Parto hospitalar: experiências de mulheres da periferia de Cuibá-MT
PESQUISA
Parto hospitalar - experiências de mulheres da periferia de Cuibá-MT
Hospital delivery - women´s experience from the suburbs of Cuibá-MT
Parto hospitalar - experiencias de mujeres de subúrbios de Cuibá-MT
Neuma Zamariano Fanaia TeixeiraI; Wilza Rocha PereiraII
IMestre. Docente da Disciplina Sexualidade e Reprodução Humana, da Faculdade de
Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT. Vice-
coordenadora do Grupo de Pesquisa Enfermagem, Saúde e Cidadania
IIDoutora. Docente da Disciplina Sexualidade e Reprodução Humana, da Faculdade
de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT. Membro do
Grupo de Pesquisa Enfermagem, Saúde e Cidadania
1. INTRODUÇÃO
Pela nossa experiência de mais de vinte anos em assistência e ensino na área
obstétrica, observamos em nosso país, nos últimos anos, um crescente
desestímulo ao parto normal, influenciado, sobretudo pela cultura da cesárea,
comumente associada ao parto sem dor. Essa associação é culturalmente difundida
pelos profissionais da saúde que detém o poder de modular e influenciar as
demandas sobre as necessidades de saúde da população(1).
Este fato tornou o Estado de Mato Grosso um dos recordistas nacionais nos
partos cirúrgicos(2)e há dados que apontam que o número de partos normais em
Cuiabá, no ano de 1998, foi de 50,0%, enquanto houve 49,6% de cesáreas(2). Há
uma discrepância entre o número de partos normais nos hospitais públicos e
conveniados quando comparados aos hospitais particulares e, nestes, as
cesarianas são ainda mais freqüentes.
Desse modo, confirma-se que ser pobre e com baixo grau de instrução parece
apresentar-se como um "fator de proteção" para o parto operatório. É neste
estrato específico da população que utiliza os serviços do SUS que ocorre, com
maior freqüência, complicações na gravidez, parto e puerpério, mas é nele
também que, curiosamente, se concentra o menor percentual de cesarianas.
Outro estudo(3) desenvolvido na mesma cidade evidencia que há vários aspectos
que podem ser interpretados como violentos na atenção à mulher em situação de
gestação, parto e puerpério, dentre eles a baixa motivação dos profissionais
que atendem essas mulheres no serviço público de saúde, o acesso dificultado
aos serviços, revelados pela pouca permeabilidade destes e também dos
profissionais à usuária do SUS.
A violência pode ser vista em diferentes nuanças, sendo que alguns de seus
componentes acontecem através das formas de organização dos serviços(3),
enquanto que outros ocorrem principalmente através das formas de organização
das práticas. Observa-se ainda que há outros aspectos que estão mais
identificados como de violência estrutural, ou seja, aquela que está entranhada
nos diversos estratos e espaços da sociedade. A violência estrutural
estabelece, dentre outras coisas, o limite culturalmente aceito de percepção de
diversos fenômenos, como por exemplo, o fenômeno da dor, que em cada grupo
mostra-se relacionado às formas mais gerais de aculturação da própria sociedade
a qual este grupo pertence.
O parto inscreve-se neste universo cultural mais amplo por ser um fenômeno que
atravessa todas as sociedades e tempos/espaços. Este acontecimento está tão
profundamente arraigado no imaginário popular como um evento associado a dor e
a purgação feminina que já aparece no Livro Bíblico do Gênesis, quando Eva, o
primeiro ser humano que conheceu o pecado, corrompeu o resto da humanidade com
sua transgressão, ouviu de Deus: "e tu mulher, parirás com dor os seus filhos".
O homem moderno, no seu constante desafio de superar as limitações impostas
pela fisiologia humana, trabalhou arduamente várias tecnologias para intervir
no corpo e fazê-lo mais dócil à manipulação. Uma das grandes tecnologias
desenvolvidas pela ciência moderna, foi a anestesia, um modo de vencer a dor e
permitir o "conserto" da máquina corporal humana, quando esta necessitasse. Na
área da obstetrícia a anestesia sempre esteve disponível nos partos
operatórios, sendo condição para sua execução, mas nos partos normais não há
essa imposição médica, uma vez que esses últimos podem ocorrer sem o controle
da dor. Também é importante lembrar que nos partos por cesariana, há uma
clientela diferenciada que pode negociar com os médicos o momento e a via da
parturição, o que leva muitas mulheres a escolher aquele que lhe é oferecido
como "mais seguro e sem dor".
No século XIX a vivência do parto e tudo o que nele ocorria era aceito pelas
mulheres como uma fatalidade, algo do qual não se podia fugir. Era uma vivência
privada da mulher que paria com o apoio de outras mulheres, que faziam todos os
esforços para que a parturiente tivesse o maior conforto possível durante o
evento. Havia uma cultura de solidariedade feminina profundamente associada ao
processo de nascer, o que lhe conferia o status de ser esse um evento
doméstico, onde a dor podia ser inevitável, mas o entorno era de apoio e
compreensão.
Nos dias atuais, o medo de sofrer durante este evento, não só assusta as
parturientes, mas provavelmente, vêm lhes impondo uma vivência solitária em um
ambiente desconhecido, no qual são cercadas por pessoas também desconhecidas,
caracterizando uma mudança cultural. Na passagem do parto normal domiciliar
para o hospital, o controle da parturição, foi assumido pelos profissionais de
saúde, que, comumente, não consultam a parturiente sobre suas preferências ou
sentimentos em relação ao que vivem(4).
Pelos fenômenos sócio-históricos relatados, podemos constatar que várias
distorções surgiram e culminaram com o processo de despersonalização da mulher
na parturição, caracterizando elementos que podem ser explicitados no seu
conjunto como uma experiência alienante e mesmo desumana, pois se expropriou da
mulher o processo de parir que foi apropriado pela medicina, sendo hoje o
médico a figura central do fenômeno da parturição(5).
Dessa forma, a parturição no ambiente hospitalar transformou-o em um evento
médico e medicalizado, solitário e despersonalizado. As mulheres acreditam que
precisam ter seus filhos no hospital, pois este é o local culturalmente
trabalhado como o de "maior segurança", logo o lugar certo. Mas neste ambiente,
como pudemos perceber ao longo da pesquisa, as mulheres são frequentemente
destratadas e desrespeitadas nas suas necessidades mais básicas. São muitos os
conteúdos que revela que essa vivencia vem se configurando em uma cultura,
traduzida pela dor e pelo sofrimento, uma quase fatalidade pela qual todas as
parturientes terão que passar. Voltamos assim ao século XIX, com o agravante
que agora não há mais o apoio e o conforto das amigas e vizinhas, como veremos
ao longo do processo de análise dos dados. Assim, foi nosso objetivo analisar,
a partir dos discursos de mulheres residentes na periferia de Cuiabá-MT, vários
dos aspectos culturais subjetivos e objetivos que atravessaram suas vivências
ao passar pela experiência do parto normal em instituições públicas
hospitalares ou conveniadas com o SUS.
2. METODOLOGIA
Esta foi uma pesquisa de cunho qualitativo, que teve por objetivo estudar
alguns aspectos das vivências das mulheres que pariram seus filhos nas
instituições hospitalares de Cuiabá/MT. Compuseram o universo das
entrevistadas, 10 mulheres, residentes no bairro Jardim União, escolhido por
ser o local de moradia da primeira entrevistada, que indicou a segunda e esta a
terceira, assim sucessivamente. Este bairro está localizado na periferia de
Cuiabá, caracterizando-se como um bairro desprovido de infra-estrutura básica,
sem água encanada, rede de esgoto ou coleta de lixo.
As respondentes incluídas na pesquisa foram aquelas que se submeteram ao parto
normal em instituição pública ou conveniada ao SUS, há menos de 6 meses, no
máximo, da data da entrevista, prazo definido dessa forma por entendermos haver
maior capacidade das mulheres em reportar às suas vivências do parto em
hospital. Outro requisito para a inclusão no universo das entrevistadas foi que
tivessem permanecido no espaço do pré-parto por pelo menos 1 hora antes de dar
a luz, por ser esse um dos momentos de maior demanda por assistência competente
e apoio emocional, uma vez que estariam no período final do parto, indo já para
o período expulsivo.
Não pré-estabelecemos idade ou paridade, por acreditar que o relato da vivência
no parto por primíparas e multíparas, enriqueceria a compreensão da diversidade
do evento. Foram relembrados acontecimentos apenas do último parto, no caso de
não primíparas, porém foram ouvidas outras experiências que as respondentes
acharam importantes de serem relatadas.
Por ser a fala reveladora do real sentido da vivência dos seres humanos em
dadas situações, a entrevista foi uma das técnicas escolhidas para a coleta dos
dados, já que o material primordial da investigação qualitativa é a palavra
(6). As entrevistas foram do tipo semi-estruturadas e ocorreram no domicílio
das respondentes, sendo gravadas e transcritas. Colhemos também o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido seguindo a resolução do Conselho Nacional de
Saúde 196/96, sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Firmou-se o compromisso
de que a identidade dos sujeitos seria preservada e iriam ser relatadas de
maneira que não pudessem ser as respondentes identificadas, correspondendo, na
análise, a ordem numérica da entrevista, de 1 a 10.
As 10 entrevistas feitas tiveram duração aproximada de 30 minutos cada uma,
sendo que foram transcritas em seguida a sua coleta, pois queríamos garantir a
sua identificação correta frente à necessidade de voltar a campo para
esclarecer possíveis dúvidas sobre o material coletado. A estratégia da coleta
foi conduzir a entrevista de forma a discutir a experiência de ter se submetido
ao um parto normal hospitalar e os dados foram interpretados sob o olhar
teórico da Teoria das Representações Sociais, trabalhada em concomitância com a
apresentação dos mesmos, na vertente das Ciências Sociais.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A vivência das parturientes durante a institucionalização para o parto,
envolveu aspectos físicos, psíquicos, relacionais, sendo bastante
diversificados entre as mulheres, sujeitos deste estudo. A assistência
evidenciou aspectos diferenciados, dependendo da instituição onde o parto
ocorreu; mas um fator recorrente que permeou o discurso de praticamente todas
as entrevistadas foi o medo da dor, um fato marcante para todas as mulheres
durante o processo institucional da parturição. Sendo assim:
A dor, e seus aspectos voluntários, é influenciada por fatores sociais,
culturais e psicológicos. Esses fatores determinam se a dor privada será
traduzida em comportamento de dor e a forma que tal comportamento assume, e as
condições em que ocorre(7).
A sensibilidade à dor varia entre os indivíduos e está ligada à emoção; pessoas
mais emotivas estão mais expostas à dor, pois a dor é, além de um fator
biológico, também uma construção sócio-cultural. Cada ser humano reage
diferentemente à dor, e, no caso das parturientes, depende da forma como o
grupo ao qual pertence interpreta e entende o ato de parir, da forma como esta
mulher foi ou não preparada para o parto, da sua história de vida, de
experiências anteriores positivas ou negativas em relação a seus partos e de
suas mães e conhecidas, interferindo também a forma como são recebidas e
atendidas durante o processo de parir(8).
Por ser o hospital culturalmente associado ao melhor lugar para ter um filho,
como se percebe nas vivências de mulheres que se submeteram ao parto normal no
hospital, ele também é o pior lugar, onde há sofrimento, abandono, medo,
angústia, principalmente quando a realidade não correspondia às suas
expectativas, revelado por uma entrevistada:
Ah! O parto prá mim foi muito ruim né, tive muita dificuldade prá ter
o nenê, né? Passei muito mal! Ah! É muito difícil, né? Eu tenho medo
do parto.(Ent.7)
Desta forma, parir está fortemente associado no imaginário feminino à dor e ao
sofrimento, ambos entendidos como inevitáveis, ou seja, a dor é inerente ao
processo, e as mulheres de hoje, tais como as dos séculos passados, vão
experimentá-la para se tornarem mães(9).
Além da dor, outro elemento que também sobressaiu na análise dos depoimentos em
torno da vivência do parto institucionalizado, foi traduzido pelo medo da
morte, própria ou do bebê:
Ah, sei lá, porque eles entendem melhor, qualquer coisa que der algum
problema na criança, na gente mesmo, lá a gente fica sabendo, e
melhor no hospital que com parteira, né? (Ent. 3)
Não se percebe mais nas falas das mulheres, a associação do parto com um evento
natural da vida feminina, mas algo que precisa de médicos e de hospital, por
apresentar o risco onipresente da morte, conteúdos comuns nos depoimentos.
Esse medo da morte encontra respaldo no fato que esse é transmitido pela
corporação médica como um evento inseguro, para o qual essa mesma corporação
pode, com seus conhecimentos, tornar mais seguro. Corrobora o medo o fato de
termos índices elevados de mortes maternas no município de Cuiabá, e dados
referentes aos óbitos do ano de 1998, os últimos atualizados, que foram
exaustivamente estudados pelo Comitê de Mortalidade Materna do Município de
Cuiabá (CMMMC) e que apontaram um coeficiente de 109,1/100 mil nascidos vivos
(10), sendo que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde que esse índice
não ultrapasse 15/100 mil nascidos vivos.
Muito provavelmente várias usuárias já se depararam com casos de óbito materno
na mesma comunidade onde moram ou ainda pelos meios de comunicação, que hoje
alcançam facilmente grande parte da população.
Esse medo que paira sobre as mulheres que vão parir, de que algo de ruim
poderia acontecer com a chegada do parto, com o bebê, foi comum para as
mulheres entrevistadas, sendo essa uma lembrança corriqueira entre elas, como
diz a entrevistada:
Foi com medo, medo da minha filha morrer. Sei lá um medo, medo comum
que as mulheres sentem, sei lá; por que na hora tinha tudo prá dar
certo e ela começou a subi, eu fiquei pensando que minha filha tava
passando mal, fiquei preocupada, desesperada. Ah! eu percebi porque
ela ia subindo e o médico fazia gestos, ele olhava prá enfermeira
assim e ele puxava e falava baixinho; eu com dor mas dava prá prestar
atenção no que ele estava falando (...). Ah! ele não falou nada assim
baixinho, insinuou que ia dar mais um tempo e ia ver o que ia
acontecer que o nenê tava subindo (...). Eu achei que ele estava
querendo dizer isto (que o bebê estava subindo), eu percebi, mas ele
não disse, mas eu percebi.(Ent.1)
A possibilidade de algo ruim acontecer durante o parto, muito frequentemente
expressou-se mais na fisionomia do profissional que atendia a parturiente,
dessa forma as mulheres interpretam mais a atitude e aparência fisionômica dos
profissionais para detectar problemas, uma vez que é incomum que os mesmos os
explicitem verbalmente. Então ficam atentas para cada detalhe do que acontece
no centro obstétrico, já que quase sempre não são informadas sobre o que está
ocorrendo com elas e com o bebê que vão parir:
Meu parto foi seco, foi muito doído, né? Ai, na hora assim, eu pensei
que eu não ia agüentar ter, me deu um medo tão forte, vinha aquelas
contração assim, cada vez mais forte, e eu na hora do parto, quase
desmaiei, passei mal, muito mal mesmo e eles ainda quase me amarraram
prá mim poder ter o filho ainda, e eu quase que não dou conta de ter
o filho.(Ent. 8)
A gestualidade e atitudes dos profissionais podem ser interpretadas de forma
equivocada pelas usuárias, do mesmo modo que os profissionais reinterpretam as
palavras e sentimentos das usuárias, elas também o fazem, e essa comunicação
truncada pode incorrer em pouca colaboração consciente por parte da
parturiente, que fica sem saber o que deve e pode fazer para ajudar no parto.
Isto ocorre porque os médicos acreditam deter o saber necessário sobre o
evento, estando assim melhor preparados para entender o que as pacientes
precisam, mas não há sensibilidade para o que elas sentem e temem, pois estes
aspectos entram no campo subjetivo, uma área negada pela tecnologia
medicalizante da atenção ao parto. Mas no quesito biológico, esses
profissionais acham que podem reinterpretar apropriadamente as atitudes das
parturientes e, assim, executar o que é medicamente adequado(11).
Mas, a situação especial que referiam estar vivenciando ao parirem, somada a
expectativa de ter um parto normal e de dar a luz a um bebe hígido, fazia com
que percebessem de forma mais aguda a hostilidade e impaciência dos
profissionais, mesmo quando estas não eram claramente manifestadas(12), como
podermos ver nesse trecho de uma entrevista:
O médico disse que era prá mim só fazer força, já só prá ter o nenê.
Eu não tava conseguindo fazer força, não tava, e aí a hora que eu
tava quase desmaiando, passando mal, eles vieram e aplicaram um soro
ni mim aí eu reanimei e aí fiz força, e nasceu. (...) Falaram que me
amarraram prá mim não poder levantar, né? Eu tava levantando prá
poder ter força prá ter o nenê. (...) Eu achei que não era
necessário, eu não gostei nada. Eu achei um absurdo. Mas eu não
perguntei por que eles tavam me amarrando, não, fiquei quieta. Quem
amarrou foi o médico, e as enfermeiras. Ah! Eles eram muito
estúpidos...(Ent. 8)
Essa entrevistada estava tentando levantar-se para ficar em uma posição mais
verticalizada, o que resultaria em um procedimento em seu favor, pois a
gravidade auxiliaria na descida e expulsão fetal, porém isso não foi
identificado pelos profissionais como um ato de rebeldia por parte da
parturiente, que decidiram contê-la na mesa de parto.
Ao pesquisar as posições mais favoráveis para o parto, temos autores que(13)
nos mostram a preferência dos médicos pelo parto horizontal, sendo dito que
vertical é incômodo para o profissional, sendo realizado só quando há consenso
no serviço ou, muito raramente, quando as usuárias solicitam, pois a tecnologia
hospitalar foi toda adaptada para o parto que favorecesse o parteiro, no caso,
o médico, que a prefere por achá-la mais confortável para si. Assim fica claro
que aquilo que é melhor para a mulher, pode ser secundário em relação ao que é
adequado para o médico, sendo ele o sujeito privilegiado do parto e não aquela
que esta parindo.
Além disso, quando o desenvolvimento tecnológico permite resolver o problema
sem levar a causa em consideração, nem mesmo causas orgânicas, a convicção na
própria superioridade permite desautorizar sem discussão qualquer outro saber
científico ou ainda incorporá-lo subordinadamente. Saber médico e saber
científico confundem-se, justificando a subordinação de outros saberes. O saber
científico é tido como o único capaz de produzir "conhecimento"; a partir disso
o saber cotidiano é pura ignorância(13).
Fica evidente no último depoimento que tanto médicos como profissionais de
enfermagem, mantêm um discurso autoritário e rude com algumas parturientes.
Muitas profissionais são do sexo feminino e com vivência própria no parto
normal, porém isto não as torna mais solidárias no entendimento do sentimento
feminino nesse momento, revela esta entrevistada:
Tem muitas enfermeiras que não sabe conversar, fica xingando. Tem que
falar que dói, porque dói! E eu acho que o médico devia prestar mais
atenção na gente, porque eles manda a gente ficar deitada e esquece a
gente lá (E7).
Esta relação de assimetria constata que as relações de gênero não se verificam
somente entre homens e mulheres; situam-se igualmente entre mulheres, igualadas
na condição feminina, mas desigualadas então, pelo intercruzamento em especial
da raça e classe social. Estas relações desiguais verificam-se também entre as
categorias de enfermagem, estendendo essa relação assimétrica entre a
enfermeira e demais membros da classe e a usuária(14).
Na entrevista a seguir, fica evidente que ambos profissionais não detêm seu
olhar para as necessidades de ordem psíquica, e por vezes nem às físicas, tão
necessárias nesse momento em que se sentem tão inseguras, assim diz a
entrevistada:
As enfermeiras, o médico também, mas mais as enfermeiras não me deram
atenção. Por que eu cheguei lá no hospital, eles mandaram eu deitar e
as enfermeiras estavam dormindo, ficou dormindo! Mas como tava doendo
demais e eu tava fazendo escândalo, ela só veio e falou que não era
prá eu fazê barulho que senão ela não ia me atender, porque eu tava
fazendo barulho(Ent. 3 )
O processo que transforma o corpo feminino em objeto de trabalho da equipe
médica acaba por interferir na enfermagem, que por sua vez colabora no processo
de expropriação do corpo feminino, que passa a pertencer à equipe que a
assiste, quando a mulher transforma-se em paciente. O corpo é o foco do
controle social através do conhecimento e da autoridade médica, que o
disciplina e o classifica como aquele que será dócil e submisso ao saber que
afirma garantir a vida da parturiente e do filho que está por nascer.
A obstetrícia e ginecologia se dedicam ao controle do corpo feminino e ainda
hoje é exercida, na sua maioria, por profissionais do sexo masculino mas também
por mulheres que incorporaram atitudes e saberes da categoria a qual pertencem,
e a medicina é androcêntrica, ou seja seu saber e formas de intervenção poder
ser vistos e entendidos como masculinos. Por ser esse saber hegemônico ele se
capilariza pelos demais saberes do hospital e revela a respondente:
O médico ficou bravo comigo, e a enfermeira ficou falando um monte de
coisa, né, do lado dele apoiando ele. Ela falou assim [...] na hora
de fazê faz na boa, mas na hora de vim aqui, fica aí ó [...]. a gente
pede prá fazê um toque fica aí reclamando que tá com dor aí! E se não
quisesse vim para o hospital não engravidasse. (Ent.2)
A dominação masculina a que estão sujeitas as mulheres em geral e as usuárias
deste estudo em particular, reduziu-as a objetos simbólicos, dos quais se
espera que sejam "femininas", ou seja, atenciosas, submissas, discretas,
contidas ou até mesmo apagadas. E a pretensa "feminilidade" muitas vezes não é
mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas masculinas, reais
ou supostas do que seja o feminino. Os fatos tidos historicamente como
"naturais" e por isso "característicos da alma feminina" como a passividade, a
discrição, a submissão, o olhar tímido e não desafiante, são muitas vezes
incorporados pelas mulheres como características das mulheres em geral, como se
existisse a mulher universal, aquela que representaria todas as outras, dessa
forma, a feminilidade não é um conjunto de atributos "naturais e específicos"
das mulheres, mas sim um conjunto de características simbólicas que foram
socialmente construídas, que beneficiam, principalmente aqueles que as
elaboraram(15).
Dessa mulher "universal" que não existe, mas que evoca expectativas idealizadas
- se espera que não apresente resistência aos saberes instituídos, que não se
queixe, pois quando o fazem, podem ser verbalmente agredidas, como lembra a
entrevistada:
O médico veio fazer toque em mim, e ainda me chamou de ignorante,
porque eu tava sentindo muita dor e ele pediu prá mim abrir a perna e
eu não tava agüentando, aí eu pedi para ele esperar e ele me chamou
de ignorante, estúpida. Eu respondi ele e perguntei se ele tava ali
para atender ou criticar as pessoas que tava ali, as paciente. Ele
ficou quieto e saiu.(Ent. 2).
Na relação médico-paciente, que pode ser entendida como uma relação de
dominação, a parte dominada da relação é sempre a mulher e quando estas querem
exercitar sua autonomia e seu conhecimento acerca do evento ou expressam o seu
descontentamento com a atenção recebida, podem ser silenciosamente caladas, ou,
na melhor das hipóteses, ignoradas nas suas manifestações de desagrado(3).
Alguns profissionais ainda trazem o viés controlista que já foi política de
controle de natalidade no nosso país e ainda acreditam, como já era entendido
no século XIX, que a mulher pobre parece ter uma fecundidade demasiado generosa
e, desde então, ela é criticada aberta ou veladamente por ter mais filhos que
poderia cuidar e alimentar. No século XIX, nas famílias pobres, ter sete ou
mais filhos era comum e essa situação era interpretada como uma "fecundidade
criminosa", quase mesmo um "crime de lesa-humanidade", denunciando a
"imprevidência e o vício" das classes pobres, que colocavam filhos no mundo sem
poder sustentá-los(16). A medicina atual também traz essa representação sobre a
questão do número "adequado" de filhos entre os pobres, reproduzindo de formas
mais técnicas as mesmas idéias do século XIX. Isso se consubstancia através dos
métodos anticoncepcionais radicais utilizados pela medicina, como esterilização
cirúrgica de mulheres jovens, com apenas um filho, apenas por serem pobres(17).
Mas embora tenhamos profissionais que ainda acreditem nisso, muitos outros
lembram que "é importante que os profissionais sejam sensíveis ao impacto
deseducativo e desumanizador que causam nas parturientes, quando trabalham de
forma autoritária"(18),pois muitas mulheres conhecem a importância dos
procedimentos hospitalares para bem avaliar a progressão do parto e manter a
segurança do procedimento, como o toque vaginal, porém não aceitam a forma como
tal procedimento é realizado ou como são atendidas pela equipe de saúde. Isso
se revela neste depoimento:
A hora de ter nenê, eu gritava prá elas, elas ouvia que eu fiquei prá
ganha, a noite eles me deixava sozinha, tinha hora assim eu precisava
levantá prá ir no banheiro eles não me ajudava. (...) Tinha uma
mulher que tava junto comigo no quarto (...) mais na hora que vinha
mesmo a dor eu tinha que levantá e ir lá na sala dela prá chamar
porque elas tavam dormindo (Ent. 7).
Muitas mulheres não sabem como se comportar diante dos sentimentos e emoções
que afloram nesse momento, passam a assumir comportamentos distintos dos
culturalmente esperados pela equipe de saúde, que não aceita com facilidade que
as parturientes podem não ter controle sobre seus atos durante as contrações e
procedimentos a que são submetidas. Ao serem abordadas pelos profissionais de
saúde, que nem sempre orientam e/ou esclarecem sobre os exames que serão
realizados, as mulheres se sentem manipuladas, quase como se fossem uma coisa
sem vontade própria e sem direito de manifestar sua dor, pode sentir a dor, mas
deve ter um comportamento "adequado" e parar de gritar e ficar quieta; é o que
se espera da "boa" parturiente. As mulheres esperam que durante intervenções
técnicas, haja interação do profissional com elas, mas no parto hospitalar isso
não ocorre com freqüência, pois "esta necessidade pode não ser sentida pelos
profissionais que, ao se centralizarem nos fazeres técnicos, não os integram
aos fazeres interpessoais"(18).
Por ser este o pensamento dominante e muito difundido, a comunidade de baixo
poder aquisitivo, por não deter os meios de produção, passa a aceitar e a
incorporar a verdade da classe dominante. Muitas acreditam que procedimentos
técnicos utilizados nos hospitais são necessários e importantes, mesmo estando
estes desaconselhados na atualidade. Lembramos aqui da Manobra de Kristeller,
que consiste na compressão abdominal do fundo uterino, pelas mãos do obstetra
ou outro profissional de saúde para auxiliar na expulsão fetal, já condenada
(19), porém ainda usada, com lembra a entrevistada:
Ah! Tem que ajudar. Tem que ajuda a criança a nascer. Ah! (...) Tem
que ajudar fazer força, né? Tem que segurar, porque eu fui segurada,
né, as enfermeira ajudaram eu muito fazer força pro nenê nascer,
porque tava demorando muito pra nascer. Elas subiram aqui (mostrou o
abdôme), apertaram minha barriga assim, e o nenê nasceu. Ah! Eu achei
bom, porque não queria nascer, com a força delas e a minha força o
nenê nasceu(Ent. 7).
Ao ouvir esses relatos e sabendo das graves conseqüências que esta manobra
provoca - como trauma das vísceras abdominais, do útero, descolamento da
placenta e traumas fetais(19) - restando-nos a pergunta, porque ainda é
utilizada?
A resposta provável é de que o atendimento hospitalar, tal como foi mencionado
por várias das depoentes, traduz-se em dor, descaso, abandono, que refletem a
violência física, psicológica ou emocional a que quase todas revelaram terem
sido submetidas dentro dos serviços de atenção ao parto pelo SUS na cidade de
Cuiabá/MT. Relatos esses que nos lembram haver ainda muito por fazer para
implementar o Programa de Humanização do Nascimento do Ministério da Saúde e
que há muitos investimentos ainda a serem feitos para melhorar a qualidade da
assistência ao parto e ao nascimento normais nos locais estudados.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da conclusão da pesquisa temos a considerar que inúmeros problemas
foram identificados na experiência do parto normal relatados pelas mulheres
entrevistadas, sendo assim, há que se melhorar a qualidade da assistência
ofertada pelos profissionais nos hospitais públicos e também nos conveniados
pelo SUS, para que mantenham um relacionamento mais humano, integral e que
considerem a singularidade das usuárias desses serviços, enxergando-as para
além de seu ventre.
As formas como as práticas são conduzidas dentro dos serviços de saúde, revelam
profissionais que desenvolvem as atividades que lhe competem de forma técnica,
aumentando a morbidade e a mortalidade maternas e colocando em risco a vida das
mulheres parturientes e dos filhos que vão parir, mesmo que essas pensem estar
tendo uma assistência "mais segura" dentro do hospital.
Nas experiências com a institucionalização para o parto, ficaram evidentes que
as relações sociais dentro desse ambiente foram assimétricas, pautadas por
comunicação não verbal, uso de terminologias técnicas, ininteligíveis para a
clientela, reforçando assim o sistema de dominação e de sujeição dessas
mulheres nos serviços de saúde no que é talvez o mais delicado e importante
momento de suas vidas o de dar a luz a uma nova vida!