Perspectivas para um novo modelo de organização do trabalho da enfermagem
PESQUISA
Perspectivas para um novo modelo de organização do trabalho da enfermagem*
Perspectives for a new model of organisation in nursing
Perspectivas para un nuevo modelo de organización del trabajo de enfermería
Francine Lima GelbckeI; Maria Tereza LeopardiII
IEnfermeira. Professora adjunta do Departamento de Enfermagem e do Programa de
Pós Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro
do Grupo de Pesquisa Práxis: trabalho, saúde e cidadania
IIEnfermeira. Professora Titular Aposentada do Departamento de Enfermagem e do
Programa de Pós Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa
Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa Práxis: trabalho, saúde e cidadania.
Professora da Universidade do Extremo Oeste de Santa Catarina (UNESC)
E-mail do autor: fgelbcke@nfr.ufsc.br
1 Introdução
Nas últimas décadas, o mundo do trabalho tem sofrido grandes transformações,
implicadas com as mudanças econômicas, sociais, técnicas e culturais, gerando
vários questionamentos acerca do seu lugar na vida do trabalhador. Os
diferentes aspectos são articulados entre si, como uma rede, cuja tessitura se
alarga para as diferentes profissões e ocupações, todas elas condicionadas
historicamente aos intrincados fatos da vida social.
A enfermagem, enquanto profissão inserida neste contexto histórico e social,
também passa por modificações. Novas tecnologias são implementadas, novas
formas de organizar o trabalho convivem com as velhas formas, questiona-se as
relações e a divisão do trabalho, o cuidado parcelado, entre outras
inquietações. Neste estudo busca-se refletir sobre novas formas de organização
do trabalho, visando principalmente minimizar o desgaste do trabalhador.
Embora pareça óbvio que, ao se ligar trabalho e saúde, se esteja falando da
organização deste trabalho, os estudos têm apontado pouco este aspecto.
Diferentes estudos apontam a necessidade de se aprofundar a reflexão acerca do
processo de trabalho, especificamente a organização do trabalho e a saúde do
trabalhador(1-3). Em tese de doutorado buscou-se identificar os aspectos
estruturais, organizacionais e relacionaisna organização do trabalho da
enfermagem que são determinantes no processo de desgaste dos trabalhadores de
enfermagem hospitalar e com base nestes, foram apontados alguns indicativos
para uma nova forma de organização do trabalho, não como algo prescritivo, mas
como uma proposta a ser analisada e adaptada a cada realidade. Como recorte da
tese, apresenta-se no presente artigo os indicativos para a organização do
trabalho.
2 Organização do trabalho: algumas questões
A organização do trabalho pode ser entendida como um processo que envolve as
atividades dos trabalhadores, as relações de trabalho com seus pares e com a
hierarquia e que ocorre numa determinada estrutura institucional. Sofre
influências estruturais, relacionadas à estrutura macro-econômica, bem como
organizacionais, como o modo de gestão empreendido pela instituição, que está,
por sua vez, relacionado ao modo de produção vigente. Compreende a divisão do
trabalho, o sistema hierárquico e as relações de poder, significando que, ao
dividir o trabalho, se impõe uma divisão entre os homens(4).
Com a evolução do trabalho, que passa das formas mais simples e individuais de
execução, para um trabalho coletivo e compartimentado, em que a complexidade
exige um alto grau de especialização, faz-se necessária a organização do
trabalho, como forma, principalmente, de aumentar a produção, mas também de
controlar o trabalhador e extrair o máximo de sua potencialidade. Com o advento
da industrialização, surgem as formas científicas de organização do trabalho,
que, além de buscar a produtividade, anulam o trabalhador frente aos objetivos
da organização ou instituição. A instituição, enquanto espaço privilegiado dos
tempos modernos, profissionalizou-se em torno das gerências, sendo denominado
como método ou modo de gestão, que compreende o
estabelecimento das condições de trabalho, a organização do trabalho,
a natureza das relações hierárquicas, o tipo de estruturas
organizacionais, os sistemas de avaliação e controle dos resultados,
as políticas em matéria de gestão do pessoal, e os objetivos, os
valores e a filosofia da gestão que o inspiram(5:119).
Na enfermagem, diferentes autores definem organização do trabalho da
enfermagem, como um processo coletivo de trabalho, em que os trabalhadores de
enfermagem estabelecem relações com outros trabalhadores e com os usuários dos
serviços, buscando com estes atender às necessidades da clientela(6-8). A
organização do trabalho da enfermagem é o modo como os trabalhadores de
enfermagem dispõem os seus trabalhos, fornecendo, inclusive, a base para o
trabalho de outros profissionais na instituição de saúde, quanto aos tempos,
movimentos e objetos necessários à assistência(6).
Analisar a evolução da organização do trabalho implica em entender como os
processos gerenciais foram se desenvolvendo. No caso da enfermagem, é
compreensível que a organização tenha se transformado na principal operação,
apesar de ser abstratamente tratada como 'cuidado indireto', considerado como
parte necessária para a produção do cuidado terapêutico.
Vários estudos sobre sofrimento e prazer no trabalho apontam a organização do
trabalho como determinante do sofrimento psíquico(1, 2, 4, 5, 9). Mas seriam só
o sofrimento e o prazer que podem estar relacionados à organização do trabalho?
Este estudo vislumbrou outros componentes no processo de desgaste do
trabalhador de enfermagem, decorrentes da organização do trabalho.
Os modelos clássicos de organização do trabalho "cultuam a rigidez e o
controle, processos extremamente nocivos à saúde do trabalhador, por
restringirem o espaço para negociação e expressão da sua subjetividade"(9:59).
Uma nova forma de organização deve "aproximar" processos de trabalho até então
dicotomizados, como o "cuidar" e o "gerenciar"(10), buscando a interseção
destes, no sentido de diminuir o impacto da divisão social do trabalho, aspecto
da organização do trabalho que interfere no desgaste físico e psíquico do
trabalhador.
3 Metodologia
A questão da saúde do trabalhador é complexa e multifacetária, o que dificulta
a apreensão de sua totalidade. Para uma aproximação a esta totalidade buscou-se
na pesquisa qualitativa, o caminho para me aproximar do objeto de estudo "a
saúde do trabalhador e sua relação com o trabalho", e adotei o materialismo
histórico e dialético como referencial teórico-metodológico.
O processo de coleta de dados teve início por meio de entrevista com os
diretores - gerentes de enfermagem, mediante consentimento livre e esclarecido,
levantando também os documentos das instituições que permitiram uma primeira
aproximação à realidade estudada. A coleta dos dados ocorreu em duas
instituições hospitalares da região sul do país, sendo uma instituição de
caráter público e a outra de caráter privado. A escolha destas instituições
esteve relacionada ao caráter de financiamento das mesmas, o que, em princípio,
poderia determinar formas diferenciadas de estruturação do trabalho. As
instituições foram consultadas, no sentido de se obter autorização para coleta
dos dados, bem como a proposta de estudo foi encaminhada ao Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, obtendo parecer favorável.
Nestas instituições, uma unidade clínico-cirúrgica (na instituição privada) e
uma unidade clínica (na instituição pública) foram escolhidas como espaço para
captar o processo de trabalho. A observação direta centrou-se no fazer dos
trabalhadores de enfermagem e na forma como organizam seu trabalho, sendo que a
observação do processo de trabalho, e principalmente a forma como está
organizado, foi o eixo condutor do percurso investigativo no interior das
unidades estudadas.
A última etapa de coleta de dados foi realizada junto aos trabalhadores de
enfermagem, no sentido de apreender a percepção destes sobre a relação entre
organização do trabalho e o desgaste decorrente desta, por meio de entrevistas.
Na instituição privada, foram entrevistados 14 trabalhadores, sendo três
enfermeiros, oito técnicos de enfermagem, um auxiliar de enfermagem, dois
escriturários. Na instituição pública, foram entrevistados, também, 14
trabalhadores, dos quais, quatro enfermeiros, três técnicos de enfermagem,
quatro auxiliares de enfermagem, dois escriturários e um auxiliar de serviços
diversos. Nas duas instituições os trabalhadores participaram da pesquisa,
mediante formalização por meio de consentimento livre e esclarecido.
Visando garantir o sigilo e o anonimato, as falas mencionadas no texto foram
identificados pelas siglas. Utilizou-se TS para os trabalhadores de nível
superior e TM, quando tratava-se de trabalhador de nível médio, sendo que o
número designou a ordem em que as entrevistas foram sendo realizadas.
Para a análise dos dados, utilizou-se as premissas da análise de conteúdo,
sendo que as categorias empíricas centrais foram definidas a priori, estando
relacionadas à tese e aos objetivos, quais sejam: aspectos estruturais,
aspectos organizacionais, aspectos relacionais e alternativas. Neste momento,
destaca-se apenas a categoria alternativas, na qualsão apresentadas as
possibilidades de mudanças que foram apontadas pelos trabalhadores de
enfermagem, sujeitos desta pesquisa, as que aparecem na literatura, em
experiências já realizadas, bem como as que foram visualizadas na construção da
tese.
4 Indicativos para a reorganização do trabalho da enfermagem: em busca de um
modelo democrático de gestão
Buscar e imprimir mudanças passa necessariamente pelo conhecimento da realidade
organizacional da instituição, sendo que, a partir deste conhecimento, pode-se
lançar mão de estratégias informativas e formativas, visando às mudanças
desejadas. Talvez seja uma pretensão apontar um modelo, afinal são tantos os
modelos administrativos existentes. Mais que isto, pretende-se apontar alguns
indicativos, que podem auxiliar na composição de modelos para variadas
instituições, adaptadas a cada realidade.
Os trabalhadores, mesmo que transparecendo certas dificuldades para expressar
desejos de mudança, acabaram por defini-las, sendo que foram, principalmente,
os aspectos organizacionais, seguidos pelos relacionais, os mais destacados.
Isto confirma a tese de que os aspectos estruturais, mesmo que levem à
precarização da vida do trabalhador, são, de certa forma, negados por estes,
inclusive no que concerne às estratégias de mudanças.
As alternativas propostas quanto aos aspectos estruturaisrelacionam-se
basicamente a fatores definidos pela conjuntura política e econômica, como a
necessidade de diminuição da carga horária e aumento de salários. Quanto aos
aspectos relativos à política de saúde, apontam a contratação de pessoal como
uma das estratégias para diminuição da sobrecarga de trabalho.[...]acho que
quando se aumenta o número de funcionários, se divide mais as tarefas, (...) e
melhores salários (TS1).
O que se percebe é que os trabalhadores de enfermagem identificam necessidades
de pessoal não apenas na sua equipe de trabalho, mas também em outros setores,
pois a falta de pessoal acaba interferindo no cotidiano de trabalho, quer pela
sobrecarga decorrente do trabalho da enfermagem, quer em função da organização
do trabalho no setor e na instituição. Aumentar o número de trabalhadores,
implica numa re-distribuição interna do trabalho, diminuindo, conseqüentemente,
o desgaste físico e psíquico. Há que se lembrar que a maioria das instituições
de saúde atua com um número mínimo de trabalhadores, tendo como uma das causas
o sucateamento do setor saúde.
Quanto à política de saúde, há preocupações relativas ao usuário, como
viabilizar um tratamento mais eficaz, humano, devolvendo-o o mais rápido para o
convívio familiar. Neste sentido, vale destacar que há necessidade do sistema
de saúde reorganizar-se para "reduzir o tempo de internação hospitalar,
valorizando novos espaços e tecnologias"(11:476) que permitam ultrapassar a
centralidade da internação hospitalar como forma de tratamento.
Ainda em relação às estratégias sugeridas, quanto aos aspectos estruturais,
destaca-se a necessidade dos trabalhadores de enfermagem engajarem-se nas lutas
da profissão pelo estabelecimento de um piso salarial e carga horária de 30
horas semanais, bem como nas lutas pela manutenção de um sistema de saúde
público, pautado nos pressupostos da universalidade, eqüidade, integralidade e
boa qualidade. Para tanto, os trabalhadores de enfermagem devem assumir a
responsabilidade e o compromisso com a defesa da vida, quer dos usuários, quer
de suas próprias vidas.
Os aspectos organizacionais assumiram um papel de destaque entre as
alternativas apontadas, o que acredito ter relação com o concreto vivido, que
se apresenta de forma mais consistente no cotidiano de trabalho. Os
trabalhadores sabem bem o que representa trabalhar em um ambiente insalubre,
pequeno, desconfortável, sem lugar adequado para descanso, com materiais
precários e insuficientes, implicando na qualidade da assistência. Nas duas
instituições, as condições de trabalho, representadas pela estrutura física,
qualidade e quantidade de materiais, acesso aos serviços de saúde, foram
destacados.
Ah! Ia comprar um monte de material. Aqui no box, no banheiro, como é
que tu vais colocar uma cadeira de rodas, tens que te quebrar para
erguer a cadeira para colocar dentro do box, porque aquilo não é reto
(TM 7).
Também a divisão interna do trabalho, com redistribuição de tarefas,
redistribuição dos quartos, diminuindo o ir e vir constante, bem como a questão
da informatização e a disponibilidade de material no setor, são solicitações
dos trabalhadores. Alia-se a estes fatores a organização interna do setor,
visando à ordem mesmo, organização esta que, muitas vezes, é determinada pelos
enfermeiros, que nem sempre estão junto à assistência direta, interferindo no
fazer dos trabalhadores de nível médio.
[...] distribuição dos quartos, eu não separaria por ordem, eu
separaria por parede, pensando no desgaste físico. [...] porque você
não vai ter que correr do 211 ao 216, ou do 219 ao 222, você vai
estar só com aqueles pacientes(TM 2).
Ainda em relação às alternativas propostas, chamou a atenção a necessidade dos
trabalhadores quanto à normatização. Normas são necessárias, no sentido de dar
uma direção, mas desde que sejam flexíveis, claras, aplicadas ao coletivo de
trabalhadores da instituição, bem como possam ser discutidas e definidas
coletivamente.
Existem princípios básicos de administração, os quais são reconhecidos e
sistematizados, porém pouco utilizados na área da saúde. Entre estes princípios
destacam-se: o reconhecimento do papel dos trabalhadores na vida da
instituição, o que significa a adoção de mecanismos participativos de gestão, a
responsabilidade dos trabalhadores com os objetivos e práticas institucionais,
substituindo-se as formas autoritárias de controle por espaços que permitam a
manifestação da criatividade e iniciativa do trabalhador, e a "utilização do
espaço de gestão para efetivação de mecanismos regulatórios relacionados com a
autonomia e corporativismo profissionais(12:349)",implicando na atuação dos
gestores como intermediadores nos processos de negociação entre as instituições
e o Estado, bem como com as corporações profissionais. Há, portanto, que se
caminhar no sentido de gestões que permitam a participação mais ativa do
trabalhador nos processos decisórios, quer vinculado à unidade em que atua,
relacionada ao sujeito do seu cuidado, quer vinculado a aspectos centrais da
instituição, como a definição da missão, objetivos e planejamento. Para tanto,
uma das saídas apontadas é o processo eleitoral, já que nas duas instituições,
os cargos ocupados pelos gerentes (e sub-gerentes na instituição pública) são
de confiança da direção, sendo, portanto, indicados.
Há que se reconhecer que os gerentes e administradores têm um poder de
intervenção bastante limitado dentro do atual modelo de saúde, principalmente
no setor público, em que se prevê a descentralização dos serviços, mas, ainda,
se mantém uma centralização das decisões. Também, uma forma de gestão que
envolva a equipe na discussão e resolução dos problemas pode ser uma
estratégia, mais uma vez reforçando a necessidade de envolvimento dos
trabalhadores nos processos decisórios.
[...] eu como enfermeira chefe não conseguiria mudar muita coisa
sozinha, mas ia conversar com as enfermeiras de outros setores para a
gente poder levar as propostas (TM1).
Também, relacionada ao papel do enfermeiro, destaca-se a definição de um método
da assistência, como algo que vislumbram como necessário, algo que acreditam
irá interferir na organização interna do trabalho, na qualidade da assistência
e no próprio reconhecimento do profissional. Apontam, ainda, a assistência
integral como uma estratégia para a melhoria da qualidade da assistência.
Outro ponto essencial para enfermeiros e trabalhadores de nível médio, nas duas
instituições estudadas, refere-se aos treinamentos, à educação continuada,
apontada como importante para a melhoria da qualidade da assistência.
Liberaria para estudar, liberaria horas, porque eu acho que o
Hospital é que ganha com isso, ter mais enfermeiros, quantos tem
especialização, então melhora para a instituição assim(TS 3).
Como se percebe, os aspectos organizacionais parecem mais palpáveis, mais
visíveis aos trabalhadores. Desta forma, um modelo de gestão na enfermagem deve
preconizar a participação dos atores envolvidos (trabalhadores e usuários), na
definição de normas claras e objetivas, para os diferentes segmentos
institucionais, conquistando condições de trabalho adequadas, dignas, visando à
assistência de qualidade.
Como estratégias de re-organização referentes aos aspectos relacionais, os
trabalhadores indicam questões que dizem respeito principalmente à equipe de
enfermagem, às relações internas, bem como às relações hierárquicas. Destacam a
necessidade de construírem relações mais harmônicas e humanas, valorizando o
sujeito trabalhador, e a realização de reuniões.
As reuniões são espaços de troca entre os trabalhadores, permitindo "aparar
arestas", trabalhar os conflitos, planejar ações, aprimorar as relações
interpessoais, compartilhar problemas, buscar soluções. São espaços que
permitem o encontro, nem que seja para festa, como dizem os trabalhadores, mas
principalmente para ajustes no trabalho.
Porque se entra numa reunião dessas, fala-se um monte, discute-se um
monte, conversa-se um monte [...] e quando você sai, sai abraçado com
o seu colega, e se ele deixar o hamper amanhã, você chega: oh!
Fulano, nós não conversamos ontem? É, seria diferente, quando tem
estas reuniões melhora(TM 5).
Os trabalhadores de enfermagem sentem também a necessidade de serem cuidados,
valorizados e apontam a necessidade de relações mais horizontalizadas na equipe
de enfermagem e com as instâncias hierárquicas. Trabalhar as relações
interpessoais pressupõe entender o ser humano como sujeito, com emoções,
desejos, pulsões. É um ser em relação, é humano e, neste sentido, parece soar
estranho aos nossos ouvidos que este ser humano clame por humanização.
Humanização de humanos parece algo redundante, mas o que quer este sujeito é
ser reconhecido como cidadão, como profissional, como alguém que tem valor
(13). A humanização da assistência, como a relação que se estabelece com o
sujeito do cuidado com este ser, também humano, e por conseguinte com emoções,
desejos e pulsões, deve ser uma relação horizontal. Destaca-se que este ser
humano deve ser entendido e atendido em sua multidimensionalidade e
integralidade, em suas necessidades, ser respeitado como cidadão.
Há que se ter em conta, que os trabalhadores, muitas vezes, resistem às
mudanças, porém, mais que resistências, alternativas foram apontadas pelos
trabalhadores, mesmo que ainda timidamente. Tomando por base estas alternativas
e o que refere a literatura, principalmente na área de saúde coletiva(12,14)
acerca dos modelos de gestão e propostas de reorganização do setor, nos
aventuramos a apontar o que se entende seria um modelo de gestão democrático.
Salienta-se, ainda, que alguns dos pontos encontrados neste estudo referendam
outro estudo que também apontou alguns indicativos para uma nova organização
institucional da enfermagem, sendo que este referencial também serviu de base
para compor o modelo apresentado(8).
Estes indicativos seriam utilizados num cenário dado uma unidade de internação
(por exemplo), que está inserida num contexto institucional, que tem missão e
objetivos definidos (coletivamente), cuja referência é o cidadão e suas
necessidades. Neste cenário, estão presentes diferentes atores - usuários e
trabalhadores de saúde (entre os quais os de enfermagem), sendo que os usuários
têm necessidades específicas que definirão o processo de trabalho a ser
realizado. Há, também, necessidades dos próprios trabalhadores (reconhecimento
e satisfação com o trabalho, autonomia, criatividade) que devem ser
consideradas. Tanto usuários, como trabalhadores, devem ser acolhidos enquanto
sujeitos, cidadãos, buscando-se no estabelecimento de vínculos, por meio do
respeito, do compromisso e da autonomia, em que se considere a inclusão da
pessoa e também o seu ajustamento e os conflitos decorrentes das diferenças
subjetivas postas em contato.
Frente às necessidades dos usuários (sem desconsiderar a dos trabalhadores),
estabelecem-se conjuntamente as decisões, a forma de atuação, quem será
responsável pela assistência, com responsabilidades compartilhadas entre
diferentes trabalhadores da área da saúde. Estabelece-se uma relação de
confiança, tendo cada trabalhador certa autonomia na tomada de decisão,
utilizando para tal sua competência técnica e sua habilidade relacional, num
permanente processo criativo.
Salienta-se a importância do processo de planejamento, que pode permitir não só
a sua racionalização, mas também a interação dos trabalhadores, se for
compartilhado. A avaliação conjunta acerca da resolução das necessidades deve
ser, portanto, compartilhada, permitindo a reorientação de condutas, quando
necessário. Busca-se, com isto, tanto a satisfação dos usuários, quanto dos
trabalhadores. Este processo deve estar permeado por algumas características:
direção colegiada, com organogramas horizontalizados, definição de missão e
objetivos coletivamente, liderança compartilhada, diluindo de certa maneira o
poder, tomada de decisão conjunta, interface dos serviços, interface com a
direção, estabelecimento de plano de cargos e salários, valorização
profissional, reconhecimento social do trabalho, complementaridade das
dimensões pessoais, profissionais e institucionais.
É no sentido de valorização efetiva dos sujeitos e dos processos
intersubjetivos no interior das organizações, visando a criatividade, a
autonomia, a afetividade, que pensa-se que este modelo possa contribuir. Este
modelo visa alterar, principalmente, as relações que ocorrem no processo de
organização do trabalho, sem destituir a disciplina, a ordem, as normas, tal
como apontaram os próprios trabalhadores, mas possibilitando a sua participação
efetiva como sujeitos ativos da instituição. Trata-se, efetivamente, da
proposição de uma lógica democratizante, circular e motivacional, com o
objetivo de fortalecer vínculos satisfatórios entre os trabalhadores e destes
com o trabalho, na perspectiva de promover a reestruturação interna da produção
da assistência, sem perder de vista sua imersão na rede mais geral da produção
social.
Desde o ponto de vista da filosofia do materialismo histórico e dialético, não
há propriamente mudança social sem mudança subjetiva e vice-versa. E não seria
próprio pensar que há somente um modo, linear e contingente, para produzir-se
tal mudança.
Assim, propor transformações a partir do micro espaço institucional é antes de
tudo, responder e resistir à imposição da reprodução de processos desumanos de
organização do trabalho e dos trabalhadores, que são impelidos a suspender sua
subjetividade e a aderir a uma impessoalidade constrangedora, quase robotizados
na rotina diária. Há que se repensar novas formas de organizar o trabalho,
visando a responsabilização, a humanização, a participação.
5 Considerações finais: ou um novo recomeço
Podemos no perguntar, é este um novo modelo? Não, não é nada de muito novo, mas
se tem constituído num desafio colocar em prática um modelo desta natureza, e
penso que, muito mais por resistência dos próprios enfermeiros, que têm medo de
"perder" poder, ao compartilhá-lo. Esquecem, no entanto, que compartilhar
significa partilhar, participar, compartir, ou seja, somar mais que dividir.
Portanto, mudanças se fazem necessárias, no sentido de minimizar o processo de
desgaste do trabalhador, o que, inclusive, foi definido pelos trabalhadores de
enfermagem neste estudo. Tem-se, agora, que partir do desejo para a ação.
Ao analisarmos as três grandes categorias - estruturais, organizacionais e
relacionais, observamos que a enfermagem tem um pequeno poder de interferência
no que se refere aos aspectos estruturais, porém é nas categorias relacionadas
à organização e às relações que a enfermagem possui poder decisório, podendo
alterá-las. E é nesta direção que foram apontadas muitas das alternativas
propostas para uma nova forma de organizar o trabalho, proporcionando um
trabalho mais inteiro, prazeroso, que permita ao trabalhador expressar a sua
multidimensionalidade, diminuindo, com isto, o impacto do trabalho sobre seu
processo de desgaste.
Frente ao trabalho da enfermagem no contexto atual, que desafios temos, no
sentido de avançar, de efetivamente transformar o trabalho da enfermagem, de
implementar novos modos de organizar o trabalho? Muitos são os desafios, e para
isto a enfermagem tem discutido formas de implementar um trabalho que minimize
o desgaste do trabalhador, que garanta a valorização da profissão, sua
participação e responsabilização na definição das políticas públicas, que
possibilite relações mais harmônicas na equipe de enfermagem e com os
diferentes profissionais da saúde. Considerando que as mudanças necessárias
ocorrem principalmente pela vontade ou desejo dos que compõe a profissão, está
em nossas mãos definir os rumos que a enfermagem deve seguir, visando um
trabalho que se coadune com um dos seus lemas, ou seja, vida com justiça
social.