A dinâmica familiar, as fases do idoso com alzheimer e os estágios vivenciados
pela família na relação do cuidado no espaço domiciliar
PESQUISA
A dinâmica familiar, as fases do idoso com alzheimer e os estágios vivenciados
pela família na relação do cuidado no espaço domiciliar
Family dynamics, stages of the elderly with Alzheimer disease, and stages
experienced by the family in relation to home care
La dinámica familiar, las fases del anciano con Alzheimer y las experiencias
vividas por las familias con relación al cuidado en el ambiente domiciliar
Gleani da Silva CoelhoI; Neide Aparecida Titonelli AlvimII
IEnfermeira. Mestranda da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ. Membro do Núcleo
de Pesquisa de Fundamentos do Cuidado de Enfermagem - Nuclearte. E-mail do
autor: gleani@ig.com.br
IIEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunto da UFRJ. Coordenadora
Geral de Pós-graduação e Pesquisa da EEAN. Membro do Nuclearte
1 Introdução
Este estudo integra a linha de pesquisa "Cuidados fundamentais de enfermagem",
desenvolvida pelo Núcleo de Pesquisa de Fundamentos do Cuidado de Enfermagem
(NUCLEARTE). O objeto da pesquisa foi a práxis de familiares cuidadores no
convívio com idosos com Alzheimer no espaço domiciliar. Teve como objetivos
descrever as vivências e experiências de familiares junto ao idoso com
Alzheimer; e analisar alguns aspectos que interferem nas transformações da
dinâmica familiar a partir da manifestação da doença.
A produção dos dados da pesquisa, bem como de seus achados, teve como base o
conceito de educação dialógica(1,2) no qual se utiliza a pedagogia crítico-
reflexiva, neste estudo, aplicada à enfermagem. O princípio que fundamenta este
conceito é o de que a educação se constrói com o outro (agente ativo) e não
para o outro (agente passivo). Nesse sentido, a abordagem crítico-reflexiva é
pertinente porque discute a ação educativa de forma inovadora, centrada no
diálogo entre o educador e o educando, onde sempre há partes de um no outro.
Entendemos diálogo como palavra circunscrita em duas dimensões: ação e
reflexão. Assim, "não há palavra verdadeira que não seja na práxis"(2:77). O
homem é vocacionado para ser sujeito na medida em que ele se posiciona de forma
crítica, refletindo sobre sua condição de sujeito, comprometido com sua
realidade e não como um mero espectador das ações de outrem. E, conforme o
homem se integra com o mundo e no mundo, ele então recria sua própria história
e decide sobre ela.
2 A Metodologia Adotada
Optamos pela pesquisa qualitativa uma vez que oferece uma variedade de métodos
e técnicas que nos auxiliam no desvelar dos problemas que envolvem as relações
pessoa-pessoa, considerando que essas relações estão imbricadas com as
particularidades físicas, sociais e culturais dos sujeitos envolvidos. Isso
implica considerar o contexto domiciliar do idoso e sua família. Os sujeitos
foram oito familiares cuidadores de idosos com Alzheimer que participavam de
reuniões ocorridas na APAZ (Associação de Parentes e Amigos de Pessoas com
Alzheimer, Doenças Similares e Idosos Dependentes). A inclusão desses
familiares na pesquisa deu-se de forma aleatória, por meio de convite aos
participantes dessas reuniões. A escolha do cenário justificou-se pelo fato de
o mesmo apresentar a possibilidade de contato com familiares de níveis sócio-
econômicos e de instrução diversificados, provenientes do atendimento à saúde,
tanto privado, quanto público, o que possibilitou uma riqueza na troca de suas
vivências e experiências.
Na produção de dados, adotamos o Método Criativo-Sensível (MCS)(3). Para tanto,
destacamos que utilizar a criatividade e a sensibilidade dos sujeitos leva-os a
flexibilizar-se e tornar público o seu pensamento, suas ações e seus conceitos
acerca do mundo e de si mesmo, sem temores de preconceitos e das barreiras
construídas socialmente. Uma das vantagens que reconhecemos neste método é a
possibilidade dos sujeitos participarem como co-pesquisadores na produção do
conhecimento. Ele também permite a conjugação de técnicas de discussão de
grupo, mediadas pela pedagogia de Paulo Freire; da entrevista coletiva semi-
estruturada e da observação participante, associadas às Dinâmicas de
Criatividade e Sensibilidade (DCS). Essas dinâmicas constituem-se no ambiente
de produção de dados, em que o imaginário transcende a racionalidade e as
experiências são coletivizadas e compartilhadas. Ao estimular a criatividade e
deixar aflorar a sensibilidade, o grupo, num primeiro momento, internaliza
reflexões e memórias para, num segundo momento, a partir da discussão coletiva,
emergir um novo conhecimento. Utilizamos nesta pesquisa, a DCS denominada
Corpo-Saber(4).
A proposta das DCS consistiu no desenho da silhueta de um corpo físico
reproduzido no papel pardo exposto ao chão. O trabalho de produção artística
teve início após a apresentação da questão geradora de debate Como você convive
e cuida de seu familiar com Alzheimer?, e também das devidas explicações sobre
o desenvolvimento das dinâmicas, que se destinava a reproduzir, coletivamente,
nas partes daquele corpo físico, por meio de desenhos, gravuras ou escrita, num
clima dialógico e plural, suas vivências e experiências com familiares com
Alzheimer e as transformações ocorridas na dinâmica familiar resultantes da
doença. Foram desenvolvidas duas dinâmicas (Corpo-Saber n. 1 e n. 2). O tempo
para a sua realização foi livre, tendo o próprio grupo conduzido para o seu
término. Juntas, totalizaram quatro horas de produção de dados. Participaram
quatro sujeitos da pesquisa na "Corpo-saber n. 1 e quatro na Corpo-Saber n. 2.
Para análise dos dados, trabalhamos com o princípio da codificação/
descodificação de situações problemas, emergentes do universo cultural dos
sujeitos, na perspectiva freiriana(1). A codificação foi possibilitada pela
apresentação da produção artística dos participantes das DCS, seguida da
descodificação, através da análise e discussão grupal. A partir daí ocorreu a
recodificação, com a síntese e validação coletiva(3), quando se atingiu o
estágio de saturação devido à repetição e congruência de debates grupais. Os
relatórios dos encontros foram interpretados à luz da análise de discurso(5),
buscando esclarecer as relações de sentido que possibilitaram mostrar a
significação textual do discurso.
Vale ressaltar que utilizamos pseudônimos, tendo sido os sujeitos identificados
na primeira DCS como: D, M, T e Iv; e, na segunda: J, Ma, Wil e B. Cabe
destacar ainda que o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do
Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Além disso, os sujeitos assinaram um termo de consentimento livre e
esclarecido.
3 Resultados da Pesquisa
Com base na questão geradora de debate no âmbito de as DCS, os familiares,
sujeitos do estudo, compartilharam a realidade de se conviver no contexto
sócio-domiciliar com o doente de Alzheimer - as ações e reações de ambos
(familiar e doente) nas mais diversas situações de vida, seus sentimentos, suas
angústias, o relacionamento interpessoal, suas expectativas e as estratégias
dos familiares para viver e conviver com esses doentes. Desde o início da
apresentação individual das produções realizadas, o diálogo teve um movimento
ora permeado pela ansiedade em expressar verbalmente essas vivências e
experiências no dia-a-dia junto ao familiar doente; ora pela emoção, que pôde
ser sentida não só pelas vozes embargadas, mas também, pelos olhares marejados
de lágrimas, ao falar das dificuldades vivenciadas e de suas relações com esse
doente carregadas de sentimentos ambivalentes.
Com a intensificação do diálogo, os familiares cuidadores foram estabelecendo
as divergências e convergências da realidade por eles vivida. É interessante
observar que cada família encontrava-se em um estágio diferenciado diante de
seu familiar doente, responsável pelas transformações que ocorrem na dinâmica
familiar. Como pudemos constatar nas duas dinâmicas desenvolvidas, os doentes
passam por fases da doença - inicial, intermediária e adiantada, e apresentam
os mais variados comportamentos. Tanto as fases por eles vividas como os
comportamentos advindos das mesmas, representam para os cuidadores familiares,
estágios e desafios a serem desvelados. Enquanto produziam na silhueta do corpo
físico, concomitantemente, havia a interação entre os participantes: Vejamos o
fragmento dialógico presente na dinâmica Corpo-Saber n. 1:
Às vezes, ela acha que já almoçou e aí eu falo: Não mãe, nós vamos almoçar
agora. Depois, levo pra escovar os dentes [...]. Tem que ficar do lado [...]
porque, sozinha, ela não faz mais. [...] E, às vezes, pega o pano de chão pra
se enxugar [...].(M)
Ah, sim! Meu marido ainda não está assim, mas tem horas que ele faz coisas
[...] descer o toldo e prender o ganchinho. Ele não consegue fazer isso!(D)
Do diálogo entre D e M emergiu o tema O dia-a-dia do doente de Alzheimer e suas
situações vivenciais, descodificado no subtema as diferentes fases vivenciadas
pelo doente de Alzheimer.
O exemplo de D retrata a fase inicial da doença que dura, em média, de dois a
quatro anos. Há perda da memória recente, dificuldade para reter novas
informações, falta abstração das idéias, distúrbios de linguagem e o idoso
apresenta dificuldade progressiva para as atividades da vida diária. Ainda
nesta fase, o doente pode apresentar boa qualidade de vida pessoal,
principalmente pelo aparente vigor físico e condições de manter uma conversa
social. As alterações, via de regra, situam-se nos campos da memória, visual-
espacial, e linguagem(6). IV colaborou com o relato de D, trazendo para o
espaço dialógico suas vivências sobre a situação posta:
No meu caso, minha mãe está bem no início em comparação a de vocês...(IV)
Não, mas o meu marido não está igual à mãe dela!(D)
Na fase inicial da doença os cuidados prioritários realizados pelo familiar
cuidador destinam-se à supervisão, com o intuito de proteger o doente e evitar
acidentes. Da mesma forma, nesta fase, ressalta-se a preocupação com o estímulo
ao autocuidado, bem como com a preservação das interações familiares e sociais
(7). Com o evoluir da doença, os cuidadores passam, muitas vezes, a realizar as
tarefas de cuidado com o doente como, por exemplo, o cuidado com a vestimenta,
com a supervisão da higiene e da alimentação, bem como com a própria segurança.
E, ainda, em fases mais avançados, passam a fazer para e pelos doentes, uma vez
que estes se encontram totalmente dependentes, pois nesse caso já não conseguem
mais discernimento acerca das atividades da vida diária. Mesmo cientes das
características de comportamento, para quem convive com esse doente fica
difícil manter o equilíbrio sempre constante. Vejamos:
D remeteu-se a sua situação: Porque eu falo isso pra ele: Você já não me
perguntou isso! Daí, agora, sabe como é que ele fala?: Eu queria conversar uma
coisa com você... Quando ele fala isso, já me irritou! (...) Outra, coisa. Ele
acha a "D" que está lá na cozinha é outra, não sou eu !(fala indignada...) Aí
eu digo: aquela lá sou eu!(usa tom imperativo)
M falou: Ela já troca o nome dos dois... (falando de sua mãe doente). Aí, diz
assim: Vocês parem de ficar trocando o nome de vocês toda hora, porque faz
confusão na minha cabeça!
Prosseguindo, D:(...) Ele tem uma coisa com dinheiro! Então, quando ele fala
isso, já me irrita. Aí ele fala: Eu posso te perguntar uma coisa? Pode, o que é
que é?Cuida da minha senha? Aí eu explico tudo a ele [...] Ele acha que existem
três, quatro D.
Nesse momento, mediando a discussão e praticando a educação dialógica,
promovemos a reflexão grupal trazendo elementos do universo científico que
colaboram para um melhor entendimento acerca dos comprometimentos neurológicos
do doente.
Então, será que ele se lembra de mim só quando eu era mais jovem? É isso?(D)
Pode ser, porque [...](T)
Ele lembra lá atrás, minha mãe está lembrando lá de muito antigamente [...](M)
Outra característica que se evidencia é a dificuldade progressiva de memória
recente, com a capacidade de gravar os últimos acontecimentos, as últimas
conversas mantidas, os casos contados ou ouvidos(8). Além disso, apesar de
lembrarem de fatos antigos, não os relacionam com os atuais.O comprometimento
da memória geralmente é o sinal mais proeminente e com ele também podem
aparecer perda de concentração, desatenção, entre outros, como a perda de
objetos ou momentos de esquecimento quando estão, por exemplo, fazendo comida.
A dificuldade em reconhecer rostos e/ou locais familiares evidencia a
deficiência na percepção e no tempo e espaço. Com a progressão da doença, a
memória fica ainda mais deteriorada e surgem sintomas focais, como a afasia,
apraxia, agnosia e alterações visuo-espaciais que, mais tarde, tendem a
progredir. Na evolução do declínio cognitivo, sérias alterações são
evidenciadas, como a capacidade de aprendizado de coisas novas, de julgamento,
de realização de tarefas complexas e de memória distante e memória recente,
conforme ratificado pelos participantes do estudo. Essa deficiência nos
diferentes domínios e habilidades contribui não somente para o declínio
cognitivo, como também para o aspecto funcional. Prosseguindo, vejamos o
movimento dialógico entre IV, M e D:
É, como que eu posso cobrar dela, sem brigar com ela? (IV)
Você pode estimular com coisas que ela goste [...] Você tem que ter uma
estratégia [...] Ela tem que descobrir como fazer com que a mãe não se irrite
(M).É, tem que ter um atrativo! Eu sempre falei o que ele deve fazer [...].(D)
O fato de M e D colocarem para IV que ela precisa criar estratégias de cuidado,
fez com que IV fizesse uma crítica-reflexiva sobre a situação por ela
vivenciada atualmente. Desse fragmento dialógico, emergiu um novo tema gerador
de debate: as transformações na dinâmica familiar e os diferentes estágios da
família diante dos idosos com Alzheimer.
Enquanto o doente passa por fases características da doença, conforme
explicitado no relato dos sujeitos, a família passa por diferentes estágios
refletidos na ambivalência de suas ações, reações e sentimentos. Na vivência
desses estágios, as famílias extraem demandas de aprendizagem. Ou seja, essas
demandas têm-se operacionalizado na sua práxis existencial, aprendendo com os
próprios desafios, centrando-se na ação-reação, tentativa erro-acerto,
concordância- discordância. Uma vez que o aprendizado tem diferentes dimensões
extraindo-se daí a essência da prática, seu movimento permite mais do que a
simples adaptação ou acomodação, mas sim a transformação e a recriação da
realidade instituída. Dessa forma, o familiar, como ser social, coloca-se numa
posição crítica de forma que vai tornando-se cada vez mais capaz de construir o
seu próprio conhecimento. Assim, a aprendizagem é a construção desse
conhecimento e a constatação da necessidade de transformação, a reconstrução.
Esse movimento corresponde a passagem da consciência ingênua à consciência
crítica(10).
Inicialmente, reconhecer que algo está errado com um familiar é um processo
lento, pois algumas questões podem estar intrincadas: os distúrbios no campo do
comportamento e da memória podem sugerir pensamentos como resultado de
estresse, temperamento, ocasionando confusão nos demais familiares e
dificuldades em avaliar a situação. Além disso, esse reconhecimento pode levar
anos. A possibilidade de se estar lidando com um caso de doença mobiliza o
núcleo familiar a fim de discutir os devidos encaminhamentos à situação posta.
Uma nova rede de relações e interações se estabelece e as tomadas de decisões
são em função das vivências acumuladas na história de vida e na dinâmica
intrafamiliar.
O momento no qual é feito o diagnóstico da doença de Alzheimer representa um
marco para os familiares, pois a partir daí vêem-se tomados por diferentes
sentimentos: a esperança na cura; a eleição do cuidador; a questão financeira
ao considerar o alto custo do tratamento medicamentoso; a busca por auto-ajuda.
Assim, O interdiscurso e a formação discursiva dos participantes no espaço
dialético e dialógico das dinâmicas Corpo-Saber n. 1 e n. 2, revelaram a
existência de diferentes estágios vivenciados pelos familiares dos doentes de
Alzheimer. Eles traziam consigo sentimentos que, embora não explicitados,
estavam no não dito que traduziam esses diferentes estágios, a saber: de
negação, quando optavam por interpretar determinadas ações e reações do doente
como próprias da idade e de traços de personalidade e que refletiam nas
alterações de seu comportamento. O de indignação, quando expressavam não
conseguir entender como isso acontecera na sua família. É elucidativo observar
que esses sentimentos de perplexidade foram sofrendo transformações ao longo do
processo de aprendizagem frente às situações vivenciais, passando da negação e
indignação para o estágio de aceitação. Vale dizer, contudo que, esses estágios
não ocorrem linearmente, ou seja, existem idas e vindas na dinâmica dos mesmos.
A construção do cuidado ao doente de Alzheimer é um processo multifacetado e
varia de acordo com a vivência sociocultural e as experiências pessoais que se
refletem no contexto familiar(7).
Ela(sua mãe)já pegou água quente para me jogar, já pegou ventilador [...] Eu
corria e me escondia no quarto, ela sabe que eu sou submissa [...] Então,
agora, eu estou aprendendo a lidar [...](IV)
As dificuldades retratadas por IV no convívio com sua mãe revelam a
complexidade de fatores de ordem intrafamiliar que influenciam na relação do
cuidado. "Os homens são seres capazes de agir coincidentemente sobre a
realidade objetivada. É precisamente isto, a práxis humana, a unidade
indissolúvel entre minha ação e minha reflexão sobre o mundo"(1:25). O ser
humano chega a ser sujeito pela reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente
concreto. Assim, quanto mais refletir sobre a realidade, sobre sua situação
concreta, mais emerge plenamente consciente, comprometido; portanto, torna-se
capaz de intervir na realidade para mudá-la. Daí Iv extrair de sua situação
existencial concreta os meios para se haver com a sua realidade de cuidadora.
De sua fala, emergiu o subtema fatores determinantes dos encontros e
desencontros geradores de conflitos na relação do cuidado domiciliar.
Alguns conflitos nas relações intrafamiliares podem ser explicados quando
refletimos as condições em que o familiar cuidador assumiu tal função. Isso
porque, tais problemas podem refletir a falta de predisposição ao cuidado, uma
vez que, para ele, é preciso, entre outros requisitos, paciência e
disponibilidade. Nesse ínterim, "Os cuidadores surgem da relação dialética com
os não cuidadores"(7:129). A eleição do familiar cuidador se faz em função das
necessidades de cuidado. Há de se fazer rearranjos no núcleo familiar, podendo
ser uma escolha diretiva. No caso de IV, filha solteira e morando com a mãe,
foi eleita como cuidadora. Mesmo recebendo suporte dos demais membros da
família, no cuidado à mãe doente, fica claro em seu discurso a pouca habilidade
que tem para a função que lhe foi delegada frente às diferentes fases porque
passam os doentes, geradoras de comportamentos que podem alterar, a dinâmica da
família.
O fato de ter um doente crônico e que dependem de um membro da família para
cuidá-lo no domicílio requer uma série de transformações, adaptações e de
decisões familiares que geram, algumas vezes uma situação de crise. Primeiro,
quanto à questão de quem assumirá este papel de cuidador. E aí nos deparamos de
imediato com o referencial de gênero. Não é meu interesse no momento abordar a
questão de gênero como foco principal no estudo, mas há de se considerar que
esta variável é importante inclusive no contexto dos saberes e práticas de
cuidar no seio da família. Ao longo da trajetória humana, a história vem
constatando e minha experiência tanto pessoal, quanto profissional ratifica
que, quase que na totalidade dos casos, a mulher, seja filha, esposa ou outra
próxima, assume o papel de cuidadora no domicílio. A ela é delegada a tarefa de
cuidar em diferentes momentos e circunstâncias de sua vida: como mãe, no
cuidado com os filhos; como mulher, com o companheiro enfermo (ou não); e com
os idosos da família, seja o próprio companheiro ou outro membro.
Um outro fato que merece destaque quando se fala dos determinantes e de seus
reflexos para o cuidado no domicílio geradores de crise na família, é o aspecto
financeiro. Indiscutivelmente, a doença crônica, em especial, neste estudo, a
de Alzheimer, é muito onerosa para a família, desde os fármacos necessários ao
tratamento, passando pelos materiais necessários nos cuidados diários de
higiene, conforto, alimentação etc, até mesmo o suporte com outros
profissionais, a exemplo de fonoaudiólogos. Assim, a situação financeira da
família tem grande interferência no cuidado domiciliar junto ao idoso com
Alzheimer e na escolha mesma da pessoa a qual será delegado o cuidado. Minha
experiência profissional tem mostrado que se a família tem condições
financeiras, ela, em geral, contrata um profissional para o cuidado do doente,
o que a faz distanciar-se da função de cuidadora. Porém, é importante ressaltar
que o fato de ter uma boa condição financeira, por si só, não determina que
esse cuidado seja realizado com qualidade, com segurança e apoio emocional,
pois, na relação do cuidado é necessário que se considere aspectos tanto de
ordem técnica, quanto subjetiva.
Vejamos as enunciações dialógicas no âmbito da dinâmica Corpo-Saber nº 02:
Wil: (...) Tem o lado da agressividade, o lado da brabeza, tem hora que ela
olha para a cuidadora e fala: "Você está me roubando! Você está me matando!
Você me deu uma surra! Você quer me matar!" Aí, ela pega uma faca, um garfo, o
que for e atira... Bem, é o que eu estou dizendo... Primeiro, chegar e se
defender... Esconder tudo... Esconder faca, garfo, objetos cortantes, porta-
retrato... Essas coisas têm que sair da altura dela... Na hora que está nessa
crise, nessa fase, ninguém segura (frizou).
B.:A minha avó tem o lance da agressividade também... Principalmente com a moça
que cuida dela...
Ma:(...) Nós almoçamos juntos quando eu estou em casa e o neto também... Ela
fica insegura quando todo mundo da casa sai. Tem uma moça que lá com ela, mas
ela fica insegura. Fica chateada, triste...
Perguntei: E ela aceita a moça?
Ma respondeu: Aceita. Quando ela está sozinha, ela tem que ficar com ela.
O processo de cuidar na fase inicial da doença envolve principalmente cuidados
focados na supervisão com vistas na prevenção de acidentes, uma vez que o
doente não consegue discernir as situações que envolvem risco ou perigo e
também porque existe a constante presença de erros nas atividades da vida
diária, por não mais saberem como fazê-las. Essas situações, associadas ao
desgaste físico e emocional geram tensões e podem desencadear conflitos nas
relações interpessoais. A transição entre as atitudes de cuidado que variam
desde a supervisão até ao `fazer para' está envolta em sentimentos ambíguos por
parte do cuidador que mescla compaixão, afeto e tolerância à irritação, medo,
insegurança e desafetos. Essa reflexão é fundamental para se entender a
dinâmica de cuidar desses doentes. Por um lado, é fato que eles precisam do
medicamento, de proteção, de um ambiente físico que não ofereça riscos, como
facas e tesouras de ponta ao seu alcance. Mas, por outro lado, é mister o
estímulo à inserção do doente no convívio social da família ou mesmo garantir
sua liberdade e autonomia através de estratégias de cuidado.
Outro ponto relevante é a falta de referencial (conhecimento sobre a doença)
por parte dos familiares para entenderem as mudanças sofridas pelo doente, que
também é motivo de conflito. Embora lhes faltem elementos para esse
entendimento, eles percebem sua existência sinalizada com o agravamento dos
sinais e sintomas no doente. Além disso, a dificuldade de aceitar o familiar
como doente está relacionado ao fato de que os primeiros sinais e sintomas da
doença são cognitivos e o que se visualiza é um corpo, muitas vezes, com
aparência saudável. A verdade é que todos esses conflitos e a dificuldade de
interação com o doente podem desencadear até mesmo o distanciamento entre ele e
a família.
Conviver com esse doente proporciona ao cuidador variadas sensações,
desencadeando situações conflitantes carregadas de tensão e dilemas nesse
cuidar. Muitos familiares apresentam dificuldades nesse convívio, pois precisam
antes de mais nada entender e aceitar a doença para então reconstruir o
significado de seu familiar como doente. Na verdade, o que está em jogo são as
habilidades que o familiar cuidador constrói nessa relação de cuidado, dentre
elas, a do entendimento de como se dá a evolução da doença e o seu reflexo no
comportamento do doente. Vejamos a crítica-reflexiva de J, no interior da
dinâmica "Corpo-Saber nº 02":
J:Então, nós, cuidadores, temos que ter uma preparação constante... Assim como
cuida dele, tem que se cuidar dos cuidadores, do ambiente em geral... Isso é o
principal. Ter paciência, jogo de cintura, ter o máximo de controle, uma
energia fora de série...
Daí, as fases e estágios vivenciados pelo doente e pela família,
respectivamente, ainda que nem sempre coincidentes, se interpenetrarem, gerando
transformações e reconfigurações na dinâmica familiar. Assim, entendendo esse
contexto, o familiar consegue ir superando as crises e tensões no
relacionamento com o doente no espaço domiciliar.