Presença do sagrado em um momento crítico: internação em uma Unidade de Terapia
Intensiva
PESQUISA
Presença do sagrado em um momento crítico: internação em uma Unidade de Terapia
Intensiva
Presence of the sacred in a critical moment: internment in an Unit of Intensive
Therapy
La presencia del sagrado en un momento yo critico: La internación en una Unidad
de Terapia Intensiva
Miranildes de Abreu BatistaI
IEnfermeira. Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem da Universidade
Paulista/GO - Mestre em Ciências da Religião. Enfermeira assistencial da
Unidade de Terapia Intensiva do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
da Universidade Federal de Goiás/UFG. Email do autor:
miranildesbatista@hotmail.com
1 Introdução
Com o avanço tecnológico, percebe-se que o homem, ao mesmo tempo em que cria e
aperfeiçoa máquinas para a sua própria destruição (instrumentos bélicos),
também preocupa-se com maneiras de se proteger e alongar a vida.
Em um contexto onde as ciências tomam considerável impulso, surge a Unidade de
Terapia Intensiva (UTI), tendo sido criada a princípio, para atendimento às
vítimas na II Guerra Mundial, possibilitando que doentes graves vivessem por
mais tempo. Com isso, foram surgindo complicações, como a lesão pulmonar. Essa
realidade exigiu respostas da medicina, forçando, com isso, o desenvolvimento
da assistência ventilatória a qual é muito utilizada, em UTI, quando o paciente
apresenta-se em insuficiência respiratória, com alterações da complacência
pulmonar e/ou resistência das vias aéreas, necessitando de intubação traqueal e
instituição da ventilação pulmonar mecânica.
Há, em nossa sociedade, a concepção errônea, negativa, de que a Unidade de
Terapia Intensiva somente é usada em situações extremas, sendo que a verdadeira
finalidade é a prevenção. Porém, o conceito deturpado está impregnado tanto nos
doentes, quanto na maioria dos profissionais de saúde.
O doente ao ser admitido em uma UTI, depara-se com um ambiente já mitificado,
hostil, repleto de equipamentos e uma equipe multidisciplinar que prioriza o
tratamento físico. O indivíduo é visto como fragmentos, onde só o pedaço físico
importa; torna-se despersonalizado, transforma-se em um leito, um número, uma
doença, um caso. Porém, cada indivíduo possui uma identidade social no seio de
sua cultura. A crença religiosa é parte da cultura da maioria dos pacientes que
são internados em UTI. Uma das formas em que se percebe esta crença são os
objetos sagrados que muitas pessoas levam consigo quando do momento de
internação. A relação do paciente com o sagrado através de seu objeto é o tema
desta pesquisa.
Nesta análise sobre a presença do sagrado em uma UTI, procura-se reafirmar a
importância das manifestações religiosas, as quais se encontram encharcadas
pela minuciosa fé. Discorre-se sobre o assunto como forma de reafirmar que, até
hoje, o ser humano procura uma explicação para as questões existenciais e
termina aderindo àquela que responde as suas necessidades de ordem e
significado.
Ao mesmo tempo em que se busca compreender o dualismo sagrado e profano, onde
as reflexões sugerem diversas vertentes no campo das relações com o
sobrenatural, emerge a proposta de se assistir ao paciente de maneira
holística, investindo em uma nova postura no que diz respeito à religiosidade
do paciente, isto é, reconhecimento e compreensão do significado dos aspectos
religiosos para o indivíduo diante de um momento crítico.
Esta realidade revela a importância da presença do sagrado, para o paciente,
neste momento crítico, de fragilidade físico-emocional, em que a religião
assume papel de salvaguardar a dignidade, a liberdade e a integridade do ser
humano diante da angústia frente ao morrer.
Como Enfermeira da UTI do Hospital das Clínicas da UFG (HC/UFG), tenho
observado a expressiva presença da religião em meio aos nossos doentes. O
paciente, ao ser admitido, na maioria das vezes está portando um rosário, ou
uma fita, ou uma medalha, ou gravura de algum santo, ou com um crucifixo, ou
com um patuá.
Quando retira-se esses objetos dos pacientes, para serem entregues à família,
observa-se que o doente, quando consciente, sente-se incomodado. Porém, ao se
perceber essa reação de insegurança por parte do paciente, autoriza-se a
presença do objeto sagrado junto ao doente.
É nítido a euforia e a segurança presente no paciente que volta a portar o seu
objeto sagrado.
Por vivenciarmos este evento em nossa prática diária nos interessamos por sua
descrição fenomenológica em um estudo que promova reflexões sobre o universo
cultural e social do paciente religioso. Procura-se ressaltar o papel que o
objeto sagrado, por meio da religião, exerce no indivíduo em estado de
sofrimento, angústia, dor e perda, levando-o a um refúgio onde há produção de
significados e ordem.
Em meio a esses momentos na vida do paciente, aflora-se uma experiência
religiosa, pessoal, intransferível e, em íntima relação com o sagrado (poder)
na busca de uma realidade menos profana, antes de tornar uma existência
criadora de valores, a religião assegura-lhe a integridade (1:173).
Não se pretende interpretar os fatos no sentido de encontrar como por detrás
deles, suas razões mais secretas, uma lógica escondida. Pretende-se descrever o
fenômeno, procurando apreender o porquê do mesmo.
Busca-se estas reflexões para que se possa contribuir no campo da humanização
da assistência ao paciente em UTI, de forma que se compreenda a realidade
vivida pelo homem religioso, enfermo, ao exprimir seus valores religiosos,
através de sistemas e objetos simbólicos, ligados ao sagrado, na convicção
plena de uma intervenção divina onde a fé e a ação determinam um comportamento
social sobrenatural repleto de possibilidades culturais e anseios espirituais.
2 Objetivo
Descrever o significado dado ao objeto sagrado, pelo paciente, em uma situação
de internação em uma Unidade de Terapia Intensiva.
3 Trajetória metodológica
Em uma pesquisa qualitativa apreende-se a essência das significações, motivos e
aspirações, atitudes, crenças e valores que são fundamentais para a descrição e
a compreensão dos fenômenos que envolvem o ser humano(2).
Frente a definição acima, selecionamos a metodologia qualitativa e
especificamente o método etnográfico, o qual auxiliará na compreensão
fenomenológica do significado cultural atribuído pelo paciente à presença do
seu objeto sagrado durante a internação em UTI.
A coleta de dados teve início após a aprovação formal do projeto de pesquisa,
pelo Comitê de Ética em Pesquisa, do HC-UFG, bem como do consentimento livre e
esclarecido dos sujeitos da pesquisa. As observações e entrevistas foram
realizadas no período de abril a agosto de 2000, na UTI do HC-UFG.
Critérios de inclusão: paciente adulto, consciente, portando algum objeto
considerado, por ele, como sagrado.
Os dados foram coletados mediante observação e entrevista dos pacientes que se
incluíram nos critérios já mencionados. O manuseio do objeto sagrado ocorreu,
espontaneamente, através da equipe que assistia o paciente, possibilitando a
observação de reações psíquico-emocionais. Os dados coletados foram registrados
logo após cada sessão de observação-participante, em um diário de campo.
A entrevista, composta por uma única pergunta (qual o significado deste objeto
para você, neste momento?) foi realizada no momento de calmaria na UTI, estando
o paciente com seu objeto considerado sagrado. Refere-se à calmaria, o momento
em que o paciente não está sendo submetido a nenhum procedimento técnico que
possa impedi-lo de responder à pergunta com clareza.
Para validação, os resultados foram submetidos apreciação de três juízes que
aprovaram na íntegra. Foi também utilizada a fotografia como recurso de coleta
de informações, com o objetivo de ilustrar algumas cenas, do cotidiano da UTI,
onde o sagrado se mostrasse visível.
As observações foram encerradas no ponto onde não mais encontrou-se dados novos
ou aspectos relevantes a serem destacados. Procurou-se contemplar no processo
de observação e com base no objetivo, as seguintes questões temáticas: portador
de algum objeto considerado sagrado; tipo de objeto sagrado; reação do paciente
ao ser separado do objeto sagrado; reação do paciente ao ter volta o objeto
sagrado; outras formas de expressão do sagrado dentro da UTI.
A análise dos dados, baseou-se no fenômeno religioso e, recorreu-se aos
estudiosos da religião que se dedicaram a fenomenologia do sagrado como Mircea
Eliade, Rudolf Otto, Marcel Mauss, porém, salientando que as idéias não são
isoladas; estudiosos de outras vertentes de pensamento como Emile Durkheim,
Peter Berger, também exerceram influências nas interpretações fenomenológicas
e, através destes paradoxos, a análise torna-se mais rica, percebendo-se
discretos pontos comuns entre os teóricos da religião.
3.1 O método etnográfico
O estudo etnográfico utiliza a observação-participante, a entrevista e o diário
de campo como técnica fundamental para a coleta de dados. Este método permite
que o pesquisador veja e ouça as reações dos atores de uma determinada situação
social. Há momentos de essencialmente observar, observar com alguma
participação e observar refletindo, contudo, sempre observar registrando(3).
Assim, o objetivo da etnografia é descrever os comportamentos declarados
somados aos valores de um grupo social em seu contexto cultural.
Através da etnografia faz-se a descrição de uma cultura a partir de seus
valores. Portanto, a etnografia busca a compreensão do significado de ações e
eventos expressos através da linguagem. Esse sistema de significados constitui
a cultura da qual emana dados que são de natureza descritiva e reflexiva
(reflexões do pesquisador). Para este estudo os seguintes passos para a análise
dos dados: codificação, categorização e interpretação dos dados com
identificação de temas culturais(3).
3.2 A abordagem fenomenológica
Fenomenologia é o estudo das essências que compõe a existência e, por meio do
método fenomenológico, pode-se compreender, o homem e o mundo vivido, em uma
visão transcendental. A palavra fenômeno deriva do grego e significa aparência,
a qual se revela como a exterioridade de uma dimensão sensível percebida da
realidade. A fenomenologia é a ciência que analisa os fenômenos dos objetos e
dos acontecimentos. Os acontecimentos podem ser fatos que existem
independentemente da cultura, podendo, também, existir mediante a cultura e
podem ser as manifestações das essências(4) .
A essência é a idéia que transcende a aparência do ser ou objeto, sendo que o
salto da imanência para transcendência é obra da consciência intencional.
Com o intuito de compreender o fenômeno em estudo, procede-se na análise de
relatos de observações de campo e entrevista, visando uma descrição
fenomenológica que, baseia-se em uma forma de se descrever a essência de uma
experiência como ela é, ou seja, "trata-se de descrever, não de explicar nem de
analisar"(4:3). Descreve-se fenômeno religioso em uma UTI, com uma compreensão
fenomenológica, buscando o significado essencial da relação homem-objeto
"sagrado".
4 O significado cultural
4.1 A UTI - esse espaço...
O ambiente hospitalar por si só desencadeia uma alusão às facetas do
sofrimento, dor e morte. Ao se percorrer os frívolos corredores de um hospital,
a impressão que se tem é a de estar em uma galeria barroca e nostálgica, onde
símbolos e imagens contrastam com as pretensões da ciência frente ao
sobrenatural. A necessidade do homem, em estar próximo aos referenciais
espirituais, é evidenciada nestes momentos de reformulação de valores, na
percepção individual da visão gerada pela organização sócio-cultural. O
inexplicável passa a ter sentido para quem está sensibilizado pelos ferimentos
simbólicos diante da fragilidade humana.
Os objetos sagrados demonstram a presença do apelo religioso no interior do HC
e, sobretudo, na UTI. Percebe-se a soberania explícita do sagrado no espaço da
medicina oficial (exercício da razão) onde as facetas do sofrimento, dor,
angústia e perda se manifestam no universo simbólico (exercício da emoção); o
irrealizável parece poder ser alcançado afastando, com isso, as ameaças do
caos. A magia existe para aquele que acredita, isto é, para quem se encanta com
sua ilusão no abrandamento das adversidades do destino; à luz do sagrado,
encontra-se significados e modifica-se o presente.
Já estou agradecendo a graça que vou receber, eu prometi. (E16)
No trajeto que o paciente faz pelo hospital, sobre uma maca ou uma cadeira de
rodas, rumo à UTI, percebe-se objetos e atitudes culturais as quais revelam a
crença que legitima o poder simbólico, portanto, a força do sagrado sendo
expressa e manifesta em uma relação dualística entre a criatura e o criador; a
necessidade de se enxergar o invisível, tocar o intocável, enfim, de crer no
abstrato. O poderio espiritual influente se revela presente nas relações
sociais despertando interpretações no mundo dos valores religiosos e
ideológicos.
Corredores à meia luz, penumbras em todos os cantos. Decoração impessoal, nada
aconchegante. Um altar logo à vista com diversas imagens, velas acesas, vasos
com flores tristes. Capela com um toque ecumênico. Parentes do pacientes que
circulam sem rumo, em busca de informações e consolo. Profissionais da saúde
que caminham apressados, vestidos de branco, indiferentes ao martírio psíquico-
espiritual a sua volta. Pessoas que caminham e, de repente, fazem o sinal da
cruz como uma prática mágico religiosa da qual emana um suposto poder de
proteção. Na UTI encontram-se pacientes graves e/ou terminais, que em meio a um
suporte tecnológico barulhento vivem em silêncio, repletos de esperança, seu
sofrimento. Observa-se que o doente se torna paciente à qualquer credo que lhe
seja colocado.
Nas observações e falas dos pacientes percebe-se que estar doente,
organicamente, envolve também conflitos interiores, existenciais, no contexto
de circunstâncias psíquico-sociais (paciente, família, amigos) sendo que estes
aspectos podem intensificar condições patogênicas.
O paciente ao ser encaminhado à UTI percebe a possibilidade de uma doença
incurável, estado este que desencadeia aspectos emocionais que podem culminar
em crise de sentimentos. Este estado de instabilidade emocional que caracteriza
o adoecer, atinge, pessoas de todos os níveis sociais que reagem de maneira
uniforme diante da doença.
Percebe-se o processo de coisificação que recai sobre o paciente onde tudo é
imposto e, qualquer sinal de reação torna-se insignificante frente ao contexto
mecânico e despersonalizante da UTI; o paciente transforma-se em um objeto de
investimento científico-financeiro, sendo que o cuidado humano e total torna-se
algo supérfluo em meio ao dinamismo da sociedade.
A complexidade das emoções humanas revela a força que o paciente procura para
assumir a sua existência humana e a doença como parte de sua história. Este ao
se internar perde sua harmonia e esforça-se por recuperá-la de forma a suportar
a situação traumática de doença e a internação em UTI. Procura-se em meio à
desarmonia físico-emocional, ter acesso a mais recursos para lidar com a
angústia.
Que Deus tá perto e cuida da gente [...](E03)
O paciente lança mão de transferência de sentimento como atualização da
realidade do inconsciente, construindo e manejando sua dificuldade de ajuste
emocional frente ao acaso, à doença, reforçando a idéia da importância do
objeto considerado sagrado, como recurso para lidar com a angústia advinda da
situação de doença e a possibilidade de morte.
A minha santinha me dá força [...] não chegou a minha hora [...](E07)
Defesa: esta é a reação que se observa em um paciente admitido em uma UTI; esta
unidade tornou-se sinônimo de morte iminente, mobilizando o sentimento de medo
da morte, o qual pode gerar instabilidade emocional podendo chegar a exarcerbar
manifestações somáticas, variando estas reações de acordo com a estrutura
individual de personalidade; "a ansiedade e o desespero estão inicialmente
presentes devido a falta de autocontrole e a crescente dependência da equipe"
(5:98).
O medo e a ansiedade, a depressão, a tristeza e a desesperança são respostas
emocionais observadas em pacientes internados em UTI, sendo estes sentimentos
os responsáveis pelo estresse da hospitalização. Porém as respostas variam em
sua intensidade mediante fatores individuais psíquico-emocionais como, por
exemplo, um paciente clinicamente estável poderá sentir-se terminal, e outro
paciente, em estágio terminal poderá sentir-se otimista em relação ao seu
prognóstico.
O desenvolvimento tecnológico infiltrou-se em diversas culturas, fazendo com
que a morte, no seio da família, fosse transferida para o solitário interior da
UTI, deixando de ser um fenômeno natural na vida do homem para se tornar
assustadora e indesejada, ponto chave de conflitos e emoções. Nesta fase tudo é
muito individual, e conspira-se para a derrota do inevitável. Percebe-se "o
comprometimento da atmosfera emocional de uma UTI, lembrando que os pacientes
são afetados potencialmente em suas necessidades básicas"(6:11).
Mediante o exposto, percebe-se o desgaste emocional e o trauma que o paciente
incorpora ao se ver envolvido pela doença. O homem passa pelo luto de não ter
saúde levando, com isso, a um abalo em sua auto-estima, sendo que a intensidade
deste processo ocorre mediante a estrutura de personalidade do paciente. O
limiar psicológico do homem determinará sua forma de elaborar o adoecer,
estendendo-se estas mesmas reações psicológicas, aos pacientes que se submetem
a grandes cirurgias, destacando as cirurgias cardíacas, as quais passam parte
do pós-operatório em UTI.
O sistema racionalista, funcionalista e tecnocratizante no qual estão inseridos
os cuidados intensivos passa por um afã, chamado pela expressão metódica,
humanização. Este termo corre o risco de se tornar um sinônimo para decoração,
pois as ações têm se voltado para o exterior ao ser humano. O homem permanece
neste ambiente, dito humanizado ou melhor decorado, sendo encarado como se
estivesse despido de seus valores culturais e religiosos, onde ações
tecnicistas descartam os sentimentos que definem o próprio ser humano e sua
identidade cultural. Este contexto nos mostra a necessidade de se valorizar a
cultura popular e, neste universo, enfatiza-se os estilos de pensamentos e
simbolismos, suas crenças e práticas religiosas.
Essa água ta abençoada, vai me curar [...] (E13)
A UTI traz em seu bojo, a ciência e a tecnologia que contrasta com o homem em
sua essência; este se assusta com tamanha modernidade e busca, no simples
aperto de mão, a força imensurável que motiva e anima, que é capaz de alterar o
curso clínico de uma doença, promovendo melhorias no processo de uma
reabilitação com confiança.
Não estou só. Deus ta comigo [...] Ele me dá força. (E12)
Hoje, a assistência ao paciente que necessita de cuidados intensivos, baseia-se
em um cientificismo imerso em valores materiais que se distanciam das
verdadeiras necessidades humanas. Na mais tênue busca pelo tratar com
dignidade, corre-se atrás da restauração dos valores altruístas que revitalizam
o humanismo, traçando uma nova perspectiva na arte do cuidar.
A avançada tecnologia pode contribuir para o fenômeno de dezumanização que
impera na UTI, onde o paciente poderá sentir-se minúsculo e invisível em meio a
cânulas, cateteres, monitores, computadores. Portanto, percebe-se que estes
pacientes podem necessitar de toque humano para assegurar sua humanidade,
dignidade e auto valor em um ambiente impressionante e altamente tecnológico
(7).
Tanto a equipe quanto o paciente se vêem diante da morte e da vida quando,
neste espaço estigmatizado, cada um com sua forma de defesa suscita a negação
de afetos de forma a ofuscar a sua sensibilidade em meio ao momento crítico.
Torna-se inegável a necessidade de se compreender as características que se
afloram no ser humano, enfermo, quando se encontra em um ambiente em que, de
forma sutil, o descuido e o descaso imperam rumo à desestabilizar, por demais,
o ethos do humano fundamental; caracteriza-se, por uma modelação da casa humana
(7) que historiza seus valores, atitudes e comportamentos mediante as tradições
culturais e espirituais.
Portanto, importante se faz, em UTI, a observação e controle das funções vitais
do paciente, sem contudo esquecer que estamos diante de um ser bio-psíquico-
sócio-cultural, onde estas características são inseparáveis. É impossível
cuidar, no verdadeiro sentido, somente do lado biológico, pois somos mais que
matéria.
Tem coisas que a gente tem que passar [...] (E09)
Tem coisas que é pra gente melhorar. Deus sabe.(E11)
Sei que a Virgem Maria zela pela gente [...] (E02)
A importância em se acolher o paciente, o ser humano, de forma que as
atividades técnicas não sejam confundidas com o cuidar, em seu sentido
cristalino, de segurança e proteção, em meio à carência do cultivo da
afetividade a qual dificulta a sincronia de se ser humano diante do ser humano.
Que Deus ta perto e cuida da gente [...] (E03)
A necessidade do ser humano de ser cuidado reflete a crise existencial e
emocional, enfrentada pelo paciente, em meio a expectativas em relação à
assistência a ele prestada no ambiente dinâmico de uma UTI, revelando, com
isso, o anseio pelo suprir de suas necessidades fisiológicas, psicológicas,
sociais e espirituais.
É uma mensagem do Chico que dá força [...] (E14)
Para se atender as necessidades psíquico-sociais do ser humano, internado, no
caso em uma UTI, precisa-se humanizar este espaço, de forma que o homem seja
valorizado como ser social e tenha estímulo para seu restabelecimento, com
dignidade, equilibrando assim, a sua afetividade, consciência e pensamento.
A complexidade do fenômeno do sofrimento e morte revela o legítimo processo em
que coexistem a religiosidade e o estado de doença, onde a ameaça à integridade
físico-emocional se mostra extensiva ao espírito através das reações da alma
rumo a uma recíproca busca pela harmonia do significado da vida.
Observa-se que os pacientes da UTI-HC são visitados todas as semanas por grupos
de apoio espiritual que fazem orações, emitem passes e entoam canções
religiosas. Percebe-se o quanto faz diferença, para o paciente, a melodia
sagrada invadindo seu conduto auditivo e se interiorizando, até o ponto de se
perceber um brilho no olhar, como se uma luz mística, em meio à sombra, se
fizesse presente no frágil e desamparado ser humano.
A música torna-se, neste caso, um instrumento de revelação do mundo sagrado,
promovendo experiências sensoriais rumo ao sobrenatural, ultrapassando
fronteiras humanas, promovendo um encontro com o divino. Independente do
cenário ou meio condicionante, o ser humano sempre busca uma realidade maior
que santifique sua existência tornando-o real, já que sua origem é sagrada,
portanto, inspira a espiritualidade em busca de um significado para os dilemas
existenciais.
A linguagem musical sagrada revela a realidade infinita da imortalidade; não
era a música em si, mas a sua sacralidade consistia no que ele revelava da
realidade fundamental daquela realidade transcendental da qual o homem sempre
se tem sentido parte e sabe ser evidente no mundo(7).
O indivíduo, no decorrer de sua internação, se depara com situações de
conflito, conscientes e inconscientes, dúvidas ao reconhecer a fragilidade
humana, com isso, o indivíduo passa a manejar este fato através da necessidade
de se vivenciar uma experiência religiosa onde desperta sentimentos de alegria,
de paz, de poder e, também, o sentimento de estar ligado a alguma coisa que é
maior que o homem(8).
Que Jesus Cristo salva e cura, é só crê no seu poder. (E08)
É importante ressaltar que o objeto sagrado, o ganz andere representa, neste
contexto, o resgate das concepções holísticas sobre o ser humano, isto é, mente
e corpo formam um todo e, neste todo, o sagrado e o profano estão sempre
juntos, porém eternamente separados, portanto, tem-se que lembrar que, ao
assistirmos o paciente, devemos ter em mente que é um homem que carrega a
doença e não uma doença que carrega o homem; desta forma, o indivisível ser
humano deve ser encarado e tratado.
Através da religião sempre presente por meio de um símbolo sagrado, o ser
humano busca explicações para os fenômenos que o envolvem. Sua busca infinita
ao mundo supra natural o impulsiona em um caminho místico capaz de decifrar
questões cotidianas e angústias existenciais.
É óleo ungido por Deus, pra gente passar e crer [...] (E15)
Durante o horário de visitas de parentes e amigos próximos, observa-se que o
paciente, tendo seu objeto sagrado por testemunha, revela-se em estado de
êxtase emocional, mostrando-se amparado misticamente, se autovalorizando e em
recuperação da auto-imagem violada. Esta atitude faz com que a fé dos
familiares e amigos se revitalize diante da figura de um paciente com sua
espiritualidade à flor da pele e em uma projeção de sentimentos de
reconhecimento do significado de se viver momentos de impotência da natureza
humana à luz da descoberta de que somos mais que matéria.
4.2 O objeto sagrado
Ao se abordar o valor do objeto considerado sagrado para o paciente internado
em uma UTI, recorre-se às idéias de Kant no que diz respeito a se ter
sensibilidade para que, de forma receptiva, isto é, com sentimento, se possa
entender o significado de uma representação para o ser humano; esta referência
é fruto de uma necessidade de cunho cultural e tem a capacidade de gerar
sensações de acomodação ao conflito vivido.
Significa que os santos e meu guia tão aqui comigo.(E17)
A observação é básica para o conhecimento [...] Anschauungsignifica olhar para
ou sentir com os olhos(9:131). Desta forma, se pode perceber detalhes,
aparentemente mínimos, porém relevantes na experiência sensível da relação
paciente-objeto sagrado. Deste intercâmbio com o transcendente, os sentimentos
antagônicos à dor e à apatia são relegados a um segundo plano de expressão e
reação em que a satisfação é o sentimento de progresso; a dor é o de um
obstáculo da vida(9:136).
Que Deus ta comigo. Vai me ajudar [...](E01)
As reações observadas, nos pacientes, nos revelam o limiar de ansiedade e
atitudes de insegurança projetadas frente a possibilidade de estar só, sem o
objeto sagrado, símbolo do amparo transcendente. Percebe-se que, ao ter o
objeto sagrado de volta, o paciente se mostra menos ansioso e, uma postura de
euforia e segurança aflora-se, como característica essencial em um paciente que
junto ao seu objeto hierofânico, vive a angústia de se perceber mortal. O
homem, ao se deparar com o mistério da morte, se volta para a revelação
religiosa a qual se torna um sustentáculo para o angustiado ser humano frente
ao morrer(10).
O Cristo tá comigo, tenho fé nele. Não é a minha hora.(E18)
Ao fazer uma análise de aspectos que envolvem a magia, presente nos objetos
considerados sagrados, percebe-se que a religião está imbuída de semblantes
ocultos os quais, através de meios e efeitos, demonstram que o homem possui a
verdadeira vontade de acreditar em uma ilusão real. Dos objetos sagrados emanam
a magia que se alimenta da credulidade em simbolismos legitimados pela
sociedade; "[...] sua crença é sincera na medida em que é a crença de todo o
seu grupo. A magia não é percebida: crê-se nela"(11:126).
Tem-se o objeto considerado sagrado em sua essência reveladora do mana, do algo
sagrado que dá sentido ao encanto dos amuletos, dos talismãs, atuando na
irradiação de uma vigorosa energia sobre o indivíduo enfermo que prima por um
poder ou uma potencialidade hipotética de produzir efeitos de uma maneira
mística(11:126).
Essa água tá abençoada, vai me curar [...] (E13)
É óleo ungido por Deus, pra gente passar e crer [...] (E15)
Os objetos de crença reforçam o caráter social da religião perante as distintas
condições do dualismo sagrado-profano, valorizando o objeto sagrado que se
mostra como depositário de poderes, de valores mágicos que seduzem o homo
religiosus, produto de convenções racionais, onde a razão não sacia as
necessidades absolutas do espírito.
Considerando a importância dada ao sagrado pelas pessoas, buscou-se no contexto
das religiões primitivas fatos concretos que expressassem a força da religião
sobre o homem primitivo verificando-se de que forma esta força tornou-se
necessária para o ser humano no decorrer do tempo e do espaço. A religião é um
fenômeno social, portanto, pode ser colocada como um conjunto harmônico, de
ritos e crenças, onde o sagrado é representado por um símbolo, o totem(11).
O objeto sagrado passa a ser como um elo abstrato entre o racional e o
irracional, a razão e a emoção, a matéria e a memória, o natural e o
sobrenatural, o alívio e a dor, a vida e a morte.
Observa-se que o paciente de terapia intensiva encontra-se em um estado
vulnerável, onde o sofrimento o intimida, portanto agarra-se à religião,
através do abjeto sagrado, como saída, uma fonte de poder para curá-lo, seria
como uma analgesia. O sagrado passa a irradiar segurança quando, em um momento
caótico, a vida, frágil e vulnerável, encontra-se ameaçada.
Sei que a Virgem Maria zela pela gente [...] não quero morrer [...](E02)
O sagrado manifesta-se de forma mais intensa, quando há uma realidade
diferente, onde a vida espiritual profana do homem busca o Absoluto através de
uma experiência religiosa rica em perspectivas diante do irracional fenômeno
sagrado(1). A hierofania se mostra peculiar a cada cultura religiosa, o sagrado
se mostra em diversos objetos do mundo profano, onde venera-se não o objeto em
si, mas o sagrado que nele se revela. O homem religioso esforça-se para viver
em um universo sagrado que parece não caber nas dimensões do cosmo
dessacralizado das sociedades contemporâneas, no homem religioso está
intrínseco o sentimento de dependência por ser criatura e , portanto, vive
fascinado pelo "totalmente diferente, o mysterium tremendum"(12:18).
O objeto sagrado passa a desempenhar papel fundamental na vida do paciente,
simboliza o sobrenatural, o que é capaz de resolver tudo o que a ciência não
alcança, é a garantia de que, se a razão falhar, no processo de sua cura, há
uma entidade sagrada que poderá fazê-lo; "é uma crença na onipresença de alguma
coisa que vai além da inteligência"(11:15).
Eu fiz para mostrar que acredito no Cristo. (E19)
Ao se observar, na UTI, a relação fervorosa do paciente com seu objeto
considerado sagrado, percebe-se, com mais clareza, a fé que anima o paciente, a
sua inabalável devoção à divindade e a contagiante esperança depositada, por
meio do símbolo religioso, na intervenção sobrenatural. Não se consegue
compreender, em termos racionais, o fenômeno em causa; o poder sagrado fascina
e atemoriza. O fiel relaciona-se com as realidades sagradas através da
interferência espiritual sobre o cotidiano, onde se procura ter uma cosmovisão
baseada em símbolos; quando coloca que "toda religião procura entender o mundo
a partir de um conjunto de símbolos, bem articulados entre si, que revelam e
constroem a realidade"(13:122).
É comum, por exemplo, encontrarmos um paciente católico recebendo visita de um
pastor evangélico e/ou de um orador espírita. Com freqüência encontramos um
mesmo paciente portando vários objetos sagrados.
Estes fatos nos demonstram que, quando nos deparamos com nossa existência
mortal, as barreiras que a própria sociedade cria, em torno dos credos, se
desmoronam e a essência ecumênica, do sentimento religioso, se manifesta, é um
momento onde a solidariedade humana é evocada na luta à favor da vida com
dignidade; a necessidade de calor humano reflete a expectativa pelo agir do
sobrenatural, pela interpenetração do sagrado na natureza humana, decifrando
seus segredos, resolvendo seus dilemas, promovendo um diálogo, pacífico e
neutro, entre o espiritual e o material, acreditando que se terá como resultado
deste confronto, a reversibilidade (cura) da deterioração física (doença).
Diante do contexto frio de um hospital e na situação vivida pelo paciente, a
hierofania se estabelece, o sagrado se revela de maneira dogmática na vida
humana. O objeto sagrado se torna alheio às análises humanas (racionais). O que
se nota é que há uma relação de fé, fé no invisível, no transcendente refletido
através do objeto venerado.
O ser humano, na condição de paciente, busca a almejada graça, reverenciando a
entidade sagrada por intermédio do objeto adorado, depositando, nele, suas
expectativas, seus medos, suas frustrações. Este momento culmina em um
desabafo, é como se fosse uma válvula de escape, onde o indivíduo, sufocado por
seus temores, os descarrega diante do numinoso, do mysterium tremendum.
O contexto insalubre de uma UTI, se torna palco de espetáculos excepcionais,
onde o paciente protagoniza, de forma melancólica, a busca por um refúgio, como
forma de defesa contra os distúrbios fisiopatológicos, questões emocionais,
psicossociais, ambientais e familiares.
Não consigo rezar sem ele [...] preciso rezar muito! (E22)
O estado dinâmico de intercâmbio com o sobrenatural poderá resultar em melhora
psíquico-emocional, onde a energia do luminoso, age como fator estimulador para
o paciente, levando-o a se sentir menos agredido. Portanto, reduzindo seu
limiar de ansiedade, representando com isso, perspectivas de harmonia corpo-
mente.
O óleo ta abençoado, é só ungir que vem a cura. (E20)
Essa água ta abençoada, vai me curar [...] (E13)
Percebe-se que a relação com o objeto sagrado passa a atuar como um fator
redutor de stress, tendo em vista que o paciente muda sua postura quando se
sente em comunicação com o sagrado; sente-se convicto da intervenção
sobrenatural em sua vida, sente-se motivado, facilitando, com isso, o processo
de adaptação à realidade vivenciada.
O vínculo objeto sagrado-paciente assume uma conotação de ritual, onde há uma
íntima e empolgante relação em uma síntese harmoniosa onde as reflexões e
meditações superem o horizonte da ciência diante dos dilemas da existência
humana. Ao voltar-se para o objeto sagrado, seja no olhar, no toque, enfim ao
saber que o mesmo encontra-se por perto, o paciente religioso, ultrapassa
limites, revitaliza o espírito, favorecendo o suprimento das necessidades
interiores mesclado pelos valores humanos.
A matéria responde: o corpo, debilitado pela doença, esboça uma reação
sobrenatural. Coincidência? Milagre? Empolgante se torna observar estes
fenômenos onde não se define mais o que é obra da ciência e o que cabe ao
supra-natural e, neste dualismo, o Absoluto se mostra soberano.
É a palavra de Deus que está escrita e tem poder de curar [...] (E04)
A situação do homem em relação ao sagrado, baseia-se em expressões de
experiências místicas que se moldam conforme o momento que o homem vivencia. A
dimensão da sacralidade, a qual envolve o paciente religioso transforma um
objeto profano em um objeto atraente de veneração, onde a experiência sacra
jamais se esgota, portanto, eficaz se torna a busca pelo algo diferente que
gera "a liberdade para se viver o paradoxo de se inserir no real, no sagrado,
através dos atos fisiológicos [...]"(1:37).
O arquétipo de contemplação valoriza o simbolismo cultural da experiência
religiosa humana, "ele revela uma realidade sagrada ou cosmológica que nenhuma
outra manifestação revela [...] revelação inexprimível [...](12:372)" que
convergem para a integração do homem no universo real do sagrado, reivindicando
sua profunda identidade, anulando limites e se libertando para a busca da
experiência mágico religiosa onde "o símbolo identifica, assimila, unifica
planos heterogêneos e realidades aparentemente irredutíveis" (12:372).
No período em que o homem se vê enfermo, principalmente, fisicamente, observa-
se que sua espiritualidade torna-se aguçada, surgindo através de suas
necessidades, a proximidade do sagrado e a intenção de manipulação desse
sagrado como, por exemplo, rezar com o rosário nas mãos, ler a bíblia, tocar
imagens, beber água fluidificada etc, enfim, todo procedimento que tenha
ressonância na dialética das hierofanias, ressaltando, com isso, que "la
creencia de que lãs acciones humanas son potencialmente capaces de influir en
lo sobrenatural, y de evocar respuestas sobrenaturales de algún genero"(14:21).
Não consigo rezar sem ele [...](E22)
Os poderes sobrenaturais, propostos culturalmente, estão intrínsecos, e ao
mesmo tempo, extrínsecos, nos símbolos que promovem a intercessão com o nível
abstrato. O comportamento religioso torna-se implícito ou explícito em meio as
ações e emoções oriundas do paciente que busca, na religião, a compreensão de
sua impotência humana; a religião engloba "los sentimientos, actos, y
experiências de cada hombre em su soledad, em tanto que este compreenda que
está em relación com cualquier cosa que pueda considerar como divina"(14:24).
Repensa-se valores; abrem-se gavetas diante da fragilidade emocional em que se
encontra o paciente que, somente se torna completo, junto ao seu objeto
sagrado.
Significa a minha fé de cristã que sou [...] (E21)
Transporta-se para as observações de campo, onde os pacientes, inclusos no
estudo, se mostraram como protagonistas do fenômeno religioso em que, objetos
considerados sagrados como cruz, rosário, medalha, bíblia, fita, gravuras de
santos, patuás etc., se revelaram com uma conotação, profundamente, venerável
para o paciente. Percebe-se que o comportamento espiritual do homem pós-moderno
e, em franco processo de laicização, parece não se sustentar quando o mesmo se
percebe limitado pelo profano, durante o confronto com o estado patológico
orgânico; neste período, o homem se torna, realmente, criatura, pois se
apresenta frágil e dependente, com sede de uma experiência, com o supranatural,
em meio às dimensões da existência humana, mantendo-se no universo sagrado onde
os mistérios transcendentais o embriagam. O homem religioso sente-se em
comunicação com o Absoluto, sendo, este nível, capaz de revigorar as forças
vitais no homem debilitado. A reação fisiológica se torna um meio de comunhão
com a atmosfera sagrada, denotando a integração do homem em sua experiência
religiosa mediante a presença do objeto hierofânico.
Não estou só, Deus tá comigo[...] Ele me dá força[...] (E12)
É uma mensagem do Chico que dá força [...] (E14)
Ressalta-se que o símbolo que sobressaiu entre os pacientes, foi a cruz, que
estava presente, na maioria das vezes, presa em um colar ou em um anel e até
mesmo na forma de tatuagem. Este é o princípio de hierofania subjacente à
magia, repleta de comportamentos eficientes e ricamente organizados que
refletem estímulos sobrenaturais. Daí, alega-se a capacidade de mediação do
objeto considerado sagrado em trazer bons fluídos, acarretando a cura interior
e exterior, demonstrando a ansiedade pela almejada graça ou pela benção.
Que Deus ta comigo. Vai me ajudar [...] (E01)
Percebe-se um "vínculo estreito entre a experiência religiosa e as necessidades
vitais"(15:158) ao se referir ao fato do ser humano recorrer à religião quando
se defronta com a crise; neste caso, a necessidade de saúde, podendo ser esta
situação, de busca de poderes divinos, um reflexo da fuga do círculo pragmático
materialista, onde procura-se proteger, a precariedade da vida, através de
objetos considerados sagrados que suscitam a intervenção sobrenatural na
resolução da crise, a qual advêm de uma origem biológica ou atribuída a um
"mal" que interrompe e desorganiza o equilíbrio da vida.
4.3 Fé, basicamente fé
A fé que o Divino Pai vai me dá a graça.(E06)
A benção ou a graça se fundamenta em uma crença coletiva que proporciona
verdadeiras experiências individuais através da fé, legitimando reflexões, onde
o real e o irreal se interpenetram, confundindo a identidade reacional do que
crê, principalmente, quando sob a matéria humana doente, surge o efeito da
necessidade de cura, isto é, uma reação psicossomática na qual "é a fé do
doente no poder mágico que o faz efetivamente sentir a extração da sua doença"
(11:155)
O estado de caos físico-emocional em que o paciente se encontra, declara seu
desejo profundo de usufruir da sua fé com liberdade de consciência e de
expressão.
A figura da divindade está sempre presente através do universo simbólico do
homem, onde o objeto de devoção torna-se extensão dos domínios sagrados na
expressividade involuntária ou intencional de transmitir a força vital oriunda
do universo religioso. Tal fato permeia, no paciente, um princípio de esperança
e motivação por meio da relíquia maior do ser humano, a fé, a qual traduz
elementos subjetivos, psíquicos, volitivos e intelectuais do ser humano que
associados aos aspectos éticos e sociais reforçam o nó entre o homem e sua
cultura na forma de se viver a experiência religiosa.
As experiências do sagrado tem uma conotação de insaciabilidade, levando o homo
religiosus a encontrar-se em constante busca pelo absoluto, utilizando uma
linguagem simbólico-cultural, de forma que o objeto sagrado signifique o
encontro com a divindade, mediado pela expressão da fé.
A fé por meio do objeto sagrado acende, no paciente, uma chama otimista e, com
isso, a doença passa a ser não mais compreendida como um castigo por um pecado
e sim como um evento casual na vida de uma pessoa, sendo, com isso, passível de
melhora, cura e conseqüentemente reintegrado à sociedade. É importante
ressaltar que estas situações estão presentes no âmago da pessoa, portanto,
inacessíveis à observação direta.
Não consigo rezar sem ele[...] preciso rezar muito!(E22)
No amplo universo do sagrado, a reciprocidade de trocas entre o humano e o
divino indicam a invocação pela recuperação da saúde física e da estabilidade
emocional diante da vivência religiosa. Em qualquer cultura, existem valores,
chamados transcedentes e incontestáveis, como a morte e as doenças, que são
exemplos de méritos absolutos onde, as matrizes religiosas, estocam um
repertório de significados que apelam para a égide divina, fonte inesgotável de
alimento espiritual. Este sentido, primeiro se torna acessível, mediante a
sensibilidade religiosa, por meio da qual a fascinante experiência com o
sagrado poderá tornar-se até nirvânica(16).
Que Jesus e Maria tá aqui comigo. (E10)
A relação emoção (espírito) - doença (matéria) aponta para o fenômeno em que o
homem deseja absorver forças espirituais e também ter seus conflitos absorvidos
pelo sobrenatural.
O paciente passa a se perceber como uma pessoa doente e não como a doença.
Consola-se em saber que sua enfermidade está limitada à matéria, sendo que esta
condição de pensamento significa uma ampliação de um futuro real influenciado,
positivamente, pelo estado espiritual. O indivíduo irradiado pelo sagrado é
impulsionado a reagir ao esgotamento físico-psíquico, podendo desencadear um
processo de alívio de sintomas somáticos e das sensações da consciência,
favorecendo a eficácia das medidas terapêuticas.
A representação simbólica do sagrado corresponde a expressão de que há
esperança, com isso, os presságios otimistas e confiantes são emanados; o
adoecer torna-se menos agressivo ao soma e à psique. O paciente se adapta com
mais complacência à situação vivenciada, compreendendo os fatos e as leis da
natureza humana, sendo que este comportamento torna-se repleto de reações
psicofisiológicas favoráveis ao processo de restabelecimento da saúde.
O paciente ao pensar e praticar a sacralização supera os obstáculos do ser
humano no que diz respeito a se elevar a um nível de resistência frente ao
paradigma do processo patológico orgânico. Ultrapassa-se barreiras e resgata-se
valores religiosos que traduzem e suprem as necessidades do ser humano na
direção de uma prática transformadora.
Significa a minha fé de cristã que sou. (E21)
A espiritualidade do paciente é colocada à prova durante sua passagem pela UTI.
Novas percepções afloram suas crenças religiosas e a presença do objeto sagrado
revela padrões culturais ou étnicos, peculiares a seu grupo social,
demonstrando com isso, a intensidade em que a religião é parte da vida da
pessoa e nos revelando que as crenças religiosas estão relacionadas à noção de
saúde e doença. A experiência religiosa assume um caráter, singular e rico, em
um simbolismo legítimo e útil, onde o valoroso objeto, símbolo da conexão com o
mundo transcendental, passa a despertar sensações corpóreas como otimismo,
entusiasmo, inspiração e outros estados compensatórios que dignificam e
enobrecem o ser humano.
A sensação de conexão com o sobrenatural produz, no paciente, efeitos
emocionais ou motivacionais que reforçam a harmonia corpo-mente em direção a
auto-preservação. Os eventos sobre-humanos vividos pelo paciente religioso
estão, presumivelmente, além do domínio da ciência, pois os mesmos elevam o
espírito e a virtude.
O paciente em meio à crise em seu universo psico-biológico se desperta para uma
experiência religiosa onde se coloca, à prova, sua existência no plano físico,
afetivo, intelectual e espiritual, sendo esta situação vivenciada de forma
autêntica, individualizada e subjetiva, onde se vive o "primado do vivido, no
momento em que as ciências do homem mostram o profundo intrincado entre o
sujeito e o objeto que o homem constitui para si mesmo"(8:87).
A experiência religiosa promove a captação e compreensão do sagrado caminhando
para a reação do homem frente ao Divino que se declara real e exige, com isso,
a fé e, por intermédio da qual autoriza e legitima o fenômeno de se transportar
um objeto profano para a dimensão sagrada, tornando-o referência a favor do
homem na captação do eterno em um contexto mortal, sendo, este fenômeno,
considerado como uma fusão intuitiva e reflexiva.
5 Considerações finais
Tentou-se apresentar, nas páginas anteriores, o clarear de um conjunto de
fatores que demonstram a presença do sagrado em situação de internação em UTI,
fatos estes oriundos de investigação de campo.
No desempenho do trabalho de campo partiu-se da concepção de que o ser humano,
frente a uma situação de ameaça, assume a postura adaptativa e, neste contexto,
o sagrado se revela, se torna necessariamente presente neste momento
inesquecível.
A internação em uma Unidade de Terapia Intensiva ocorre, na maioria das vezes,
de forma súbita, como sinônimo de agravamento, de risco iminente, gerando
conflitos emocionais frente à angústia do morrer. Nesta situação de risco
emerge, no homem, a inspiração e a espiritualidade, isto é, um apelo ao sagrado
através de rituais, na busca de um transcendente imanente que se torne uma
realidade luminosa neste cenário de caos.
A proximidade da morte angustia o ser humano, o qual busca, no transcendente,
através da experiência religiosa, algo que legitime a situação em que se
encontra. Enfrenta-se o medo do caos, munidos de orações, rezas, rituais,
promessas e objetos hierofânicos; portanto, a interpretação religiosa da doença
e morte ultrapassa as barreiras da matéria.
Compreender o significado do objeto sagrado, para o paciente, é um aspecto
fundamental ao prestar uma assistência humanizada. O reconhecimento e respeito
às crenças e valores torna-se um nobre aliado na interpretação que o paciente
confere à situação de crise em que se encontra. No universo sagrado, percebe-se
que o paciente solitário, inseguro, doente e melancólico, anela por encontrar,
no transcendente, companhia, segurança, cura, alegria, conforto, vida!
Destarte o que foi exposto, chegamos à compreensão de que há situações
individuais e intransferíveis, as quais o homem vive como forma de romper
barreiras que se interpõem no caminho do seu desenvolvimento como ser humano: o
adoecer é um desses momentos e estes obstáculos profanos somente são
ultrapassados por meio de saltos sagrados, isto é, o paciente torna-se
susceptível à viver uma emocionante experiência religiosa.