A ética no cuidado durante o processo de morrer: relato de experiência
RELATO DE EXPERIÊNCIA
A ética no cuidado durante o processo de morrer: relato de experiência
Ethics in care during the dying process: case report
Ética en la atención durante el proceso de morir: relato de experiencia
Leilane Barbosa de SouzaI; Luíza Eridan Elmiro Martins de SouzaII; Ângela Maria
Alves e SouzaIII
IAcadêmica de Enfermagem do 9º Semestre da Universidade Federal do Ceará.
Membro do Projeto Integrado de Pesquisa e Extensão em Perda, Luto e Separação -
PLUS
IIAcadêmica de Psicologia do 10ª Semestre da Universidade Federal do Ceará.
Membro do Projeto Integrado de Pesquisa e Extensão em Perda, Luto e Separação -
PLUS
IIIEnfermeira, Doutora em Enfermagem. Docente do Curso de Graduação em
Enfermagem da UFC. Coordenadora do Projeto Integrado de Pesquisa e Extensão em
Perda, Luto e Separação - PLUS. Membro do grupo de pesquisa "Políticas e
Práticas de Saúde" - UFC. Docente do Centro de Atenção Psicossocial - CAPS -
SERIII - UFC. Orientadora do artigo
1. INTRODUÇÃO
A ética e o cuidado ao paciente que tem como prognóstico a morte, mantêm uma
estreita relação. Boff(1) ressalta que o cuidado é uma atitude de ética mínima
e universal, capaz até de prolongar a duração de vida do ser cuidado.
Acrescenta, ainda, que o cuidado pode ter o poder, não só de prolongar a vida,
mas, sobretudo, de melhorar sua condição para ser cuidado, mesmo no curto
período de existência que lhe resta.
O dilema bioético surge exatamente quando questionamos: como cuidar de quem
dispõe de tão pouco tempo? Devemos mantê-lo no hospital, onde ele terá um maior
suporte tecnológico, ou levá-lo para casa, para que ele possa desfrutar dos
últimos momentos que lhe restam ao lado das pessoas queridas? É nosso dever
aliviar seu sofrimento, com a utilização de potentes analgésicos, mesmo sabendo
que estes causam dependência química? Afinal, devemos falar de morte com quem
sabe que a sua está próxima? Essas são algumas das muitas indagações que um
profissional de saúde desenvolve, ao se deparar com um paciente fora de
possibilidade de cura.
Esse dilema representa o perfil do homem a partir do século XX, que, segundo
Kóvacs(2), mantém com a morte uma relação distante, que inconscientemente
esquiva-se da morte e a considera vergonhosa, um fracasso, que deve ser
ocultado. Isso se reflete, sobretudo, durante a formação acadêmica, quando
aprendemos que devemos lutar pela vida, que uma vida perdida representa uma
derrota. Por isso, não somos preparados para trabalhar situações em que a
continuidade da vida é uma possibilidade remota ou nula.
Para lidar com o paciente terminal, é de fundamental importância o olhar
voltado para a pessoa; visando, primordialmente, o bem-estar, nos momentos que
lhe restam. Para tanto, não se deve limitar o paciente a um órgão doente e
deixá-lo passivo no processo do cuidado. Partindo desse pressuposto, o PLUS
(Projeto Integrado de Pesquisa e Extensão em Perda, Luto e Separação) propôs a
realização de uma assistência complementar para pacientes em fase terminal,
visando promover uma interação entre este tipo de paciente e estudantes de
enfermagem, medicina e psicologia, com a finalidade de prestar uma assistência
com foco na humanização, assim como sensibilizar os estudantes quanto ao agir
bioético, quando não é possível curar, apenas cuidar.
Entendendo a necessidade de se trabalhar a questão da morte a partir de uma
abordagem bioética, propomo-nos, aqui, relatar nossa experiência durante o
acompanhamento dos últimos dias de vida de um paciente terminal em seu
domicílio.
2. OBJETIVOS
- Relatar a experiência de acompanhamento domiciliar de um paciente em fase
terminal;
- Promover reflexão a respeito do dilema ético de cuidar de um paciente em fase
terminal.
3. PERCURSO METODOLÓGICO
3.1 Apresentando o PLUS
O PLUS, um Projeto de pesquisa e extensão, que tem como sigla as palavras
Perda, Luto e Separação, vem sendo desenvolvido com o intuito de suscitar a
discussão entre profissionais e acadêmicos da área da saúde e áreas afins em
torno dos temas de perdas, lutos e separações como parte de seu propósito de
extensão universitária.
O projeto é composto por estudantes dos cursos de graduação em Enfermagem,
Medicina e Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), orientados por
uma doutora em enfermagem da área da saúde mental, professora do Curso de
Graduação em Enfermagem da UFC e em colaboração com outros profissionais da
área da saúde uma doutora enfermeira e psicóloga, um enfermeiro assistencial e
a equipe do hospital no qual desenvolvemos nossa pesquisa.
Destacamos que desenvolvemos atividades de forma interdisciplinar, promovendo o
compartilhamento do conhecimento entre as profissões e cursos de graduação
envolvidos.
As atividades realizadas pelo Projeto PLUS envolvem a promoção periódica de
eventos direcionados à comunidade acadêmica, publicação e veiculação de
produções científicas nos diversos meios de comunicação, estabelecimento de
grupos de estudos, pesquisas e treinamentos do corpo discente através de
encontros periódicos para discutir o tema a que se propõe e a prestação de
serviços à comunidade em geral, através da participação em atividades de
instituições de referência no atendimento a pacientes terminais.
3.2 Compreendendo a importância da assistência em domicílio
O ambiente hospitalar representa, para o enfermo, a perda de sua identidade, de
sua individualidade e de sua autonomia, além de favorecer o surgimento de
sentimentos de solidão e abandono. Para o paciente terminal, a hospitalização
pode representar algo ainda mais assustador. A morte nos hospitais, como
caracteriza Kóvacs(2), tornou-se um ato solitário, mecânico e doloroso, tendo
em vista a ênfase que se dá ao desenvolvimento tecnológico em detrimento de
questões humanas mais relevantes. Sendo o hospital comprometido com processo de
cura, como afirma Angerami-Camon(3), o paciente terminal representa desafio
para os profissionais desse âmbito, que buscam proteger-se contra o risco de
uma possível falha, a morte. Assim, o paciente terminal, desprovido de sentido
existencial, representa um fracasso da instituição, como bem coloca Kübler-Ross
(4), não havendo nesse sistema nada que venha suprir a carência humana. O
paciente necessita de cuidados que se sobrepõem à tecnologia e à cura.
Para o paciente na iminência da morte, a instituição familiar pode ter um valor
bastante significativo. Para muitos homens, a família é a fonte da felicidade,
sem a qual o homem está desprovido de algo estimulante(5). De acordo com
Kübler-Ross(4), o cuidado domiciliar requer menor adaptação do paciente, uma
vez que no ambiente domiciliar residem referências, sua identidade, e isso se
constitui numa forma de "resgatar" a vida. O home care(cuidado domiciliar)
representa uma alternativa mais humana, permitindo ao paciente readequar-se ao
seu ambiente, obtendo um maior conforto e proximidade com a família. A equipe
responsável pelo home care é composta por profissionais que realizam atividades
ligadas à terapêutica medicamentosa, cuidados de enfermagem, assistência
psicológica e social ao paciente e à sua família. Trata-se, portanto, de um
trabalho interdisciplinar.
Tentando compreender o contexto no qual é realizado o home care e visando
amenizar o estresse experimentado pelo paciente em fase terminal e por sua
família, o PLUS realiza o atendimento domiciliar, uma modalidade de assistência
a pacientes nestas condições, com o propósito de executar atividades
diversificadas e específicas, buscando promover a melhora da auto-estima, a
compreensão saudável dos sentimentos e da situação vivenciada, bem como outras
necessidades apresentadas.
3.3 Entendendo o contexto para implantação do atendimento domiciliar
O atendimento domiciliar é realizado com pacientes submetidos ao home care de
um hospital na cidade de Fortaleza-Ceará. O contato inicial entre os estudantes
e os pacientes dá-se na primeira visita realizada, em que dois integrantes do
PLUS participam juntamente com a equipe de home care do hospital especializado
em câncer em estudo, que já vem acompanhando o paciente, sendo esta composta
por uma médica, uma enfermeira e uma assistente social. A partir dessa visita,
os integrantes se identificam para o paciente, apresentam o projeto e
esclarecem a finalidade de sua presença. Caso o paciente aceite o atendimento
oferecido, caberá aos estudantes o estabelecimento de novos contatos para que
as atividades sejam efetivadas.
Os integrantes do PLUS, antes de iniciarem o atendimento domiciliar, passam por
três fases preparatórias:
1ª- participação em grupos de estudo: quinzenalmente, integrantes novos e
veteranos do PLUS se reúnem para ler e discutir assuntos pertinentes à temática
"morte e morrer";
2ª- observação no ambulatório do hospital: após obterem o conhecimento teórico
acerca do contexto que envolve um paciente em fase terminal, os estudantes são
encaminhados a observar a realidade desses pacientes;
3ª - acompanhamento do home care:nessa etapa, os estudantes acompanham diversas
visitas realizadas pela equipe multidisciplinar do hospital em estudo. Após
sentirem-se preparados, discutem entre o PLUS e a equipe multidisciplinar do
hospital a possibilidade de atendimento domiciliarde um paciente.
O atendimento é realizado por dois acadêmicos de cursos diferentes, visando à
promoção da interdisciplinaridade e a contribuição de distintos saberes na
assistência ao cliente. O acompanhamento é realizado através de visitas
domiciliares semanais. As atividades realizadas durante cada visita são
estabelecidas de acordo com a demanda do paciente. Não há tempo determinado ou
pré-estabelecido para o fim das visitas. Cada visita é registrada em relatório
e discutida entre os integrantes do PLUS.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 Implantando o atendimento domiciliar
O atendimento domiciliar como atividade complementar do home care do hos pital
em estudo é um dos projetos pioneiros do PLUS. Entretanto, a idéia só passou a
ser amadurecida recentemente, quando fomos impulsionadas por um grande desejo
de compreender a realidade de um paciente que está diante de sua própria morte.
Partindo da indagação: "como agir de forma ética no cuidado de quem está
vivenciando o processo do morrer?", diversas discussões foram levantadas.
Como eixo norteador para a realização do atendimento domiciliar, utilizamos os
direitos do paciente incurável, descritos por Whitman e Lukes(6), dentre os
quais encontramos o direito de expressar sentimentos e emoções diante da morte,
o direito de receber respostas honestas e o direito de ser cuidado por pessoas
sensíveis, humanas e competentes que procurarão compreender e responder às
necessidades e ajudar a enfrentar a morte. Nosso atendimento foi também baseado
nas fases cinco do morrer de Kübler-Ross(4): negação, quando o paciente nega
sua doença, evitando falar sobre ela ou apresentando expressões como "só pode
haver algum erro", "vou procurar outro médico" e "estou ótimo"; raiva, onde o
paciente torna-se, por vezes agressivo inclusive com pessoas de seu convívio
por saber que vai morrer e considerar essa situação injusta com ele; barganha,
fase na qual o paciente tenta apegar-se a algo na esperança de curar-se e
escapar da morte; depressão, consciente de que a cura não é possível, o
paciente sente-se deprimido e isola-se do mundo; e aceitação, quando o paciente
aceita sua condição e procura resolver pendências para que seu fim seja
tranqüilo.
Conforme estabelecido, nós, estudantes de enfermagem e psicologia, após
realizarmos as fases de preparação, selecionamos um paciente que aceitou de
livre e espontânea vontade a realização de nosso atendimento. Descrevemos as
datas e avaliação do paciente e das acadêmicas que realizaram o acompanhamento
conforme descrição no Quadro_1.
Antes da realização da primeira visita, reunimo-nos e discutimos as
possibilidades de intervenções com o paciente e sua família, dentre elas o
relaxamento, técnicas alternativas para alívio da dor ou mesmo o esclarecimento
de questões relacionadas ao processo vivenciado pelo cliente. Entretanto,
percebemos que a maior necessidade apresentada pelo paciente foi a escuta
atenta. Durante aproximadamente uma hora estabelecemos a técnica de escuta
terapêutica, onde o paciente relatou suas conquistas profissionais e pessoais.
Ao final do encontro, o cliente referiu sentir-se em condições melhores e
manifestou o desejo de continuarmos a realização do atendimento. Observamos
que, relatando suas vitórias, de certa forma, o paciente resgatava um pouco da
vida que estava prestes a perder. Identificamos que nosso cliente vivenciava a
primeira das cinco fases do processo do morrer, descritas por Kübler-Ross(4), a
fase de negação. Como característica desta fase, o paciente evitou falar de sua
doença em todos os momentos da visita.
Na segunda visita, concordando com Carvalho et al(7), percebemos que a ética
pressupõe o paciente como um ser capaz de expressar desejos e de nos indicar
caminhos que, muitas vezes, ultrapassam os limites confortáveis da ciência.
Assim, o diálogo livre, sem a preocupação constante em falar sobre e câncer,
passou a ser a prioridade daquele momento. O paciente expressou mágoas e
insatisfações diante de seu estado de saúde e da grande injustiça que a doença
representava para ele. Nosso cliente experimentava a segunda fase do morrer, a
raiva(4). Direcionamos o diálogo no sentido de que o cliente compreendesse
melhor seu próprio sentimento. Sua esposa, que vivenciava momentos de estresse
em virtude da situação do marido, recebeu também orientações a respeito das
reações características de um paciente no processo do morrer. Identificando o
estresse experimentado pelo paciente e sua esposa (e cuidadora), discutimos no
PLUS diversas atividades que proporcionassem o alívio de tensões e que se
adequassem à situação do paciente e de sua esposa.
Ao realizarmos a terceira visita, descobrimos que nosso paciente tinha uma
grande afinidade pela leitura. Sua esposa, por outro lado, revelou grande
empatia pela musicoterapia. Incentivamos o casal a realizar essas atividades.
Conforme já havia afirmado Boff(1), sentimos que a consciência a respeito do
cuidado adequado surge sempre em momentos críticos, quando temos a oportunidade
de alcançar as raízes da ética, que emerge de algo além da razão, a
afetividade.
Durante a quarta visita, notamos a ausência de sinais de estresse e revolta com
a doença no casal; entretanto, o paciente mostrou-se bastante introspectivo.
Iniciava-se a fase de depressão/aceitação da doença, onde, de acordo com
Kübler-Ross(4), o paciente isola-se do mundo ao adquirir uma consciência mais
profunda a respeito da proximidade do fim de sua vida. O paciente conversou
pouco conosco, referindo "falta de ânimo". Conversamos com sua esposa, a qual
afirmou que as intervenções realizadas na visita passada foram executadas pelo
casal e lhes proporcionaram grandes benefícios.
Na quinta visita, o paciente, em decadência física, hesitou em nos receber. A
esposa nos explicou que ele gostaria de conversar conosco, mas não queria que
víssemos que a doença estava "vencendo", que ele iria morrer. Decidimos
respeitar o desejo do cliente que optou por continuar conversando conosco
apenas ao telefone. Novaes(8) diz que as ações realizadas com um fim já fazem
parte do próprio fim por constituírem um caminho para ele.
O declínio das funções vitais de nosso cliente foi distanciando cada vez mais
sua ligação conosco. Todavia, embora para alguns, a morte do paciente
represente uma falha, após a realização desse acompanhamento sentimos uma
sensação de realização por termos contribuído para um caminho menos solitário
e, apesar de tudo, mais digno para a morte. Um caminho onde a vida foi
evidenciada a todo o momento, onde aprendemos que existem situações em que agir
de forma ética não significa necessariamente seguir regras, modelos ou teorias,
mas desenvolver a sensibilidade para superar dilemas, nos quais, de uma forma
ou de outra, estaremos sempre envolvidos(7).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lidar com a morte do outro nos fez refletir sobre nossa própria morte.
Percebemos o quanto isolamos a idéia da finitude e o quanto estamos
despreparados para enfrentar a perda, mesmo sabendo que a morte é uma das
poucas certezas que temos na vida. Somos frágeis diante da morte, mas como não
podemos evitá-la, devemos, pelo menos, lutar para que nossos pacientes
experimentem o processo do morrer de forma mais digna.
O dilema ético de como cuidar de quem se encontra na iminência da morte exige
muito mais do que conhecimentos acerca da doença ou mesmo das características
de um paciente em fase terminal. O agir ético nesse tipo de situação envolve
uma espécie de consciência que só pode ser desenvolvida quando sentimos a
essência, a individualidade do paciente. Como na ética, para cuidar não existem
regras, apenas orientações que nem sempre podem ser generalizadas.
Através da realização dessa experiência, tivemos a oportunidade não só de
conhecer a realidade de um paciente terminal, mas, sobretudo, de "sentir" a
morte, de realmente entender o quanto é complexo o processo do morrer, tanto
para o paciente, como para sua família. Percebemos a importância do trabalho
interdisciplinar, sobretudo nessa situação, onde a assistência deve compreender
cuidados relacionados tanto a sintomas físicos como psicológicos. Ao
compartilharmos de conhecimentos de enfermagem e de psicologia, podemos
afirmar, também, que abrimos nossos olhos para novos horizontes, pois passamos
a enxergar que, algumas vezes, nosso conhecimento específico não é suficiente
para satisfazer as necessidades de um paciente.
Se a ética reside no bem e na virtude, talvez tenhamos que voltar nossos
olhares para um atendimento holístico e humanizado, acima de tudo; para o
cuidado nem sempre atrelado à recompensa da cura. Nesse sentido, o PLUS
caminha: promovendo a conscientização de profis-sionais e futuros profissionais
de enfermagem, medicina e psicologia acerca da importância do cuidado,
sobretudo quando a morte se aproxima.