Para uma história do presente do brincar e das práticas em saùde
PESQUISA
1 Introdução
O objetivo deste artigo é introduzir a necessidade de fazer uma aproximação
histórico-discursiva para contextualizar e analisar criticamente as práticas
discursivas e não discursivas relacionadas aos espaços para o brincar nas
enfermarias pediátricas. É dizer uma re-problematização dos dispositivos
ligados ao brincar.
O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA(1) promulgado por Lei Federal em
1990 é um documento norteador de uma nova visão, ligada ao campo da infância e
da juventude. O ECA indica e delimita o marco jurídico-institucional a partir
do qual os "menores" passam de uma posição de objeto ao de sujeito pleno de
direito.
Do menor como objeto de compaixão-repressão à infância - adolescência como
sujeito pleno de direitos é a expressão que melhor poderia sintetizar suas
transformações(2). Esta passagem não é uma simples figura retórica, ela é uma
ruptura na continuidade histórica, representacional e discursiva, dos
dispositivos ligados à infância.
Dentre as conseqüências do ECA, está a de estabelecer um modo diferente do
adulto se relacionar com as crianças. Podemos dizer que há um antes e um depois
do ECA e, que os efeitos sobre os cuidados em saúde, deveriam supor e
concretizar mudanças e transformações no cotidiano hospitalar.
Contemporâneo ao ECA, assistimos a uma constante criação de espaços para o
brincar(3) nas enfermarias pediátricas que vêm mudando o cotidiano
institucional hospitalar. Estes espaços condensam inúmeras relações e trocas
entre os profissionais e não profissionais, as famílias e as crianças.
Mesmo sem propô-lo estrategicamente e taticamente, (aceitações, inibições,
resistências mediante), a necessidade de um fazer transdisciplinar, atravessa
fundamentalmente as práticas de cuidados em saúde. Tanto as dimensões jurídico
- institucional e histórico-cultural, quanto às ligadas ao discurso médico, se
vêem confrontados por ter de fazer alguma coisa qualitativamente diferente.
O atual estatuto social da criança denuncia as antigas e velhas formas de
intervir em nome delas, questionando o conhecimento que o adulto vem
construindo e tem construído em relação à criança. Na procura de um saber que
possa integrar as novas formas de pensar a infância e a sua subjetividade é
preciso despir-se, primeiramente, dos efeitos dos discursos ligados às
políticas higienistas e medicalizadoras que formam parte do constituído
institucional e discursivo.
Neste contexto, as práticas de cuidados em saúde não podem ignorar a
"urgência", uma urgência que grita por começar a pensar criticamente e tomar a
iniciativa em relação às mudanças necessárias, em função do lugar estratégico
que os profissionais e não profissionais das equipes de saúde ocupam relação à
criança hospitalizada.
Da criança disciplinada à criança sujeito de um direito, das práticas
hospitalares disciplinadoras a uma equipe de saúde responsável de devolver a
palavra a uma criança que, historicamente, esteve condenada ao silêncio, parece
ser o trabalho e o desafio a que somos convocados. Os hospitais, silenciosos,
brancos, sem vida, se vêm invadidos pela indisciplina criativa e a desordem
própria de uma criança que faz saber sobre seu sofrimento, mas também das suas
esperanças através do seu brincar.
Para que um dos direitos contemplados no ECA, o direito ao brincar, seja
efetivamente garantido nas instituições e práticas hospitalares, para que possa
sair do papel e a sociedade, como um todo, se aproprie dele, é necessário não
somente a existência e disponibilidade de espaços e recursos materiais para
brincar, senão também e ,fundamentalmente, a presença de um adulto que seja
capaz, ele próprio, também de brincar.
Não se trata de que este adulto participe através de uma simples presença,
ainda menos de uma presença vigiadora, controladora e disciplinadora, deve ser
uma maneira de estar com o outro através de um compromisso e uma entrega que
esteja além da tecnologia e ao serviço do biopoder. É um compromisso ético de
sujeito para sujeito. É neste campo das intersubjetividades que se inscreve a
experiência: espaços para o brincar.
Para que isto ocorra, a instituição - normas, profissionais, práticas e
discursos - têm de subverter um "instituído", historicamente construído, para
dar lugar à palavra que, sob a forma de brincar, a criança tem direito (e não
somente elas), nas suas formas constituintes.
Mas qual é este brincar? Quais são suas características e importância? Que
mudanças foram necessárias para que a estrutura hospitalar abrisse espaço para
seu surgimento?
Para responder a estas perguntas é necessário desconstruir saberes e práticas,
reconhecer continuidades e rupturas, ligadas ao campo da infância e dos
cuidados hospitalares. Desconstruir é para Derrida:
[...] pensar a genealogia estrutural de seus conceitos da maneira
mais fiel, mais interior, mas, ao mesmo tempo, a partir de um certo
exterior, por ela inqualificável, inominável, determinar aquilo de
que essa história foi capaz - ao se fazer história por meio dessa
repressão, de algum modo, interessada - de dissimular ou interditar
[...] escrita de si interessada que permite também ler os filosofemas
- e, conseqüentemente, todos os textos que pertencem à nossa cultura
- como espécies de sintomas [...] de alguma coisa que não pôde se
apresentar na história da filosofia, e que, de resto, não está
presente em lugar algum [...] Um tal sintoma é necessariamente e
estruturalmente dissimulado(4:13).
Para compreender como funcionam os espaços para o brincar nos hospitais é
preciso em primeiro lugar, reconhecer que por trás do funcionamento formal de
uma instituição, existem elementos que fazem parte do instituído e que são
parte do inconsciente institucional. As instituições não são meramente o
conjunto de normas e leis que regem seu funcionamento, são fundamentalmente
estruturas onde devemos reconhecer o processo vivo do instituído junto ao
instituinte. Instituído e instituinte são as duas faces presentes no conceito
de instituição. Instituição que não é unívoca, ela se apresenta ora como
unicamente repressiva, ora como unicamente permissiva
Lembrar a importância da história não significa debruçar-se sobre a
gênese temporal das instituições [...], mas analisar os
acontecimentos históricos como o produto do encontro - sempre
agonístico, às vezes trágico - entre instituições novas e
instituições antigas, ou ainda entre diversos sistemas institucionais
(5:134).
Podemos afirmar, então, que os espaços para o brincar convivem em diversos
sistemas institucionais que interagem sem ter construído um saber e uma prática
convergente. O que queremos destacar é então que por trás da aparente inocência
presente no imaginário representacional da criança e seu brincar, estão velados
múltiplos sentidos que escapam a uma análise simples. Reproblematizar tais
espaços para o brincar é a tarefa que temos por diante.
A tarefa do intelectual é a de romper com a segurança da tradição, a destruição
das evidências, re-interrogar, sacudir os hábitos, dissipar as familiaridades,
redimensionar o lugar e o valor das regras e das instituições, para tentar
construir um saber e uma verdade(6). Mas, antes de adentrarmos na análise
destas questões é preciso fazer uma digressão. Vivemos imersos, e de algum
modo, limitados por uma determinada maneira de pensar, conceber e interpretar a
realidade. É o que entendemos por:
episteme entende-se, na verdade, o conjunto das relações que podem
unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a
figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas
formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações
discursivas, se situam e se realizam as passagens à
epistemologização, à cientificidade, à formalização [...]. Temos a
possibilidade de ir além das formas e estruturas de pensamento para
tentar desvendar outros modos de fazer e desfazer "o jogo das coações
e das limitações que, em um momento determinado, se impõem ao
discurso(7:217).
Para compreender a forma como foram construídas as representações e as práticas
ligadas aos espaços para o brincar, a analítica interpretativa de
Foucault concentra sua análise exatamente nestas práticas culturais
em que o poder e o saber se cruzam, e em que nossa compreensão de
individuo, de sociedade e das ciências humanas é fabricada. A
estratégia da sua pesquisa é a seguinte: estudar aquelas ciências
duvidosas, inteiramente emaranhadas nas práticas culturais, e que
apesar da sua ortodoxia não apresentam nenhum sinal de se tornarem
ciências normais; estudá-las com um método que revela que a verdade é
um componente central do poder moderno. Assim, tendo excluído outros
métodos, Foucault emprega o único que restou: uma interpretação
histórica orientada pela prática(8:29).
A analítica interpretativa resulta ser o método com o qual podemos dar conta da
pergunta que motiva este trabalho. Este método permitirá adentrarmos nas
capilaridades discursivas das práticas institucionais e saberes associados ao
nosso objeto de pesquisa. A construção do saber e da verdade não poderá ser
iluminada a partir da auto-complacência narcísica, senão que surgirá unicamente
do confronto com o presente para analisá-lo, compreendê-lo, e, se possível,
contribuir para transformá-lo(9).
Isto supõe resgatar a capacidade de criticar questionar as próprias certezas e
os pensamentos anquilosados, ultrapassando os obstáculos epistemológicos;
abandonando os dogmatismos, preferindo as perguntas às respostas e o por fazer
ao feito(10).
Para contextualizar esta aproximação histórica aos espaços pra o brincar e as
práticas de saúde, o brincar e a infância se apresentam como elementos
constituintes privilegiados para serem analisados.
2 O brincar
Mas qual é este brincar? Quais são suas características e importância? O
brincar do qual estamos falando é o brincar tal como foi 'lido', 'escutado', a
partir da teoria e a experiência psicanalítica.
Lido e escutado porque é entendido como uma prática significante, que responde
à estrutura da linguagem. Neste sentido podemos afirmar que o brincar é a fala
da criança. O brincar entendido a partir deste contexto não é um simples
divertimento. É um trabalho psíquico e é, a partir dele, que a criança se dá um
corpo e constrói sua subjetividade.
Claro que não é esta concepção a única a partir da qual podemos pensar o
brincar da criança, a importância, as conseqüências sobre o desenvolvimento
infantil. Muitas são as disciplinas que se ocuparam e se ocupam por tratar de
desvendar o mistério escondido nesta atividade à qual as crianças dedicam boa
parte do tempo.
Para o pensamento moderno, imerso na racionalidade cartesiana, o brincar
aparece como uma atividade de difícil compreensão. O "adultocentrismo" operou
obstaculizando tanto o reconhecimento da importância do brincar para a criança,
quanto para sua problematização.
A moléstia, a incomodação que o adulto sente frente à criança brincando, foi
motivo suficiente para que começassem a ser construídos discursos e
dispositivos com a intenção de limitar, corrigir e até punir esta atividade por
ser tido considerada como prejudicial para o desenvolvimento e a moralidade da
criança. Disciplinar o brincar foi um dos objetivos das correntes moralizadoras
e higienistas que, a partir do século XIX, tornaram-se hegemônicas no
pensamento contemporâneo das práticas em saúde e da educação.
A escolha pela Psicanálise como referente para pensar o brincar se deve a que
foi no seio desta teoria que se fez o resgate do brincar nas formas
instituintes da subjetividade e do potencial subversivo e transformador
presente no seu caráter de produção.
O fato do brincar fazer parte da nossa cotidianidade e de ter sucumbido à
amnésia do período infantil, provoca uma série de confusões e opacidades. É por
isso que se faz necessário diferenciar o jogar do brincar.
A noção de jogo implica uma certa diversidade, onde cada grupo possui
uma originalidade intrínseca. Para nós, essa originalidade se estende
também ao termo brincar, já que este não possui equivalente nas
principais línguas européias: os verbos spielen ( alemão), to play
(inglês), jouer ( francês) e jugar (espanhol) significam tanto
brincar quanto jogar, e são utilizados também para definir outras
atividades, como a interpretação teatral ou musical. O termo brincar,
do português - oriundo do latim vinculum, que significa laço, união -
, possui uma especificidade que as palavras de outras línguas que o
recobrem não apresentam.
O termo que possui maior abrangência é sem dúvida ludus, do Latim. Ele remete
às brincadeiras, aos jogos de regras, a competições, recreação, representações
teatrais e litúrgicas. Dele deriva nosso termo 'lúdico', significando aquilo
que se refere tanto ao brincar quanto ao jogar(11:23).
O brincar está relacionado com o mundo da criatividade e da fantasia. Esta
função de laço é a condição necessária para a "humanização" da criança, mas,
também através do qual a criança é sujeitada ao mundo, à vida. A cria humana
está condenada a morrer sem o resgate que o adulto tem de fazer para segurá-la
à vida, como conseqüência da prematuridade constitucional com a qual nasce
(12,13).
É também, produto do interjogo, mãe-bebê, que se estabelecem os primeiros
"dizeres" entre a criança e o ambiente. Muito tempo antes da criança possuir a
capacidade de articular a palavra falada, o brincar é uma forma de comunicação.
È a fala da criança, através da qual faz saber sobre seus sofrimentos, suas
demandas e sobre a forma de vivenciar o mundo.
Winnicott chega à conclusão, após de muitos anos de trabalho com crianças e
suas famílias, a dizer que o brincar é terapêutico por si próprio(14). O
brincar teria, a partir desta concepção, a capacidade de reparar os danos
produzidos pelo ambiente e os efeitos, às vezes devastadores, conseqüência das
hospitalizações prolongadas ou das intervenções realizadas sobre o corpo da
criança adoecida.
O brincar, a diferencia do que comumente se entende, não é uma atividade
privativa das crianças ou do mundo infantil. Fazem parte da vida adulta baixo
outras formas. Num artigo escrito em 1908, Freud estabelece um elo de
continuidade entre o brincar da criança e os devaneios e a fantasia da vida
adulta.
Será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade
imaginativa? A ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os
jogos. Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como
um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os
elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que
a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua
brincadeira e despende na mesma muita emoção.
A partir das semelhanças entre uma e outra atividade podemos afirmar que no
sentido estrito o adulto nunca deixa de brincar.
Ele jamais renuncia ao prazer que esta atividade lhe proporciona. Ele deixa de
brincar no sentido comum, no sentido que estamos dispostos a abandonar com o
propósito de restituir ao brincar aquele lugar de importância fundamental na
constituição da pessoa humana. Como também assinala Miller:
Freud diz que, se os adultos não brincam como quando eram crianças, é
porque a fantasia substitui para eles a atividade lúdica infantil.
Nesse sentido, a fantasia tem uma função semelhante à do brincar, que
é - a partir de uma situação tanto de gozo quanto de angústia -
produzir prazer(15:103).
Pensar o brincar como a fala da criança implica considerá-lo na sua função
significante, com todas as conseqüências que se desprendem da teoria estrutural
da linguagem em relação ao sujeito e a estruturação subjetiva como foram
estabelecidas por Lacan(16).
Uma outra característica, de suma importância para este trabalho e de outras
pesquisas que relacionam o brincar e as práticas hospitalares é o fato de que a
saúde se espelha no brincar da criança de tal forma que toda perturbação severa
da saúde ou de cuidado se reflete em câmbios ou ausência desta atividade. O
brincar adquire aqui o valor de um signo que deve ser levado em conta no
referente ao diagnóstico precoce do estado emocional da criança, como assim
também da sua condição física.
Poder ler estes signos, escutar estes significantes, é de importância
fundamental para todo aquele que profissional ou tecnicamente está em contato
com a criança e seu padecer e sofrimento. Maud Mannoni leva as conseqüências
deste brincar ao ponto de afirmar que o brincar conserva intacto o espaço da
fantasia, como nos casos de desamparo impensável, em que o sujeito fica
aniquilado no seu potencial criativo; verdadeira barreira contra a
desintegração e a saúde mental(12).
Fora destas considerações que formam parte da atual maneira de pensar o
brincar, ele esteve sujeito às políticas e discursos higienistas e
medicalizadores.
3 A infância
Foi necessária uma verdadeira ruptura conceitual e discursiva para que hoje
possamos pensar a infância como uma construção histórica, ideológica e
cultural. Foi necessário desprendermos da idéia de que a infância se limitava a
um conceito biológico, que concebia as crianças como seres incompletos e
imperfeitos, ou como adultos em miniatura. A idéia de uma infância feliz e
angelical está praticamente sepultada do ideário contemporâneo, embora tenha
formado parte da representação que durante séculos a cultura ocidental
sustentou e com a qual foram construídos dispositivos e discursos ligados a
ela.
E importante assinalar que múltiplos e diversos discursos e dispositivos
ligados ao território(17), entendo por tal o que Foucault define território
como uma noção jurídico-política: é aquele espaço sobre o qual se exerce algum
tipo de poder. Este poder é exercido sobre os corpos dos doentes através dos
múltiplos dispositivos que o estado moderno construiu com o policiamento
médico-social-político do infantil nunca foram únicos e universais. Os corpos
dos sujeitos-crianças atravessados por uma multiplicidade discursiva e
sujeitados a diferentes dispositivos disciplinares, continuam fragmentando o
saber em torno deles. O corpo para Foucault é uma superfície de inscrição dos
eventos (enquanto a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), local de
dissociação do Ego (ao qual tenta emprestar a quimera de uma unidade
substancial), volume em perpétuo derrubamento. A genealogia, coma a análise da
procedência, se encontra na articulação do corpo e da história. Deve mostrar o
corpo impregnado de história, e a história como destruidora do corpo(7).
A história da infância poderia ser contada a partir das diferentes mortes em
vida(18). As "Rodas dos Expostos" podem ser pensadas como formas metaforizadas
de outras exposições, abandonos, descasos e negligências. No Brasil, em
particular, estes dispositivos tiveram longa vida. Criadas como instituição
medieval, as ultimas Rodas dos expostos fecham oficialmente na década de 1950
em São Paulo e Salvador(19).
O seu nome provém do aparelho onde eram colocadas as crianças, em forma de
cilindro e giratório, fixado no muro da instituição, no qual o expositor,
depois de colocar a criança enjeitada, se retirava do local resguardado pelas
sombras e escuridão da noite.
Com o objetivo de fornecer assistência caritativa às crianças abandonadas, a
"Roda" recebia de forma anônima crianças que, por causas diversas, estavam
condenadas a uma morte certa. A Roda dos Expostos
[...] seria um meio encontrado para garantir o anonimato do expositor
e assim estimulá-lo a levar o bebê que não desejava para a roda, em
lugar de abandoná-lo pelos caminhos, bosques, lixo, portas de igreja
ou de casas de família, como era o costume, na falta de opção. Assim
procedendo, a maioria das criancinhas morriam de fome, de frio ou
mesmo comidas por animais, antes de serem encontradas e recolhidas
por almas caritativas(19:53-4).
Muitas vozes começaram a se levantar contra esta prática, especialmente por
parte de médicos e juristas no século XIX. As Rodas não cumpriam com o que era,
pelo menos em aparência, o objetivo de salvar as crianças de uma morte segura.
A alta mortalidade infantil dentro das Casas da Misericórdia, onde elas
funcionavam, não dava resposta ao crescente interesse por parte do Estado, de
aumentar e de não dilapidar vidas de crianças que seriam necessárias, quando
adultas para garantir o futuro da nação. Seja para cumprir a função de corpos
disponíveis para defender a integridade territorial, seja para substituir a
força de trabalho e reprodução de bens necessários para sustentar a economia.
A aliança estratégica entre médicos, juristas e o Estado, dará lugar a partir
da segunda metade do século XIX as políticas higienistas e medicalizadoras.
Diferentes saberes e disciplinas em processo de "cientifização" como a
psicologia, a psicopedagogia e a educação, aderem e se encaminham nas filas no
positivismo comtiano. Não se tratava somente de codificar métodos científicos:
pretendeu-se instituir cientificamente também uma doutrina política(20). Essa
doutrina política - doutrina científica - partia de um saber revelado, o qual,
uma vez em poder dos médicos, dos psicólogos e dos pedagogos, serviu para que
estes adoutrinassem uma sociedade, uma cultura, no sentido de fazer da infância
um campo propício para mais uma exposição dos corpos e das mentes, mediante
novos registros, sob múltiplos olhares, inúmeras classificações e práticas
controladoras da subjetividade da criança(3).
O problema da criança anormal e da possibilidade de formá-la e reformá-la
começa ser objeto de interesse pelos saberes, que, construindo práticas e
dispositivos decorrentes desse saber, acabaram fazendo da infância um campo
propicio para as mais variadas formas de controle, submisão, re-educação e
punição, na procura de confirmar uma verdade já constituída.
Alguma coisa diferente começa acontecer a partir da irrupção da psicanálise e
com ele outra forma de pensar a "natureza" da infância e do infantil. Em
especial a partir da idéia de dar valor à palavra como forma de possibilitar
que o sujeito, sua verdade, possa advir.
A psicanálise não tem senão um médium: a palavra do paciente. A
evidência do fato não desculpa a desatenção a ele. Ora bem, toda
palavra chama uma resposta(21:69).
Esta resposta é a que particularmente nos interessa. Que não necessariamente
tem de vir exclusivamente por parte de um psicanalista. Pelo contrario, a
psicanálise inserido hoje, ainda insuficientemente, nas instituições
hospitalares, é ou pode ser o caminho para transformar diferentes lógicas e
práticas presentes nos cuidados da saúde. Freud escrevia em 1888:
Nestes últimos anos, a chamada "cura de repouso" de Weir Mitchell (também
conhecida como tratamento de Playfair) conquistou elevada e merecida reputação
como método para tratamento da histeria em instituições. Ela consiste numa
combinação de isolamento em absoluta tranqüilidade com aplicação sistemática de
massagens e faradização geral; a assistência de uma enfermeira experiente é tão
essencial como a influência constante do médico.
O que em particular nos interessa é esta "enfermeira experiente". Entendendo
aqui por experiente a capacidade de renunciar aos brilhos que a tecnologia
disponibiliza, para dar lugar a uma outra capacidade que em lugar de colocar o
dedo sobre a sua boca, chamando a silêncio, ouse abrir a sua boca, os seus
ouvidos permitindo e permitindo-se estabelecer um dialogo de sujeito para
sujeito.
Uma das primeiras perguntas que surgem é a de se é possível substituir a
experiência, antecipando-nos no tempo, por uma "formação" que inclua nos planos
de ensino a problemática da criança, seu sofrimento e seu brincar, dos seus
direitos e da sua subjetividade. Não é possível omitir o fato da necessidade de
fazer uma análise critica do conceito de formação. Talvez seja necessário um
outro termo que ajude a desprendermos das sombras e escuridões que se implicam
na idéia de formar, de dar forma, de modelar conforme aos modelos
disciplinadores.
4 Conclusões
Neste curto trabalho tentamos mostrar a necessidade de problematizar e
contextualizar como o nosso cotidiano hospitalar está determinado por
discursividades que operam silenciosamente. Para resistir aos efeitos destes
dispositivos temos a chance e os meios ao nosso alcance: a palavra. A
psicanálise pode ser um auxílio para que as práticas da saúde, as de enfermagem
possam ser repensadas e retificadas nos seus respectivos dispositivos
disciplinares. Faz-se necessário possibilitar a produção de um espaço em que
sejam acolhidos aqueles que demandam um refúgio para resistir à subjugação por
parte da "ordem disciplinar", ordem disciplinar que destitui os sujeitos
enquanto "falantes". Entendemos que as práticas de enfermagem têm um lugar
destacado e estratégico que tanto podem reconfirmar o instituido, quanto
reproblematizar e refletir sobre as próprias práticas e discursos para
conseguir resgatar o valor e a capacidade instituinte, transformadora e
criativa do brincar. Renunciando aos estereótipos que durante muito tempo
pareceram dar-lhes uma identidade, às vezes falsamente construídos, as outras
confirmadas pelos comportamentos cotidianos, mas que acabam formando parte dos
mitos e mistérios da consciência coletiva da sociedade moderna(22).