Educação em saúde como estratégia para garantir a dignidade da pessoa humana
REFLEXÃO
Educação em saúde como estratégia para garantir a dignidade da pessoa humana
Educación en salud como estrategia para garantizar la dignidad del ser humano
Health education as a strategy to ensure the human being's dignity
Kaneji ShiratoriI; Tadeu Lessa da CostaII; Gláucia Alexandre FormozoIII; Simone
de Aguiar da SilvaIV
IDocente Adjunta do Departamento de Enfermagem Fundamental da Escola de
Enfermagem Alfredo Pinto (EEAP)/Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO). E-
mail do autor: kanejish@yahoo.com.br
IIBolsista de Iniciação Científica da UNI-RIO. Graduando do 6º período do curso
de Enfermagem da EEAP/UNI-RIO.
IIIBolsista de Iniciação Científica da UNI-RIO. Graduanda do 6º período do
curso de Enfermagem da EEAP/UNI-RIO.
IVBolsista de Iniciação Científica da UNI-RIO. Graduanda do 7º período do curso
de Enfermagem da EEAP/UNI-RIO.
1 Considerações Iniciais
Este estudo vincula-se ao Núcleo de Pesquisa e Experimentação em Enfermagem
Fundamental (NUPEEF) e ao projeto de pesquisa institucional da Escola de
Enfermagem Alfredo Pinto, integrante da Universidade do Rio de Janeiro (EEAP/
UNI-RIO), intitulado "Responsabilidade Social da Enfermagem: do significado de
pessoa aos paradigmas bioéticos".
Apresentamo-lo com o intuito de discutir, ainda que preliminarmente, acerca da
educação em saúde como forma de garantir a dignidade da pessoa humana, tendo em
vista os elementos teóricos direcionadores identificados para tal formulação.
A metodologia pautou-se na abordagem qualitativa tendo em vista a identificação
e análise dos elementos teóricos obtidos nos levantamentos bibliográficos para
a fundamentação do estudo que se constitui como um dos aspectos preliminares da
pesquisa.
A humanização dos serviços de assistência à saúde, certamente, tem sido um
motivo de grande preocupação por parte das organizações nacionais e
internacionais de saúde, o que pode ser constatado mediante apreciação dos
movimentos e discussões vigentes neste setor, as quais se intensificaram,
principalmente, após a culminância de uma nova forma de pensar o processo
saúde-doença.
Lembramos, como por muitos já sabido, que a forma predominante de conceber
saúde, por longa data, tinha como parâmetro exclusivo a ausência de doença,
para o que pautava-se, fundamentalmente, no dito modelo ou paradigma biomédico.
De um modo geral, este modelo visualiza o ser humano como uma máquina/objeto,
que dividido em partes poderia ser melhor entendido e, por conseguinte, melhor
assistido(1).
Assim, inspirado por este paradigma, o conhecimento no ramo da biologia, da
fisiologia e demais áreas da clínica e pesquisa médica alcançaram um progresso
inimaginável na história da humanidade, fomentando modelos de assistir em
saúde.
Dentre as conseqüências deste desenvolvimento evidenciou-se o surgimento de um
aparato técnico, tecnológico e terapêutico capaz de aumentar a expectativa de
vida humana, medida em termos de quantidade, promover a cura de algumas doenças
antes consideradas fatais e permitir a realização de diagnósticos cada vez mais
precoces e específicos(1).
Em contrapartida, a assistência à saúde tornou-se cada vez mais complexa,
dispendiosa, menos resolutiva e socialmente excludente, ou seja, investir na
saúde significa, para o Estado "promotor de bem-estar", custos altíssimos, com
menores resolutividade e área de cobertura populacional.
Ao segmentar o ser humano e tomá-lo por objeto, perde-se uma visão total de sua
existência, bem como uma postura compreensiva, no sentido de considerá-lo
detentor de necessidades humanas singulares e características de cunho social,
cultural, econômico e político.
Diante deste quadro, surge o movimento por uma nova concepção de saúde, na qual
a palavra-chave não é a doença e sim bem-estar e qualidade de vida, onde as
principais ações não estejam unicamente voltadas para a intervenção e para o
investimento tecnológico, assumindo um caráter preventivo e promotor de saúde.
O resultado dos esforços empreendidos neste sentido culminaram com a produção
da Carta de Otawa, a qual define saúde como bem-estar físico, emocional,
econômico, social, cultural e espiritual, resultados das condições de
alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte,
lazer, liberdade, acesso e posse de terra e acesso aos serviços de saúde. Ou
seja, antes de tudo, trata-se do resultado das formas de organização social da
produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida(2).
Com isso, observa-se atualmente, um interesse maior pela qualidade e pela
pessoa, em detrimento da quantidade e da máquina, enquanto aparato tecnológico
propriamente dito, o que, por sua vez, abre caminho para a incorporação
definitiva das ciências sociais e da pesquisa social no interior do campo da
saúde.
Sob esta nova perspectiva, é possível perceber que o ser humano, antes objeto
de intervenção e prática eminentemente clínica, num movimento irreversível,
ganha novos contornos, com a dimensão do sujeito incluído em contextos sócio,
econômico, físico, político e cultural. Sem esta visão, torna-se inimaginável
prevenir e promover a saúde numa comunidade ou de uma pessoa.
Desta forma, torna-se notória a ampliação de responsabilidade do Estado, no
sentido de propiciar as condições necessárias para o alcance de um padrão de
vida mais digno e, portanto, mais saudável, à população.
Da mesma forma, cabe, também, destacar que como conseqüência da adoção de
modelos econômicos de cunho neoliberal, nas últimas décadas, observamos um
empobrecimento e desmonte estatal progressivo, com subseqüente inobservância e
limitação à garantia aos direitos sociais dos cidadãos, entre os quais e todos
convergentes para a saúde e qualidade de vida(3).
Esta negligência quanto aos direitos sociais torna-se mais visível e danosa em
países ditos em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, os quais são
historicamente marcados por acentuado nível de desigualdade e exclusão social.
Diante e como conseqüência deste contexto, torna-se evidente uma maior
preocupação quanto aos diretos humanos fundamentais, como o direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à propriedade, cujo o intuito maior é a proteção da
dignidade da pessoa humana que, não raras vezes, encontra-se aviltada na vida
cotidiana dos atores sociais(4).
Assim, pode-se dizer que, de um modo geral, as lutas empreendidas pela
humanização foram corroboradas, por esta nova concepção de saúde e pela intensa
luta empreendida em prol da valorização e da defesa dos direitos humanos
fundamentais, principalmente diante da atual configuração política e econômica
mundial, que agrava sensivelmente o grau e o número de violações dos direitos
que são garantidos e expressos de forma material e objetiva(4).
2 As estratégias educativas em saúde: um compromisso com a humanização
Diante do exposto, observamos que, apesar da evolução do conhecimento na área
biomédica, com a criação e o aperfeiçoamento de técnicas e equipamentos cada
vez mais sofisticados e precisos, o assistir em saúde tornou-se muito
dispendioso, menos resolutivo e socialmente excludente.
Esta exclusão social pode manifestar-se de maneiras diversas. Podemos pensar em
exclusão social como a impossibilidade de ter acesso aos serviços de saúde
necessários para o atendimento à uma dada necessidade, bem como o déficit de
conhecimento da população quanto às revoluções científicas e suas implicações
para a vida cotidiana, ou mesmo, sobre a terapêutica em que se encontram
incluídas, as formas de prevenir danos à saúde e, de forma mais profunda, de
promover e otimizar a qualidade de vida.
De um modo geral, esta última forma de exclusão social citada, ou seja, a
impossibilidade de ter acesso ao conhecimento, atinge um grande espectro
populacional, com distribuição em todos os estratos sociais, não obstante o
reconhecimento de seu agravamento quando se trata de classes sociais menos
favorecidas, com um menor índice de escolaridade e maior incidência de
analfabetos e semi-analfabetos, os quais, no Brasil, por exemplo, somavam, em
2000, cerca de 14% da população em geral(5).
Este fato foi constatado e discutido por Morin(6), que afirma ser o
conhecimento científico produzido, um conhecimento que não se pode
compartilhar, que permanece esotérico e fragmentado, que não se sabe vulgarizar
a não ser se degradando. Como conseqüência, aponta que, a ciência comanda o
futuro das sociedades sem se comandar e condena os cidadãos à crescente
ignorância dos problemas de seu próprio destino.
Neste sentido, podemos, inclusive, concluir que da forma como configura-se,
evidencia-se uma violação aos direitos humanos fundamentais, visto que estes se
direcionam, basicamente, para a proteção da dignidade humana em seu sentido
mais amplo. Ou seja, de valor espiritual e moral inerente à pessoa, o qual se
manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria
vida(7-10).
Como se daria a manifestação consciente e responsável da própria vida, num
contexto em que as pessoas não possuam competência, ou seja, não detenham
conhecimentos suficientes para anuir ou decidir quanto aos aspetos referentes à
saúde e, por conseguinte, à qualidade de vida e bem-estar?
Assim, pensamos ser, aqui, oportuno destacar que, conforme a Carta de Otawa de
1986, promoção à saúde, diretriz maior para as atuais ações em prol da saúde e
do bem-estar, é o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria
da qualidade de sua vida e saúde, incluindo maior controle deste processo(2).
Podemos, então, entender, que a promoção da saúde representa uma forma de
objetivação dos direitos humanos fundamentais, visto que estes se manifestam na
autodeterminação consciente e responsável da própria vida.
Isto posto, interessa-nos, neste ponto, destacar, que sob esta definição de
promoção da saúde, encontra-se uma das mais importantes, fundamentais e, ao
mesmo tempo, complexas ações humanas: a comunicação; e, sobretudo, importando-
nos, neste estudo, enfocar aquela que ocorre no contexto das ações educativas
em saúde.
Educar em saúde significa dirigir o trabalho no sentido de atuar sobre o
conhecimento das pessoas, para que elas desenvolvam um juízo crítico e
capacidade de intervenção sobre suas vidas e sobre o ambiente com o qual
interagem, de forma que elas tenham condições de apropriar-se de sua própria
existência(11).
Neste sentido, o Comitê de Especialistas em Planejamento e Avaliação dos
Serviços de Educação em Saúde, da Organização Mundial de Saúde - OMS, pontua
como objetivos para a educação em saúde, encorajar as pessoas a: adotar padrões
de vida sadios; usar de forma judiciosa e cuidadosa os serviços de saúde
colocados a sua disposição; e tomar sua próprias decisões, tanto individual
como coletivamente, visando melhorar suas condições de saúde e as condições do
meio ambiente(11).
Expandindo esta concepção, o Grupo Científico sobre Pesquisa em Educação em
Saúde, também da OMS, apresentou como objetivos da educação em saúde:
desenvolver nas pessoas o senso de responsabilidade pela sua própria saúde e
pela saúde da comunidade a qual pertençam e a capacidade de participar da vida
comunitária de uma maneira construtiva(11).
Das definições e objetivos expostos acerca das ações de educação em saúde,
podemos constatar que a preocupação maior é quanto à conscientização da
população quanto aos variados aspectos relacionados à saúde, para que aquela
possa intervir responsavelmente sobre esta.
Assim, para que se efetue esta conscientização da população, faz-se mister que
os profissionais de saúde consigam estabelecer uma comunicação eficaz com
aquela, ou seja, é preciso certificar-se de que o receptor compreendeu a
mensagem. Logo, é fundamental o reconhecimento do fato de que cada cultura tem
a sua forma própria de comunicação, que se dá através da fala, de símbolos,
sinais etc., bem como significados ou visões de mundo próprios acerca dos
fenômenos que vivenciam.
Tendo como base esta afirmação, acreditamos ser indispensável o conhecimento
por parte dos profissionais de saúde, do contexto cultural de onde advém os
sujeitos com os quais se quer estabelecer um laço educativo, bem como do modo
como vivenciam o processo saúde-doença, ou seja, o processo educativo deve ser
sempre dialógico, através da troca de conhecimentos entre educador e educando,
de modo que se torne impossível discernir, rigidamente, quem desempenha um e
outro papel(12).
Visto isso, podemos concluir que o processo educativo em saúde que não
considera a participação ativa do sujeito com quem se quer estabelecer
comunicação, bem como o contexto cultural no qual está inserido, apenas repassa
informações, as quais dificilmente serão assimiladas, pois vêm sob forma de
linguajar técnico, desconhecido, autoritário e, portanto, impraticável e
incomunicável. Ou seja, se o sujeito não foi capaz de compreender, pode-se
dizer que houveram falhas na comunicação e, por conseguinte, os objetivos
traçados com o trabalho educacional não poderão ser alcançados.
Assim, a não efetivação destes objetivos, os quais se direcionam para a
responsabilização da pessoa ou da comunidade quanto à sua saúde, no sentido de
poder tomar decisões conscientes acerca de situações que a envolvam,
subseqüentemente, pode ser entendida como uma violação dos direitos humanos
fundamentais, visto que estes manifestam-se na auto determinação consciente e
responsável da própria vida.
Assim, educar em saúde de forma dialógica, é respeitar os direitos humanos
fundamentais e, conseqüentemente, contribuir para a proteção da dignidade das
pessoas humanas envolvidas no processo. Além disso, recordamos a necessidade da
compreensão dos direitos humanos fundamentais para o cuidado de enfermagem,
respeitar a dignidade de seu semelhante significa, também, que lhe respeitem a
própria(7).
3 Considerações Finais
A promoção da saúde, mediante abordagens educativas em saúde, consiste, em
última análise, em respeitar os direitos humanos fundamentais, e, por
conseguinte, concorre, também, para a proteção da dignidade humana, visto que
esta se manifesta através da autodeterminação consciente e responsável da
própria vida. A dignidade da pessoa humana encontra-se expressa no art. 1°, III
como fundamento da República Federativa do Brasil em seu texto constitucional
(13). Assim considerado, constitui-se num princípio que balisa a compreensão da
pessoa, tendo em vista a materialização e objetivação dos seus direitos.
Conforme disposto no Código de Ética de Enfermagem, o qual teve como
referências os postulados da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
promulgada pela Assembléia das Nações Unidas, em 1948, e adotada pela convenção
de Genebra da Cruz Vermelha, em 1949, contidos no Código de Ética do Conselho
Internacional de Enfermeiros (1953) e no Código de Ética da Associação
Brasileira de Enfermagem (1975), o Código de Deontologia de Enfermagem do
Conselho Federal de Enfermagem (1976) e as Normas Nacionais e Internacionais
sobre pesquisa em Seres Humanos - Declaração de Helsinque, 1964, revista em
Tóquio, 1975, e Resolução n. 1, do Conselho Nacional de Saúde, MS, 1988 - cabe
ao enfermeiro, entre outras funções, atuar na promoção e proteção da saúde e do
ser humano como um todo, respeitando, sempre, os preceitos éticos e legais(14).
Deste modo, concluímos que, ao promover a saúde, mediante estratégias
educativas em saúde, principalmente, numa base dialógica, a enfermagem respeita
os preceitos éticos e legais internacionais, constitucionais e de sua
profissão, bem como, a pessoa humana em sua dignidade, liberdade e autonomia,
concorrendo, assim, para a observância e garantia dos direitos de cidadania,
adquiridos através de lutas sociais históricas, e para a humanização dos
espaços nos quais se desenvolvem os serviços de saúde prestados à população
brasileira.