por que mãe é mãe.Maria Socorro (Mãe).
Ambas têm em comum a marca da construção social pautada nas diferenças entre os
gêneros, que afetaram ou afetam suas vidas e limitam suas escolhas. Nesse
sentido, a mãe tende assumir as funções maternas e domésticas da filha e cria
oportunidade para que ela conquiste seu espaço em outras esferas.Tal situação é
sugestiva de que, inconscientemente, a mãe esteja preocupada para que a filha
não repita as suas experiências de vida. Mas guarda em si mesma a essência do
feminino de sacrificar-se pelo outro (filha), sendo esta situação percebida
pela filha de forma mais concreta,como podemos observar nas falas.
eu ainda tenho muita vida pela frente, muita coisa para fazer ,então
eu vou precisar muito da ajuda dela. Quero continuar estudando,né?
terminar o terceiro, fazer mais alguma coisa [...] ela vai precisar
me ajudar mesmo,Naira (Filha).
No entanto, não deixa de dar suporte à filha caso esta tenha escolhido galgar
outros espaços para além do doméstico.
Quantas das vezes eu saí daqui e levei a menina lá no colégio, sabe? para ela
dar de mamar para a menina. [...] Às vezes estava chovendo, aquele sol quente,
eu saía daqui, né?Glória (Mãe).
Portanto, a consciência feminista sobre novas possibilidades, novos espaços
para as mulheres está levando a uma reavaliação da importância do
relacionamento recíproco entre as mulheres e uma nova conscientização de que
tal relacionamento encerra um enorme potencial de apoio mútuo.
Nesse sentido, a mãe compartilha os momentos de maturidade da filha, constitui
elemento de aprendizado, ajuda, fortalece e reafirma as especificidades do
gênero feminino. Dessa forma, possibilita que a filha esteja presente nas
diferentes esferas sociais e ocupe outros espaços além do doméstico.
4 Considerações finais
O universo simbólico feminino de ambas as gerações, contém formulações que
reiteram a amamentação como finalidade precípua aos benefícios para a criança.
Na prática de aleitamento materno, as mulheres valorizam o aprendizado como
base para que a amamentação seja efetiva. A influência potencial de
transmissões de regras e autoridade, tradicionalmente estabelecidas pela figura
materna, perde seu lugar de destaque ante as dificuldades específicas das
filhas e um novo arranjo se estabelece: permanece o vínculo mãe-filha, mantém-
se a hierarquia e a autoridade legítima como procedimento lógico. Entretanto,
inverte-se a posição dos agentes, a mãe submete-se ao conjunto de valores
defendidos pela filha que estão fundamentados no saber científico de poder dos
profissionais de saúde.
Na concepção de mães e filhas, a "vontade" e a "paciência" para amamentar é
fator fundamental e constituinte da feminilidade e identidade de mulher. As
mulheres do passado são apresentadas como mais dotadas da "natureza maternal"
do que as da atualidade, o para elas justifica o fato de, no passado,
amamentar-se mais.
Na forma de se organizar para o desempenho das tarefas maternas e domésticas, a
parentela consangüínea parece ocupar um lugar significativo nas redes de ajuda
mútua, tanto no presente como no passado. Neste sentido, a participação da mãe
na maternidade da filha emerge significados simbólicos do que seja ser mãe,
renovando os vínculos , consolidando-os até mesmo reconciliando-os. A
concretude desta participação para as mães está na organização e
desenvolvimento das tarefas domésticas e no prestar o cuidado à filha.
Percebemos uma descontinuidade na forma de participação das mães na maternidade
das filhas, que no passado era uma relação essencialmente hierárquica. Hoje, ao
contrário, as influências são recíprocas e cada vez mais semelhantes, o que foi
simbolicamente apresentado pelos sujeitos da pesquisa como "estar junto", que
em sua singularidade envolve compartilhar dos conhecimentos e experiências.