Profissional crítico-criativa em enfermagem: a construção do espaço interseçor
na relação pedagógica
PESQUISA/RESEARCH/INVESTIGACIÓN
Profissional crítico-criativa em enfermagem: a construção do espaço
interseçorna relação pedagógica
Critical/creative nursing professional : the construction of the intersectional
space in the pedagogical relation
El profesional crítico-creativo en Enfermería: la construcción de un espacio
intercesor en la relación pedagógica
Kenya Schmidt Reibnitz
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Departamento de Enfermagem / UFSC
Email do autor: kenya@nfr.ufsc.br
1 Introdução
A Enfermagem, como as demais profissões, é uma prática socialmente determinada
pela lógica do modelo de produção vigente. Ao longo de sua história, tem
demonstrado esforços para a quebra dessas barreiras culturais e institucionais
que se evidenciam através de seus encontros, seminários e congressos. Destes
eventos, destaca-se a preocupação de que o Enfermeiro precisa ser um
profissional com visão crítica, coerente com a prática social, e que seja capaz
de empreender a conquista do espaço que lhe cabe por direito como profissional
de saúde.
A aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação
em Enfermagem, coaduna-se com esta proposta, apontando a formação de um
profissional mais crítico, inserido num processo histórico-social, capaz de
auxiliar nas transformações das condições precárias de saúde da população(1).
Para tanto, as escolas devem cumprir o seu papel de oportunizar a aproximação
do aluno com a realidade concreta das práticas de saúde.
Ao se analisar uma proposta de formação que tenha como intenção estimular a
atitude crítico-criativa deve-se estar atenta à complexidade, a
pluridimensionalidade dessas relações e à ampliação do significado do trabalho
docente. E, por assim acreditar é que compreendemos a natureza do trabalho
docente como um trabalho vivo em ato, ou seja, que se concretiza e se esgota
num dado momento, de forma única e incapaz de ser reproduzido. Um trabalho vivo
no qual o trabalhador possui uma certa governabilidade sobre suas ações e o
efetiva no espaço de interseção, caracterizando-o como o momento da criação, ao
estabelecer as relações entre trabalhador e usuário(2).
Mas qual é a micropolítica no processo pedagógico? Como ela se apresenta no
Projeto Político Pedagógico (PPP) e como se concretiza? Que espaços de
governabilidade estão presentes na relação pedagógica? O que determina, nestas
relações pedagógicas, que este profissional será mais ou menos criativo, mais
ou menos crítico? Que relações estão implicadas neste processo pedagógico? Será
o modo de desenvolver os conteúdos, o currículo, ou a intervenção em sala de
aula?
Por tudo isto, se faz necessário olhar a micropolítica do processo pedagógico,
garimpar os espaços das relações pedagógicas, procurando perceber o que ali
acontece, pois a formação do profissional crítico-criativo requer a construção
do espaço interseçor, indicador de uma relação pedagógica instituínte. Assim, o
problema de pesquisa configurou-se na seguinte questão norteadora: Como o
espaço interseçor se manifesta na relação pedagógica instituínte? E, para
orientar esse estudo, traçamos como objetivo, compreender como se manifesta o
espaço interseçor na relação pedagógica, em um curso de graduação em
Enfermagem, buscando evidenciar estímulos à formação do profissional crítico-
criativo.
2 O referencial: o trabalho docente como trabalho vivo em ato
Preocupada com a abrangência dos reflexos da relação pedagógica na formação do
Enfermeiro, como já mencionado anteriormente, buscamos um referencial teórico
que correspondesse aos seguintes pressupostos:
A relação professor-aluno, tal como idealizada no PPP precisa se concretizar no
cotidiano pedagógico; - professores e alunos parecem agir em mundos distintos,
mesmo quando explicitam os mesmos objetivos e atuam conjuntamente para alcançá-
los; - o fenômeno da aprendizagem, na relação pedagógica, contempla não só a
informação, mas também aprende-se a (re)estabelecer uma relação entre quem
ensina e aquilo que é ensinado. Ensina-se e aprende-se a refletir sobre a
realidade, colocando-se frente a um conhecimento contextualizado, provocando
mudanças nas formas de pensar, sentir e agir; - para formação de um
profissional que seja um agente de mudança é necessário que no espaço da
relação pedagógica haja oportunidade para vivenciar a prática esperada, tanto
por parte do professor como do aluno, pois ninguém promove o desenvolvimento
daquilo que não teve a oportunidade de desenvolver em si mesmo.
Dentre as inúmeras leituras realizadas, transitando pela área da Educação e da
Saúde, identificamos em Merhy um referencial teórico para a realização deste
estudo, tendo em vista que este autor apresenta uma proposta que focaliza a
relação profissional usuário como o espaço propulsor para a mudança nos
serviços e analisa a micropolítica do trabalho em saúde, procurando identificar
o que acontece durante o processo de trabalho dos profissionais de saúde e que
fatores interferem na determinação de como as ações são executadas, envolvendo
tanto as relações de trabalho como as relações com o cliente. O processo de
trabalho em saúde precisa mudar, precisa ressaltar a subjetividade através do
acolhimento e do vínculo com o usuário e conseqüentemente, esta mudança está
imbricada com a formação destes profissionais(3).
A capacidade criativa do homem possibilita um processo de trabalho que por si
só permite a emancipação do próprio sujeito trabalhador, pois transforma o
objeto no produto e ele também se transforma durante este processo. No trabalho
coletivo, onde ocorre a influência institucional, pela forma como o trabalho é
organizado, o indivíduo vai perdendo esta capacidade de criar, sendo que o que
acaba tendo que fazer é executar algumas tarefas ou atividades delegadas por
outros profissionais ou pela instituição. "No trabalho criador, existe uma
unidade entre consciência e corpo, entre o subjetivo e o objetivo, onde a
consciência determina a ação"(4:264). Desta forma, entendemos a atividade
docente como um ofício, o qual incorpora uma arte-trajeto(5), aprendida no
diálogo das gerações, pois "todo ofício é uma arte reinventada que supõe
sensibilidade, intuição, escuta, sintonia com a vida, com o humano"(6:47).
Refletir acerca do trabalho em saúde reporta-se a um trabalho morto e um
trabalho vivo, apontando para um embricamento muito intenso com o entendimento
de tecnologia e o significado da produção relacionada a consumo e necessidade
(3). O trabalho morto se caracteriza como algo que já está realizado; como
sendo resultado de um trabalho humano anterior que é incorporado a este novo
processo, como uma "cristalização" daquilo que já foi um trabalho vivo. Já está
instituído, é algo dado. Está relacionado com aquilo que você não altera
durante o processo de trabalho
O trabalho vivo é aquele que se traduz em ato, é o trabalho criador. Ele é
instituínte, está em ação. O trabalhador possui uma certa governabilidade
marcada pela ação do seu trabalho vivo, considerando o que lhe é ofertado como
trabalho morto e as finalidades que persegue. No caso do professor, ele está
representado na ação do docente trabalhador e seu poder de interferir sobre o
produto a ser formado, o profissional. Nesta maneira de perceber o processo de
trabalho, o fenômeno da criação está sempre em transformação e é um processo
contínuo, se repete, porém, em constante evolução; é importante que as mudanças
provocadas pelo trabalho vivo aconteçam para que o mesmo, ao ser instituído,
transforme-se em trabalho morto, algo cristalizado e assim sucessivamente, para
que o processo de trabalho instituínte se evidencie (ou se estabeleça). O
trabalho não se esgota no produto. Quando o instituínte é assimilado como norma
ou padrão, ele passa a ser instituído. O instituído e o instituínte são dois
contrários que precisam estar em permanente convivência; para que as
transformações aconteçam, o instituínte precisa tornar-se instituído e assim
sucessivamente.
Deste modo, nos momentos assistenciais e nos momentos pedagógicos temos a
construção de um espaço interseçor, temos um encontro e uma negociação entre
trabalhador e usuário, traduzida em ato, relacionadas aos encontros de
necessidades (conceito de necessidade para além da "ausência de" mas como um
ser que em potência deseja ser - máquina desejante)(2:88). Este espaço
interseçor, não é um somatório de um com o outro, e produto de quatro mãos, mas
um "inter"... designa o que se produz nas relações entre "sujeitos", espaço das
suas interseções, que é um produto que existe para os "dois" em ato e não tem
existência sem o momento da relação em processo e no qual os inter se colocam
como instituíntes na busca de novos processos.
Isto nos faz pensar, sobre o "modo como as cabeças estão sendo fabricadas"(2:
96), pois este processo tem forte influência sobre a micropolítica do processo
de trabalho vivo; elas podem atuar como forças instituídas de resistência à
mudança ou mesmo como estimuladoras de processos inovadores. Estas forças são
uma constante em todo processo de trabalho, pois, estamos mexendo com cabeças e
interesses que atuam "molecularmente no interior dos processos micropolíticos"
(2:97).
As normas instituídas constituem constrangimentos legais que irão delimitar o
espaço de liberdade deste trabalhador. Contudo, este processo pode dificultar
com maior ou menor intensidade, dependendo do modo de atuação deste indivíduo,
pois ele não precisa ser necessariamente um robô. Ele pode, no desenvolvimento
do seu trabalho, encontrar espaços de autogoverno, para que, de alguma forma,
influencie no processo de mudança das regras institucionais.
3 O percurso metodológico
A metodologia utilizada foi baseada na abordagem qualitativa do tipo estudo de
caso instrumental(7,8), pois seu objetivo está relacionado com a compreensão de
como se manifesta o espaço interseçor na relação pedagógica, do Curso de
Graduação em Enfermagem da UFSC - CGE, apoiado no referencial teórico-
metodológico de Merhy(2,3,9).
O caso é sempre bem delimitado, devendo apresentar uma definição de seus
contornos no desenrolar do estudo; ele se destaca por constituir uma unidade
dentro de um sistema mais amplo e, portanto, a escolha deste método contempla
este estudo que examinou algo singular e que tem valor em si mesmo. Este
método, "possibilita a análise de uma situação natural, é rico em dados
descritivos, tem um plano aberto e flexível e focaliza a realidade de forma
complexa e contextualizada"(10:18). É um método que proporciona o
desenvolvimento de descobertas a partir de fatos singulares, no qual se
considera o contexto em que está inserido.
O cenário onde se desenvolveu o estudo foi no espaço formal onde ocorre a
relação pedagógica necessária para a formação do Enfermeiro, neste caso, as
cenas típicas referentes ao CGE-UFSC, da primeira a oitava fase do curso. Com
relação aos atores, sendo o foco deste estudo, os espaços interseçores na
relação pedagógica e considerando que é o professor quem estabelece a natureza
desta relação, os sujeitos foram os professores do Curso, definidos após
sorteio. Estiveram envolvidos neste processo, 17 professores que desempenhavam
o papel docente naquela cena em foco. O período de coleta de dados foi de julho
a dezembro de 2003. A técnica utilizada foi observação tipo participante como
observador, tendo em vista a preocupação em não provocar muitas alterações no
comportamento do grupo observado(10). O grau de participação da pesquisadora
não ocorreu de maneira estanque, se modificando conforme o seu desenvolvimento,
respeitando os princípios éticos e metodológicos. Para a realização desta
observação foi utilizado um roteiro semi-estruturado, elaborado a partir de
ferramenta para análise de dados(11). Foram descritos neste roteiro as
características do trabalho vivo em ato, buscando fidelidade com o processo
pedagógico dando destaque aos elementos da ferramenta de análise. Para a
organização e análise dos dados esta ferramenta foi adaptada e focalizou a
identificação de temas pertinentes ao espaço interseçor no processo educativo,
ressaltando as percepções do ponto de vista da pesquisadora quanto aos dados
provenientes da observação da relação professor-aluno, detendo-se nesta cena
processual.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa e, dos participantes
obteve-se o consentimento livre e esclarecido.
3.1 O processo pedagógico e o espaço interseçor
No processo de trabalho educar visto como trabalho vivo em ato, o espaço
interseçor se constitui nos indicadores do jogo de forças associado aos
indicadores relativos à relação pedagógica instituínte. Após garimpagem e
análise dos dados, destacamos duas categorias, as quais denominamos de "jogo de
forças" e "relação pedagógica instituínte". Esta separação teve (e tem) somente
finalidade didática, propiciando uma melhor visualização dos dados, pois este
processo ocorreu num movimento dinâmico onde o jogo de forças e a relação
pedagógica instituínte se efetivam num só momento.
O jogo de forças na relação pedagógica: O espaço interseçor apresentado por
Merhy(3) ao refletir sobre as relações no sistema da saúde, designa o espaço de
relação que se produz no encontro dos sujeitos, como sendo muito mais do que a
somatória dos dois. O mesmo constatamos no trabalho educar, ao identificarmos
que na relação pedagógica existe um espaço interseçor entre professor-aluno,
que é único e se traduz no trabalho vivo em ato e que se desenvolve numa
determinada realidade, que é única em cada processo.
As técnicas didáticas utilizadas variaram da aula expositiva dialogada com
apoio de transparências, apresentação de trabalhos pelos alunos, em forma de
seminários e exercícios práticos. Salienta-se que a unidade hospitalar mostrou-
se como um campo rico em experiências, porém sem infra-estrutura física
adequada para o processo de aprendência, local para a guarda de material dos
alunos, entre outros. Quanto ao cardápio, o mesmo está representado pelo
planejamento prévio realizado pelos professores às atividades daquela aula.
Neste caso, em todos as observações constatou-se que foram disponibilizados aos
alunos, pelos professores, o objetivo da aula e a dinâmica proposta.
Como resultados deste processo de observação, identificamos como elementos do
jogo de forças no processo pedagógico: Capturas do Instituído - Este jogo de
forças presente no trabalho vivo em ato, é uma das formas de expressão das
tensões entre o instituído e o instituínte, manifestando um "confronto" entre
controle e liberdade.
Na identificação das capturas do instituído houve a preocupação em destacar as
manifestações de "aprisionamento às normas", provocadas pelos professores e
alunos. Os 'indicadores' que traduziram as capturas do instituído na relação
pedagógica, tais como: a) relacionados aos professores e alunos: cumprindo
ritual, manifestando interesse, avaliando, ofertando cardápio; b) relacionados
apenas aos professores: tendo sutileza, orientando.
Quando o trabalho vivo se mostra aprisionado às normas instituídas, ou seja, às
configurações tecnológicas dos processos de trabalho, comandada pelos saberes
estruturados, pelas normas, pelas máquinas, pelos procedimentos, entre outros,
os atores percebem que precisam mudar, mas não conseguem agir por força do
instituído. É importante destacar que durante a observação do processo foi
possível identificar que em alguns momentos esta captura do instituído se
apresentou de maneira positiva, como o próprio Merhy coloca ao destacar que a
captura do instituído não pode ser encarada como algo ruim, mas como algo
necessário para a mobilização do trabalho vivo. Por mais que o professor se
contamine com a possibilidade do trabalho vivo em ato o que lhe proporciona uma
certa leveza ao agir, ele sempre terá regras institucionais e pessoais que lhe
orientarão. Nesta dinâmica, o professor pode não ser totalmente capturado pelas
normas institucionais e pelo saber tecnológico definido, pois esta captura
também é disputada pelos alunos presentes neste processo, podendo prevalecer o
lado mais "duro" (captura do instituído) sobre o mais "leve"(12).
O poder imperativo e proibitivo conjunto dos paradigmas, das crenças oficiais,
das doutrinas reinantes e das verdades estabelecidas determina os estereótipos
cognitivos, as idéias recebidas sem exame, as crenças estúpidas não
contestadas, os absurdos triunfantes, a rejeição das evidências em nome da
evidência, e faz reinar em toda parte os conformismos cognitivos e intelectuais
(13).
Desse modo, quando o instituído se manifesta, ele ressalta a predominância do
trabalho morto sobre o trabalho vivo. Entretanto, em alguns momentos esta
captura é necessária para o equilíbrio da ação pedagógica e sua presença denota
o jogo de forças necessário no processo pedagógico, pois não podemos esquecer
que é neste movimento que o processo se estabelece como trabalho vivo em ato.
Ruídos: Identificamos alguns indicadores como propulsores do ruído: a)
relacionados ao cenário: tendo dispersão; b) relacionados aos alunos e
professores: demonstrando desinteresse; c) relacionados apenas aos alunos:
utilizando expressões não verbais, demonstrando cansaço e manifestando
descontentamento; d) relacionados apenas aos professores: demonstrando
despreparo.
Ruído neste estudo tem uma conotação importante, pois ele rompe com a inércia
da relação pedagógica traduzida pelas manifestações de insatisfação com o que
está ocorrendo no espaço interseçor. Assim, do ponto de vista pedagógico, o
ruído pode ser considerado como algo positivo, pois aponta a inadequabilidade
da ação, como um alerta para alterar o instituído. Precisamos mudar o conceito
linear de ruído estabelecido pelo processo de comunicação tradicional, que o
define como algo que prejudica o processo, algo ruim para se alcançar o
objetivo. Ele precisa ser compreendido como um processo dialético e dinâmico,
ou seja, ao mesmo tempo em que pode vir a prejudicar a eficiência do processo
comunicativo, também aponta para linhas de fuga, brechas e quebras que indicam
a necessidade de um novo processo, favorecendo o processo criativo. Sendo
assim, para a identificação dos ruídos preocupamo-nos em destacar as
manifestações de insatisfação na ação pedagógica, podendo ser expressa de forma
verbal ou não verbal. As expressões não verbais "identificam como o gesto, a
voz ou a fisionomia revelam ou denotam a intensidade de um sentimento ou de um
estado moral"(14:744).
Linhas de fuga - De modo geral, podemos inferir que neste espaço interseçor há
um movimento constante, ora por parte do professor, ora por parte do aluno,
permitindo que no mínimo, ocorra liberdade e expressão. A maioria dos
indicadores se concentrou na mútua relação professor-aluno, contudo, alguns
foram percebidos somente como manifestações dos alunos ou somente como
manifestações dos professores. Desta forma, percebemos alguns indicadores de
geração de linhas de fuga: a) relacionados aos alunos e professores:
estimulando, questionando, manifestando opinião, negociando, justificando e
tendo sensibilidade; b) relacionados aos alunos: reclamando e tendo iniciativa;
c) relacionados aos professores: contextualizando.
Esta é mais uma peça da dinâmica das relações que manifesta possibilidades de
alterar aquilo que está instituído, identificado a partir dos ruídos.
No processo de trabalho educar, traduzido pelo trabalho vivo em ato, as
possibilidades tanto do professor como do aluno, apresentam-se como potências
para o agir e para tanto é necessário a abertura de fissuras no processo
instituído para poder construir linhas de fuga na tentativa de superação dos
ruídos. As linhas de fuga indicam que o ruído foi percebido e propõe linhas de
ação. Estas linhas identificam possibilidades e estão sujeitas ao acerto e erro
e, portanto, podem apresentar-se de várias maneiras, mas como o próprio nome
diz, elas são linhas de fuga, são tentativas e nada está garantido. A geração
de linhas de fuga favorece o pensamento lateral e pode ser um indicativo do
processo criativo; podemos inventá-las para movimentar o curso da vida, ou
seja, para manter acesa a chama da mudança, da inventividade. Contudo, o
instituído muitas vezes pode ocupar o lugar de vigia das linhas de fuga
evitando que elas se manifestem, expressando uma captura do instituído ao
reforçar as situações e saberes já estruturados e constituem, por isso, linhas
de fuga que ao invés de favorecer a mudança.
4 Relação pedagógica instituínte
Neste cenário, então, percebemos, sob o ponto de vista do observador ao
focalizar a cena pedagógica as quebras e brechas que configuram os elementos do
que denominamos relação pedagógica instituínte. Estes indicadores de geração de
quebras e brechas foram: a) relacionados aos alunos e professores: propondo
mudança, demonstrando curiosidade, contextualizando, manifestando solidariedade
e emitindo opinião; b) relacionados aos alunos: tendo autonomia; c)
relacionados aos professores: estimulando o raciocínio.
A dinâmica do espaço interseçor processa-se de maneira interativa e contextual;
ela não está desvinculada do processo pedagógico como um todo e seus elementos
estão sendo constantemente utilizados, independentemente da seqüência em que
são apresentados nesta análise. Esta relação entre os sujeitos expressam as
reações moleculares que ocorrem no interior dos processos micropolíticos(3) que
se manifestam como jogo de forças, ora buscando a mudança como um processo de
resistência ora apresentando-se como forças estimuladoras de processos
instituíntes, inovadores. Percebendo esta possibilidade é que caracterizamos as
brechas e quebras como a relação pedagógica instituínte, não no sentido do
fragmentar o processo, mas com a preocupação de identificar o agir instituínte
neste processo pedagógico.
Frente a este imbricamento entre brechas, quebras e novo processo, é que a
análise destes elementos será feita de forma articulada, buscando a coerência
com a dinâmica do trabalho vivo em ato. As brechas caracterizam-se pelas
expressões do potencial criativo, que, cumulativamente, vão formando um elenco
de ofertas instituíntes que podem favorecer a mudança do instituído. São
percepções do instituínte da existência de outras possibilidades de ações no
trabalho vivo, as quais podem ser utilizadas como ponto de partida a novos
processos. Já as quebras levam em conta que há possibilidade para uma postura
instituínte, para expressar a autogovernabilidade. Mostram possibilidades para
a mudança; são indicadores que viabilizam agenciamentos de novos processos,
indicando a invenção de novos sentidos para o processo de trabalho educar, são
os processos de sujeição, as ações de autonomia resultando numa nova composição
do trabalho vivo em ato.
5 O movimento neste processo pedagógico
O jogo de forças presente no trabalho vivo em ato manifesta as tensões
necessárias para o desenvolvimento das idéias expressando-se num confronto
entre controle e liberdade, manifestado pelo captura do instituído, pelo ruído
e pelas linhas de fuga. Ora, percebemos que a captura do instituído é mais
forte, ora são os ruídos que em muitas vezes não chegavam nem a ser
perceptíveis pelo observador, pois quando alunos e professores se manifestavam
já estavam desenvolvendo linhas de fuga, quer seja para reafirmar o trabalho
morto ou possibilitar o trabalho vivo. É neste movimento, que o processo
pedagógico se evidencia como possibilidade de mudança do instituído, ou seja,
como trabalho vivo em ato.
Nas primeiras fases do curso as manifestações de captura são mais evidentes e a
partir da quinta fase começam as quebras e brechas a serem mais significativas,
mantendo a captura, os ruídos e linhas de fuga. Os ruídos aparecem em todas as
fases, mas predominaram na segunda, na quarta, na quinta e na sexta fases.
Quanto às linhas de fuga, elas mantiveram uma relação constante ao longo do
curso, havendo inclusive em algumas fases, uma igualdade em termos numéricos de
manifestações por parte dos alunos e dos professores. Isto aponta para uma
alternância desta relação ao longo de curso; elas se evidenciaram com mais
significância como desenvolvimento de estratégias de motivação por parte do
professor e as reclamações dos alunos com relação ao cardápio. Isto nos permite
inferir que a manifestação do jogo de forças no processo pedagógico se
apresenta com mais intensidade no início do curso e vai gradativamente abrindo
espaços para a relação pedagógica instituínte de tal forma que o "jogo de
forças" permanece, pois ele é necessário, mas alternam-se e começam a surgir
com mais intensidade os demais elementos do espaço interseçor.
A relação pedagógica instituínte começa a se tornar mais presente, quando os
alunos passam a experenciar e exercitar as atividades de enfermagem no campo
prático. Professores e alunos passam a desenvolver suas atividades no contexto
real, exercitado no mundo do trabalho, no qual se defrontam com situações
incomuns que provocam o desenvolvimento do pensar crítico e a tomada de decisão
como manifestações de autogovernabilidade destes atores.
Isto nos faz perceber que as disciplinas teóricas podem estar, de uma certa
forma, desconectadas do contexto real, não possibilitando a manifestação de
atividades que conectem o conhecimento e a reflexão na e para a ação, com as
teorias e técnicas ensinadas no desenvolvimento de seu processo pedagógico no
mundo do trabalho. Contudo, não podemos deixar de mobilizar as energias
presentes neste jogo para que, a partir destas reações, a relação que se
estabelece entre professores e alunos permita o desenvolvimento de uma postura
de sujeito ativo em ambos, como uma atitude artística que se mostra aberta ao
novo e não se deixa envolver pela racionalidade técnica.
As manifestações de brechas e quebras surgiram com mais intensidade quando
desencadeadas pelos alunos, o que permite inferir que os alunos estão atentos,
atuantes neste processo pedagógico e que os professores estão reagindo ao
instituído, propiciando as brechas e quebras necessárias na dinâmica do
trabalho vivo.
A relação pedagógica instituínte encontra-se carregada de subjetividade e por
isso mesmo se traduz num trabalho vivo em ato. Entendemos que a partir deste
estudo, os fatos apresentados não podem mais ser ignorados, mas há de se
salientar que de forma alguma desmerecem o professor; ao contrário, apenas
confirmam a complexidade desta profissão, que neste contexto, além de exercer a
função docente, também são profissionais enfermeiros que exercitam a enfermagem
em todas as suas possibilidades.
Neste processo, o foco de estudo foi a relação pedagógica na busca do
desvelamento espaço interseçor ondeprofessores e alunos que são sujeitos que
'sujeitam' em certas situações e que 'se sujeitam' em outras. Isto é, ora
assumimos posturas instituídas e ora posturas instituíntes. Esta identidade
está em constante movimento provocando um jogo de forças que pode desencadear
novas possibilidade do sentir e do agir em saúde(2,3,9,12).
O trabalho docente é um trabalho vivo que se processa no momento do trabalho em
si e que se expressa pelo modo em que ocorrem estas relações entre os sujeitos
no espaço interseçor. É nesse espaço que ocorre a possibilidade do professor,
como trabalhador que é, agir no ato produtivo com liberdade e autonomia,
estabelecendo uma relação pedagógica favorecedora do ensino prático-reflexivo,
estimulando o potencial criativo dos indivíduos e sua autogovernabilidade. As
manifestações instituíntes presentes neste processo pedagógico precisam ser
ampliadas para as primeiras fases, destacando a importância da contextualização
como foco motivador para a aprendência,estimulando o raciocínio, provocando nos
alunos a explicitação de suas opiniões, fortalecendo as manifestações de
autonomia com o desenvolvimento da solidariedade e do respeito com o outro, que
é também sujeito deste processo de trabalho educar em saúde.
Explorando a sensibilidade, ressaltamos que o processo de comunicação na
relação pedagógica instituínte não pode ser considerado somente como mecanismo
de troca de conteúdos ou de informações, mas sim considerá-lo no seu sentido
profundo e autêntico, como um jogo de forças entre instituído e instituínte,
que atua como um motor que desenvolve e sustenta a relação entre os sujeitos.
Isto implica num conjunto de atitudes por parte do professor, em que a
sensibilidade e a emoção sejam instrumentos para ativar outras formas de
pensar, de investigar e de assistir. Sem elas, esta relação pedagógica no
ensino de enfermagem não passará de uma gama de técnicas ao serviço de teorias
ou de idéias sobre o cuidado em saúde.
Podemos inferir que o efeito do pensamento criativo no indivíduo é a contínua
geração de conhecimento; a criatividade exige ir além das idéias que sustentam
a lógica e, portanto será estimulada na medida que na relação pedagógica, o
jogo de força entre o instituído e o instituínte, permita a presença de linhas
de fuga, dando abertura para brechas e quebras e novos procedimentos. E é neste
processo de pensar complexo, onde o comportamento mental da racionalidade e da
criatividade se interpenetra, que identificamos o processo crítico-criativo e
que compreendemos a construção do conhecimento(15).
Penso que o conhecimento, acompanhado da reflexão é que nos faz conscientes de
nossos conhecimentos e de nossos desejos, faz-nos responsáveis, porque nos faz
conscientes das conseqüências de nossos atos, e atuamos, segundo desejamos, ou
não [...]. É no domínio da relação com o outro na linguagem que sucede o viver
humano, e é, portanto, no âmbito ou domínio da relação com o outro que tem
lugar a responsabilidade e a liberdade como formas de conviver(16:33-4).
O que motiva o desejo de aprender é a curiosidade, pois ela pode ser traduzida,
como "a voz do corpo fascinado com o mundo"(17:4). O que percebemos com este
estudo é que existe um descompasso entre os programas instituídos e a
curiosidade, reafirmando que o processo educativo precisa mudar, não pode ser
um simples ato de transmitir, de depositar, mas um ato cognoscente entre
sujeitos (educador e educando), numa relação dialógica, ou seja, mediada pela
palavra, pelas relações, pelas emoções e pelos objetos cognoscíveis. As
exigências para estimular e desenvolver o pensar complexo encontram apoio no
trabalho de Merhy(3), que nos permite compreender o trabalho docente como um
trabalho vivo em ato, pois o mesmo focaliza os espaços interseçores (das
relações) como o lócus privilegiados para a prática de duvidar, analisar e
procurar revelar (através de dispositivos interrogadores) o sentido e a
direcionalidade (intencionalidade) do processo pedagógico e os seus modos de
operar cotidianamente nos processos formativos(18:440-1).
Como enfermeiros, profissional da saúde e da educação que somos, isto
possibilita que façamos a relação sobre o cuidar e o educar, salientando sua
interdependência, pois ao educar estamos cuidando e ao cuidar estamos educando.
Estes momentos de relação entre sujeitos, que ocorrem tanto no ato de educar
como no de cuidar, acontecem num espaço interseçor. Neste espaço, há um
encontro, uma negociação, um ato intersubjetivo, que visa a articulação de um
pensar e um agir por parte dos sujeitos desta relação presente no trabalho vivo
em ato.
Precisamos reconhecer a necessária alternância entre o trabalho morto e
trabalho vivo estimulando as potencialidades, e por que não dizer, brincar de
"morto-vivo" ao longo do processo de formação. Para trabalhar e viver assim,
para tornar nossa vida e a dos outros mais belas e dignas de serem vividas,
precisamos "educar artistando"19 Se o professor propicia esta nova forma de
intervir, a relação pedagógica se processará de maneira diferente da habitual,
pois tanto ele (professor) quanto o aluno não serão meros executores/
reprodutores de tarefas e normas, mas sim pensadores críticos, que propõem
novas possibilidades frente ao que está colocado.