Prostituição na adolescência: interfaces com a instituição familiar
PESQUISA
Prostituição na adolescência: interfaces com a instituição familiar
Prostituti in adolescence: interfaces with the family institution
La prostitución en la adolescencia: interfaces con la institución familiar
Stella Maris Nogueira BotelhoI; Maria das Graças Carvalho FerrianiII
IEnfermeira. Mestranda em enfermagem em Saúde Pública, EERP - USP. Enfermeira
da Unidade de Prevenção do Programa Municipal de DST/Aids
IIEnfermeira. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil
e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - Universidade de São
Paulo
E-maildo autor: betas@netsite.com.br
1 Introdução
As reflexões que nos propomos a realizar são preliminares e portanto sem a
intenção de produzir uma análise conclusiva com relação ao assunto. Porém,
apontaremos algumas questões fundamentais, de tal forma a ampliar os horizontes
na busca para a compreensão do fenômeno da prostituição de adolescentes e suas
interfaces com a instituição familiar.
Assim, entendemos que uma análise do contexto familiar
compreenderia relações intrafamiliares conflituosas em função da
educação autoritária dos pais, ou ainda a total alienação e ausência
dos pais frente aos filhos. Estas relações facilitariam a criança e/
ou adolescente a abandonar o lar e encontrar nas ruas um ambiente
mais agradável, ou mesmo obter da prostituição e da gratificação
sexual, amor, carinho e atenção não recebidos dos pais(1:3).
Para as adolescentes inseridas na prostituição, esse contexto parece sinalizar
uma ordem natural das coisas, em que parecem aceitar com resignação essa
condição. Estar sem o amparo, o afeto da família e de suas relações podem
propiciar relações de domínio sobre esses atores, que nesse momento se
apresentam frágeis e sem condições de protestar ou até mesmo oferecer
resistência na troca pelo calor do acolhimento que lhe está sendo oferecido e
que tanto busca e necessita.
Todas as famílias têm uma história, portanto não se originaram do vazio,
estando articulada à história social, política e econômica do lugar e da época
em que vivem, facilitando e ajudando compreender a sua dinâmica, comportamentos
e atitudes diante da vida, dos filhos, dos relacionamentos e dos conflitos que
se apresentam a todo momento.
Ainda sobre as teorias da família,
na medida que reconhecem seu caráter de instituição mediadora entre
indivíduo e sociedade sempre terminam por orientar a análise no
sentido de contemplar, simultaneamente, tanto as suas relações
internas, quanto as suas relações externas(2:43).
Não pretendemos nos referir à família somente no sentido de aferir-lhe a
responsabilidade no fenômeno da prostituição de adolescentes, é preciso tecê-la
enquanto uma instituição dinâmica, ausente de posturas e relações estáticas,
enaltecendo sua diversidade que podem vir a ser possibilidades de uma melhor
qualidade de vida, porém em contrapartida estarmos atentos para o que também
poderiam ser situações e aspectos desestruturadores das potencialidades na
evolução da instituição familiar, bem como de seus membros.
As profundas transformações que vem sofrendo as famílias e que têm provocado
mudanças nos papéis, valores e cotidiano familiares, torna-se importante não
culpabilizá-las, pois o momento social, cultural, econômico e político que
vivemos, deixam-nas sozinhas diante da imensa e difícil tarefa de sustentar,
criar e educar seus filhos, sem que tenham a mínima retaguarda que possam
estruturá-las diante das situações de adversidades que as permeiam.
A família necessita ser apreendida em suas múltiplas mediações, inclusive nas
suas especificidades emocionais, "é importante compreender as
subjetividades que envolvem a família, seus estilos de relação e a maneira como
eles afetam a atmosfera psicológica entre seus membros"(3).
Romanelli(4), se refere à família, tecendo comentários em que o
cerne da vida doméstica é estruturado por relações de autoridade e de
poder, permeadas por vínculos de afetividade. As formas de
sociabilidade na família são pautadas pela articulação entre essas
relações estruturais e a expressão de sentimentos e de emoções está
mesclada, de modo ambíguo e nem sempre explícito, à dominação e
também à sua contestação(4:27).
Por não ser estático, o seu processo de desenvolvimento estará submetido a uma
desestruturação gradativa das relações e laços entre seus membros. Dessa forma,
precisamos olhar essas famílias "[...] a partir de suas concepções reais,
da visão que elas têm de si próprias, de suas vivências familiares concretas,
bem como de suas concepções ideais ou expectativas de realização"(3:219).
A pauperização das famílias brasileiras vem sendo apontada como um dos fatores
determinantes do ingresso de crianças e adolescentes na prostituição, pela
queda do poder aquisitivo do chefe de família, pelo aumento de mulheres
(sozinhas) chefes de família e pelo crescente desemprego, como modelo sócio-
econômico que atualmente vivemos.
Salientamos este aspecto nas camadas populares em que
uma família que se baseia na articulação entre o trabalho doméstico e
o trabalho remunerado, mas que, reiterada, embora intermitentemente,
termina por recorrer ao trabalho feminino remunerado e, dada a
precariedade deste, ao trabalho das crianças e jovens, ao mesmo tempo
em que busca prolongar a escolarização dos filhos [...](2:47).
Contudo, esse prolongamento da escolarização, não se confirma, pois todo o
contexto dessas relações conflituosas, agravam as situações de fracasso e
evasão escolar e embora a escola não seja uma garantia de superação desses
conflito, "o espaço escolar representa uma oportunidade de resgate e
superação das inúmeras carências presentes neste contexto"(5:63).
A pobreza não é o único determinante da violência estrutural dessas famílias,
mas em suas raízes encontramos um processo de fragilização social e situações
adversas, que condicionam a privação de alimentação, moradia, proteção, escola
e acentuadas relações de violência intrafamiliares, bem como facilitadas pelo
uso e o comércio de drogas ilícitas, pelo alcoolismo, promiscuidade, desemprego
e pela frustração social dos seus membros, no cotidiano da sociedade. Mas
[...] se eles não têm acesso ao mundo do trabalho regular, à saúde, à
escola, suas possibilidades de realização acabam ficando restritas,
porque o clima psicológico de seu cotidiano fica comprometido pelas
tensões e pelos conflitos daí derivados(3:227).
Porém, não podemos deixar de considerar que "a despeito da pobreza ou da
falta de conforto vivido nas famílias reais, são elas que ainda representam a
segurança emocional, [...], mais do que a falta de dinheiro, é a afetividade
que importa [...]"(3:226).
Em toda a história da sociedade ocidental está o fato, não raro da imagem de
mulher, mãe devotada, esposa dedicada e objeto sexual passivo.
[...] em todas sociedades contemporâneas, de alguma forma, há o
domínio masculino, e embora em grau e expressão e subordinação
feminina varie muito, a desigualdade dos sexos, hoje em dia, é fato
universal na vida social"(6:19).
A prostituição de adolescentes considerada como exploração sexual, é incluída
como uma forma de violência, definida como uma situação que aparece geralmente
em
[...] relações assimétricas e hierárquicas de desigualdade e/ou
subordinação, onde o violador toma decisões sobre a vida do violado,
sem avaliar as necessidades básicas e os desejos deste, levando em
conta, unicamente, as suas próprias necessidades e seus desejos(7:3).
Dessa forma, percebemos nitidamente a desigualdade nas relações entre os sexos
e a violência que pode se apresentar sob diversas faces. Uma delas é a que se
esconde sob o véu da instituição familiar enquanto espaço velado, privado e
protegido, criando um certo isolamento, onde o gênero é uma outra
característica que se apresenta como desigualdade básica no exercício da
violência nessa instituição, além de ser onde se cultiva o "segredo".
A confiança, o respeito e o afeto são substituídos por abusos na relação de
poder do gênero e negligência.
Muszkat(8) afirma que
[...] para tornar-se homem ou mulher é preciso submeter-se a um
processo que chamamos de socialização de gênero, baseado nas
expectativas que a cultura tem em relação a cada sexo. É a família,
como principal agência socializadora, quem tem as suas funções
concentradas na formação das personalidades(8:226).
Com relação ao sexo, observamos que a criança/adolescente/mulher se apresentam
como a vítima mais freqüente. As crianças e adolescentes acabam sofrendo os
impactos desse processo, sendo feridas em seu processo de desenvolvimento, com
ruptura de vivências que beneficiariam a promoção à saúde. Assim,
o poder (quase) absoluto que um homem tem sobre uma criança, o prazer
de dominar/possuir alguém no que tem de mais íntima: sua vida sexual,
leva-nos a acreditar que os motivos da violência sexual ultrapassam o
prazer sexual, para se constituir como uma forma de abuso de poder(9:
35).
As repercussões na vida das adolescentes vitimizadas pela exploração sexual,
encontra-se bem delineadas,
mesmo obtendo algum dinheiro, perdem a autonomia, o direito sobre si,
a decisão sobre o seu corpo e seu destino, com conseqüências sobre
seu equilíbrio psicossocial, sua saúde, sua educação. A prostituição,
para alguns especialistas, não é vista como trabalho e sim como
escravidão até mesmo para adultos. Para crianças e adolescentes,
representa, de fato, uma forma de escravidão, pois estão envolvidas
numa relação de opressão da qual é difícil escapar(10:12).
2 Objetivo
Conhecer e analisar o contexto e o significado da dinâmica da instituição
familiar e suas interfaces com a prostituição de adolescentes.
3 O caminho metodológico
Utilizamos a metodologia com abordagem qualitativa por considerarmos um estudo
de cunho social, revelando o sujeito em seu contexto individual e coletivo com
suas crenças, valores e sentimentos. Este tipo de estudo, permite
"penetrar num campo polêmico onde há questões não resolvidas e onde o
debate tem sido perene e não conclusivo"(11:20).
Optamos pela Pesquisa Estratégica, pois ela permite orientar-se "para
problemas que surgem na sociedade, ainda que não preveja soluções práticas para
esses problemas. Ela tem a finalidade de lançar luz sobre determinados aspectos
da realidade"(11:28). A técnica utilizada para a coleta dos dados foi a
História de Vida Tópica, pois para Minayo, "ela dá ênfase a determinada
etapa ou setor da vida pessoal ou de uma organização"(11:28).
O presente estudo foi realizado com adultas jovens que exerceram ou exercem a
prática de prostituição na zona norte de Ribeirão Preto, em específico nos três
bairros anteriormente citados. Na seleção das adultas jovens profissionais do
sexo, utilizamos os seguintes critérios de inclusão no estudo: aceitar a
gravação das entrevistas em fita cassete; consentir em participar da pesquisa,
através da assinatura do Termo de Consentimento livre e esclarecido; estar na
faixa etária de 20 a 24 anos de idade; ter iniciado a prática da prostituição
no período da adolescência; ter cinco ou mais anos de experiência nessa
prática.
Todo o processo de coleta dos dados seguiu as diretrizes éticas e legais para a
pesquisa científica do Conselho Nacional de Ética (Portaria 196/96), seguindo-
se a aprovação no Comitê de Ética, preservando totalmente o anonimato dos
sujeitos entrevistados na divulgação dos resultados do estudo, entre outros.
Para o tratamento e análise dos dados, utilizamos como método a análise de
conteúdo como técnica a Análise Temática, pois "consiste em descobrir os
núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença, ou freqüência de
aparição podem significar alguma coisa para o objetivo analítico
escolhido"(12:106).
4 Resultados e discussão
Identificamos como núcleo temático, Em cena: o contexto familiar, sendo
dividido em 2 sub-temas: Relações familiares conflituosas e A violência
intrafamiliar.
4.1 Relações familiares conflituosas
Em todas as famílias, permeiam um complexo de relações que se articulam à
história social, cultural e econômica do lugar em que vivem. Nesse contexto,
dependendo dos atributos que foram oferecidos aos seus membros, as situações
conflitantes poderão ser vividas de forma tranqüila ou não, deixando profundas
marcas que se refletirão futuramente. Observamos que a maioria das
entrevistadas são primogênitas, sendo necessário um análise desse contexto.
Acreditamos que o primogênito de uma maneira geral, carrega consigo um grande
carga de expectativas e responsabilidades por parte não só dos pais, mas de
todos os membros familiares.
Em sua pesquisa realizada com filhos primogênitos, observou-se que além das
expectativas, ocorre um grande nível de exigência quanto aos encargos
domésticos, muitas vezes inadequados para a idade cronológica que se encontram
no momento, podendo acentuar as situações de conflitos e estresse(13). Também
fica salientado que quando se trata de primogênitas do sexo feminino, essa
situação tende a aumentar essa zona de conflito, pelo fato de aumentar as
exigências e expectativas.
Verificamos nas falas dos sujeitos entrevistados, uma grande lacuna deixada nas
situações de abandono ou morte da mãe e também a forma que foram convivendo com
o fato de não serem filhas biológicas de um dos pais.
Com 5 anos, 5 anos [...] Só era eu, minha mãe só era amante do meu pai, né?
Saber? Bem depois, já com quase 15 anos(A1).
Eu acho que o abandono da minha mãe [...] minha mãe eu acho que me motivou
[...] a revolta de às vezes ter que perguntar alguma coisa e não ter uma mãe
para perguntar (A1).
Eu não tenho mãe [...] minha mãe faz 7 anos que faleceu. Sentir falta dela eu
sinto, mas foi porque eu quis mesmo começar nessa vida (A2).
Tudo foi partir que havia muitas brigas. Ele só sabia de violência, de brigar e
xingar [...] por mais que eu passava por cima, ele vinha e me humilhava cada
vez mais(A3).
[...] uns 8 ou 9 anos de idade [...] fiquei sabendo que meu pai não era meu pai
[...] uma criança se revolta por saber que o pai não é o verdadeiro (A4).
[...] ficar numa família que a minha irmã me chama de bastarda [...] pô minha
mãe já morreu. Simplesmente ocorreuum assassinato, jogaram a minha mãe do 5º
andar. Como eu não tinha uma família unida, eu tive mesmo que ter entrado, foi
necessidade [...](A4).
O sentimento que se aflora de não pertencer ao núcleo familiar como os outros
membros, faz emergir um grande anseio de procura por uma identidade, que não
mais consegue apreendê-la no interior das suas relações.
A forma como foi elaborado o luto pela morte da mãe (A4), como também as
condições em que o fato ocorreu, gerou uma fragilidade ainda maior de seus
sentimentos, favorecendo a adoção de atitudes e comportamentos de revolta e
agressividade. Quanto ao abandono e a perda da mãe,
[...] tudo se torna diferente, havendo necessidade de adaptar-se não
só a novos hábitos, mas a novos sentimentos. Perdem o objeto de amor
[...] partem em busca de novas relações.
Em um dos relatos, percebemos que ao mesmo tempo que fala de um opção sua por
ter iniciado a prática da prostituição, também retrata um sentimento de perda
da mãe há 7 anos e sabemos que iniciou na prostituição há 6 anos. Portanto,
fica claro a carência para a elaboração da perda, do luto. Verificamos em outra
fala, considerações da mesma natureza:
Eu tava me sentindo assim, aliviada porque eu tinha saído da minha
casa [...] os meus irmãos são bem morenos e eu sou a branquinha [...]
aí aquilo me revoltou, aí quando eu tive a primeira oportunidade pra
sair de casa, eu não pensei, enfrentei o mundo(A1).
A ausência do diálogo, também se conforma como outro aspecto que agrava os
conflitos intrafamiliares e as relações entre seus membros, como carinho,
respeito e aproximação como elo de ligação. Assim, "para alguns, falta de
tempo para conversar, e outros alegam que não sabem muito bem como faze-
lo"(2:223).
Lá em casa as pessoas tem muito respeito, então ninguém não comenta sobre muita
coisa (A1).
O meu namorado quando eu perdi a minha virgindade, olha só a cabeça
[...] tô tomando 2 por dia, porque eu não sabia como eu tinha que
fazer. Aí a mãe dele me explicou. [...] foi com 14 anos, [...](A1).
Eu tinha noção de como me prevenir das doenças e da gravidez, porque
eu já tinha conversado muito com minha mãe sobre isso, tinha
conversado muito com minhas amigas assim, mais sérias da boate [...]
(A2).
A primeira vez foi com meu namorado e a gente não usava camisinha, e
hoje eu só transo com camisinha, [...], tinha mulher que quando tinha
alguma coceira na vagina, algum ardume, a dona da boate passava
limão. [...] eu não sabia assim de segurança [...](A3).
Aí eu tirei minha virgindade com um rapaz que tinha 18 anos e eu 12 anos de
idade, fiquei grávida, perdi o nenê (A4).
Da primeira vez, eu não sabia o que fazer, eu não sabia o que
conversar, ou que preço a expor, né, da minha pessoa, aí eu fiquei
perdida [...] o rapaz me deu a camisinha na mão, eu nem sabia o que
era preservativo, né, tinha 17 anos [...](A4).
Iossi(14) retrata a dificuldade e despreparo que os pais enfrentam ao se tratar
de assuntos relacionados à sexualidade. Aponta que devido a repressão a que
sempre foram submetidos, "[...] preferem não tocar no assunto, pois
convivem com a ambivalência de antigos valores e novas situações, não sabendo
de fato como orientar seus filhos, [...]"(14:100).
[...] a família, além de ser o grupo social que deveria proporcionar
suporte emocional adequado, por meio de um ambiente de trocas,
diálogo aberto e orientação sexual, ainda está encontrando
dificuldades em abrir espaços para discutir estes assuntos com os
filhos(15:162).
Portanto, acreditamos que a responsabilidade da família, em especial dos pais
são de fundamental importância na aquisição de informações mais precisas que
conceba aos adolescentes conhecer a sexualidade de maneira integral e correta.
Outros adultos também podem ser significativos na aquisição de conhecimentos,
mas no caso dos sujeitos entrevistados, vimos que foram momentos em que
justamente já não mais se encontravam numa instituição escolar, local que
poderia ser fonte de informações através de professores bem preparados.
4.2 A violência intrafamiliar
Nos preocupa que no seio da instituição familiar ainda ocorra situações, não
raras, em que crianças e adolescentes continuem sendo violentados e maltratados
por pessoas que concebemos como àquelas que tem o dever de protegê-las. Essas
inter-relações deveriam se dar sob o véu da confiança para propiciar a esses
sujeitos, ainda frágeis e dependentes, um processo adequado de desenvolvimento
em todas as dimensões.
Verificamos nos relatos de duas entrevistadas, situações de violência física,
negligência e violência sexual doméstica (incestuosa). Portanto, relacionamos
as falas que contemplam tal contexto.
Meu pai e minha mãe me batia desde os 3 anos de idade e só pararam
com 13 anos quando eu saí de casa. Eles batia na cara da gente, minha
mãe me empurrou [...] era família que não tem amor igual as outras,
que não tem carinho(A3).
E eu apanhava de fio, de borracha, de pneu, é [...] de mangueira, de vara de
guaxim [...](A3).
Em parte foi né, por tudo que eu já passei com 8 anos de idade, o meu
padrinho se masturbava e eu dormindo, e uma vez eu acordei e ele tava
passando o pênis na minha bunda e gozando em mim [...] sabe e eu
lembro disso e me dá uma dor no peito, e no meu coração uma mágoa
[...](A4).
A violência intrafamiliar aqui apresentada pelas falas, nos remete a discutir
alguns aspectos conceituais acerca do contexto, que se expressa por
atos de ação ou omissão advindos dos pais ou dos responsáveis,
julgados a partir de uma mistura de valores da comunidade e da
experiência profissional como sendo inapropriados e danificadores(16:
40).
Nestes atos de ação, verificamos um complexo dinâmico nas relações entre seus
membros, ordenados em função dos papéis, poder e autoridade que exercem em seu
cotidiano. Portanto, o papel de proteção perde espaço para que se concretize as
relações de poder (através do uso da força) e as relações assimétricas
(desigualdade). A criança se torna vítima indefesa e impotente diante da grande
descarga de agressividade do adulto.
O contexto da sociedade ocidental é androcêntrica e adultocêntrica, onde:
"A relação de dominação-exploração que se estabelece entre o homem, de um
lado, e a mulher e criança , de outro lado, é de uma relação de poder. O adulto
detém poder sobre a criança"(17:50). Dessa forma, verificamos claramente a
hierarquia de gênero e etária, em que permeia a idéia de inferioridade da
criança e do adolescente em relação ao adulto. "O homem adulto é o mais
poderoso, e a criança é destituída de qualquer poder"(17:51). A ABRAPIA
(7), nos traz os conceitos de violência física que bem se inserem no contexto
analisado.
Uso da força física de forma intencional, ou os atos de omissão
intencionais, não intencionais, praticados por pais ou responsáveis
pela criança ou adolescente, com o objetivo de ferir, danificar e
disciplinar esta criança/adolescente, deixando ou não marcas
evidentes"(7:8).
Quanto ao violência sexual doméstica sofrida por um dos sujeitos entrevistados,
traremos à luz, alguns conceitos que tornarão mais claro e evidente a situação
em que se deu o fato. Azevedo & Guerra(16), considera que o conceito de
abuso-vitimização sexual, está longe de ser preciso, mas o considera como
todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, entre
um ou mais adultos e uma criança menor de 18 anos, tendo por
finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para obter
uma estimulação sobre sua pessoa ou de outra pessoa(16:42).
Esse conceito, como refere a própria autora, permite abranger o incesto por se
tratar de uma violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes. Define
como
toda atividade de caráter sexual, implicando uma criança de 0 a 18
anos e um adulto que tenha para com ela, seja uma relação de
consangüinidade, seja de afinidade ou de mera responsabilidade(16:
42).
Outra definição que considera o incesto como
qualquer relação de caráter sexual entre um adulto e uma criança ou
adolescente, entre um adolescente e uma criança, ou ainda entre
adolescentes, quando existe laço familiar, direto ou não, ou mesmo
uma mera relação de responsabilidade(7:9).
Portanto, em nosso entendimento, se trata de uma definição de grande amplitude,
tanto no que se refere ao agressor (maturidade ou não), quanto aos aspectos de
proteção da criança e do adolescente em situações consideradas interditas pela
lei ou costume(16).
A fragilidade e a desestruturação das relações interpessoais no seio familiar,
se portou como solo fértil e fecundo para que as situações de violência ali se
instalassem e gerassem uma rede em cadeia de acontecimentos, favorecendo um
baixo nível de auto-estima, evasão escolar, sentimentos de não pertencimento e
ausência de projetos de vida.
5 Considerações finais
Através da experiência vivida e relatada por adultas jovens profissionais do
sexo que iniciaram a prática da prostituição na adolescência, pudemos apreender
um conhecimento reflexivo e profundo revelando sua verdadeira dimensão, que se
articula sob a ótica dos aspectos históricos, culturais, sociais, políticos e
econômicos.
No contexto familiar pudemos constatar a existência de uma grande zona de
conflitos nas relações entre seus membros e na forma como estes vêm elaborando
as situações adversas tão presentes em nosso cotidiano. Consideramos a
instituição familiar desprovida de atenção no que se refere as possibilidades
de acesso aos mais variados tipos de necessidades que poderiam propiciar sua
plena estruturação com vistas ao enfrentamento das adversidades e manutenção da
harmonia em suas inter-relações.
As situações de violência intrafamiliar proporcionaram às adolescentes, um
sentimento de inferioridade e desconfiança em relação ao adulto e, novamente se
acresce os fatores determinantes para a ruptura das relações familiares que
deveriam servir de apoio e segurança, impulsionando essas adolescentes ainda
frágeis e dependentes, para a saída dos seus lares de origem como uma forma de
fugir da opressão e iniciar a procura por um lugar de acolhimento.