Enfermagem moderna: a ordem do cuidado
HISTÓRIA DA ENFERMAGEM
Enfermagem moderna: a ordem do cuidado
Modern nursing: the order of care
Enfermería Moderna: el orden del cuidado
Maria Henriqueta Luce Kruse
Professora Adjunta da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Doutora em Educação
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Para seguir o desejo de Ethel Parsons, enfermeira norte-americana que chefiou a
missão que implantou a enfermagem moderna no Brasil me ocupo de recontar uma
história(1). Esta história inicia com algo conhecido como "os primórdios da
enfermagem" e segue com uma leitura das condições de possibilidade do
surgimento do regime de práticas da enfermagem, onde analiso programas de
condutas que têm efeitos de prescrições sobre o que deve ser feito e efeitos de
verdade sobre o que se deve saber.
Ao contar aqui partes dos relatos dos "primórdios" da enfermagem, já bem
conhecidos no âmbito da enfermagem e fora dela, não pesquiso uma origem ou a
essência exata da enfermagem ou sua identidade primeira, pois, como Foucault,
acredito que "atrás das coisas há 'algo inteiramente diferente': não seu
segredo essencial e sem data, mas o segredo (de) que elas são sem essência, ou
que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram
estranhas"(2). Assim, construo estes escritos/ensaio apoiada por textos de
Foucault e identificada com os Estudos Culturais, particularmente suas
vertentes de inspiração pós-estruturalista, que se desenvolvem a partir da
perspectiva pós-moderna que propõe uma analítica externa aos conceitos da
racionalidade moderna, colocando sob suspeita as "verdades" da modernidade. A
razão moderna se opõe ao senso comum, pois se considera um saber mais rigoroso
e mais próximo da verdade. Quando esta visão de mundo começou a ser
questionada, a partir da metade do século XIX, delineou-se o que ficou
conhecido como a crise dos paradigmas, que configura uma transição entre
pensamentos que se esgotam, os modernos, e outros que vão surgindo os pós-
modernos(3).
Originalmente, os Estudos Culturais foram uma invenção britânica. Hoje se
transformaram num fenômeno internacional. Isso não quer dizer que esse
movimento represente o transporte de um corpo de conhecimentos com o qual seja
possível operar, da mesma maneira, em todos os lugares. Ao contrário, compõem
um conjunto de formações instáveis e descentradas que não pretendem ser uma
disciplina acadêmica no sentido tradicional, com contornos nitidamente
delineados, mas têm se caracterizado por um conjunto de abordagens,
problematizações e reflexões situadas na confluência de vários campos, buscando
inspiração em diferentes teorias, rompendo certas lógicas cristalizadas e
concepções consagradas. Deste modo, os estudiosos dos Estudos Culturais
pretendem que a cultura seja pautada democraticamente para que as pessoas
comuns, o povo, possa ter seus saberes valorizados e seus interesses
contemplados(4).
Para Stuart Hall considerado um dos pais dos Estudos Culturais - esses estudos
são uma formação discursiva, no sentido foucaultiano do termo(5). Foucault
reconhecia discursos "como práticas que formam sistematicamente os objetos de
que falam"(6).Não como documentos de uma verdade, mas como monumentos de sua
construção.
Faço estas referências para localizar discursos e conexões estratégicas que
permitam traçar um panorama que ajude a compreender em que condições, e em que
momento histórico, surge o que hoje se chama "enfermagem moderna". Essa
expressão se conforma muito bem ao que quero expressar, pois entendo que aí, na
Modernidade, começa a se produzir, peça por peça, uma determinada prática de
cuidado dos corpos, que se profissionaliza, e vem a compor um dispositivo para
o controle da população. Assim, neste texto pretendo colocar em foco a
enfermagem moderna, que nasce como uma prática coadjuvante da prática médica e
que, como tal, se constrói dentro da instituição hospitalar e a partir do saber
médico constituído na modernidade. Abordo a influência anglo-americana, que
marcou o início da enfermagem no Brasil, e destaco a preocupação das
enfermeiras (utilizo o termo enfermeira no gênero feminino devido ao amplo
predomínio das mulheres na profissão) na construção de um saber, tido como
saber próprio, que, de acordo com os discursos que hoje circulam, asseguraria
uma independência profissional.
Nesta perspectiva, e à sombra de Foucault, pretendo contar "como as enfermeiras
se transformam naquilo que são",evitando toda a "finalidade monótona", sabendo
que as palavras não guardam sentido, nem os desejos sua direção e muito menos
as idéias a sua lógica, pois "este mundo das coisas ditas e queridas conheceu
invasões, lutas, rapinas, disfarces e astúcias"(2). Para contar a história da
enfermagem moderna me apoio nas seguintes autoras: Paixão(7), Germano(8),
Almeida(9), Silva(10), Nash(11), Sauthier(12), Baptista e Barreira(13), Lunardi
(14), Dossey(15). Além disso, procuro espreitar os acontecimentos como se já
não tivessem uma história, para reencontrar diferentes cenas onde eles
desempenharam papéis distintos, sem a preocupação de encontrar uma origem.
Retraçar o seu itinerário permitirá conhecer as condições de possibilidade de
seu aparecimento. Não tenho a pretensão de relatar os fatos "como eles
realmente aconteceram", o que hoje já se mostrou impossível e infrutífero, uma
vez que sabemos que nossas mentes não refletem diretamente a realidade, pois a
realidade que conhecemos é, sempre, realidade sob descrição. Portanto, não
existe, para nós, nenhuma realidade que seja independente dos discursos que a
constituem.
Conta a lenda que o período do início do século XX, tanto no Brasil como no
restante da América Latina, caracterizou-se por um processo incipiente de
modernização e de urbanização das cidades, entre outras coisas, devido ao
aumento do comércio internacional e ao incremento das correntes migratórias.
Estes fatores teriam levado a uma crescente complexidade da estrutura sócio-
econômica do país. O constante aumento populacional, principalmente nas
capitais dos estados mais importantes, teria forçado o governo a preocupar-se
com a elaboração de uma política sanitarista, devido ao incremento das doenças
transmissíveis como a cólera, a peste bubônica, a febre amarela, a varíola, a
tuberculose, a lepra e a febre tifóide que poderiam prejudicar os interesses
ligados à economia exportadora do café.
Nestas condições, foi necessário que se implantasse no Brasil um modelo
sanitarista centralizado, que transformasse a saúde em uma questão nacional.
Este modelo teve forte influência da estrutura norte-americana de atenção à
saúde, através da Fundação Rockfeller. Esta fundação, que se autodenominava
"benemérita", era uma instituição de caráter científico, religioso e
filantrópico com uma organização de cunho paramilitar, uma ética religiosa e de
trabalho e com forte apelo à amizade entre Brasil e Estados Unidos. Seus
fundamentos eram a superioridade da civilização americana e a propagação de seu
modelo sanitário, o que incluía a criação de hospitais, tendo como modelo os
hospitais americanos, ampliando, desta forma, sobremaneira, a área de
influência dos Estados Unidos no Brasil e na América Latina.
A Fundação Rockfeller teve papel decisivo na implantação da enfermagem moderna
no Brasil, o que se concretizaria através da Missão de Cooperação Técnica para
o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil, também conhecida como "missão
Parsons", chefiada pela enfermeira norte-americana Ethel Parsons, composta por
enfermeiras que eram símbolos da mulher americana. O marco histórico desta
missão foi a criação de um Serviço de Enfermeiras no Departamento Nacional de
Saúde Pública (DNSP), com a conseqüente criação de uma Escola de Enfermeiras (a
escola denominou-se inicialmente Escola de Enfermeiras do DNSP. Em 1926, passou
a chamar-se Escola Anna Nery e posteriormente Escola de Enfermagem Anna Nery da
Universidade Federal do Rio de Janeiro)junto ao mesmo, a Escola de Enfermagem
Anna Nery. Esta escola iniciou o seu funcionamento em 1923, e foi organizada,
segundo histórico de Edith Fraenkel publicado na REBEn, como "uma escola
padrão, nos moldes das mais modernas existentes nos Estados Unidos"(16). O
curso de Enfermagem da Escola Anna Nery, a primeira escola de Enfermagem
brasileira, adotou o sistema inglês proposto por Florence Nightingale, também
conhecido como enfermagem científica ou moderna, constituindo o que ficou
conhecido como modelo anglo-americano de enfermagem. O curso funcionou
inicialmente em vários prédios cedidos e adaptados para tal fim, sendo que, em
setembro de 1927, instala-se no Pavilhão de Aulas doado pela Fundação
Rockfeller. A duração do curso era de vinte e oito meses, sendo o currículo
organizado em cinco séries: as quatro primeiras relativas à parte geral do
curso e a quinta às especializações Enfermagem Clínica, Enfermagem de Saúde
Pública e Administração. Ao longo dos primeiros anos de funcionamento o curso
foi progressivamente ampliado para que pudesse incluir experiências nos
diversos serviços que eram organizados nos hospitais do Rio de Janeiro. Em 1930
tinha a duração de três anos e oferecia, além das aulas teóricas, práticas em
enfermarias e ambulatórios.
Em oposição ao passado, quando a enfermagem era exercida por pessoas de "má
reputação", estas líderes preocupavam-se em transmitir às suas alunas o ideal
da "boa enfermeira". Desta prática originou-se um comportamento que
caracteriza, ainda hoje, a enfermagem brasileira o culto a essas
personalidades, nas quais é necessário espelhar-se para assegurar que a
profissão tenha prestígio social e científico. As enfermeiras americanas,
denominadas pioneiras, tinham um projeto bem definido do que era e do que
deveria ser a profissão. Assim, cercaram-se de muitos cuidados ao trazerem a
chamada enfermagem profissional para o Brasil, e tinham a preocupação, dentre
outras coisas, de introduzir a nova profissão na Universidade. Isto se
verificou em 1937, por ocasião do Estado Novo, quando a Universidade do Rio de
Janeiro foi reestruturada, passando a chamar-se Universidade do Brasil, hoje
Universidade Federal do Rio de Janeiro(13). Para ilustrar a importância que foi
dada ao fato, reproduzo um trecho de Glete de Alcântara:
No processo de desenvolvimento da educação de enfermagem no Brasil alguns
marcos se destacam: o primeiro é representado pelo seu início, contendo a
semente do ensino superior que veio germinar quase 40 anos após seu lançamento;
o segundo é o momento que agora vivemos, com as escolas de enfermagem
transformadas em estabelecimentos de ensino superior, tendo sido outorgados à
enfermagem direitos idênticos aos das demais carreiras universitárias. O
terceiro marco caberá à posteridade assinalar(17).
Devido ao poder político e econômico que detinha à época, a Fundação Rockfeller
foi alvo de críticas contundentes, tanto no seu país de origem, os Estados
Unidos, como no Brasil e no exterior. A oposição ao trabalho desta fundação
manifestava-se das mais variadas formas, uma vez que as famílias queixavam-se
de que as moças deveriam se manter em casa, os intelectuais nacionalistas
achavam uma impertinência a sua intromissão, e os políticos de oposição
questionavam o modelo de saúde pública que estava sendo implementado. Sua ação
traduzia, na prática, a visão da superioridade anglo-saxônica, pois adotava o
modelo americano como paradigma da civilização, que tinha o princípio da
eugenia, muito em uso na época, como um de seus pilares. Este refletia um
racismo disfarçado, que era evidente nos próprios documentos da época que não
cessavam de negar este fato.
Apesar do "ideal de servir a todos, indistintamente," que permeava o trabalho
das "pioneiras" norte-americanas, imbuídas de uma "missão", o que encerra uma
idéia religiosa, observo uma incoerência entre este discurso e os critérios
utilizados para ingresso no curso de enfermeiras. Nestes, só eram admitidas
"moças de boa família", sob o argumento de que, por ser uma profissão que
iniciava, o prestígio social era muito importante. Segundo a preocupação de
Parsons: "Interessar-se-iam sufficientemente as senhoras brasileiras, das
melhores camadas sociaes, pela nova profissão, para consentirem em deixar as
suas casas e seguirem o interessante, comquanto diffícil, preparo exigido? A
exaltação e a satisfacção espiritual que cabem a uma enfermeira pela sua parte
no allivio do soffrimento e na salvação de vidas, ainda lhes eram
desconhecidas. Não havia (como) negar que o preparo teria de ser penoso e
exigente, pois que tratando-se de vida e de morte, o cumprimento rigoroso de
uma disciplina, militar em sua conscienciosa exactidão, é necessário(1)".
Em relação ao papel da missão Rockfeller no Brasil, penso que ele poderia
corresponder àquilo que Elias chamou de processo civilizador. Este autor, ao
desenvolver sua teoria, estudou os efeitos das estruturas sociais sobre os
costumes e a moral dos indivíduos, ou seja, a gênese e evolução dos
comportamentos considerados típicos de ocidentais civilizados(18). Desta forma,
as enfermeiras norte-americanas, que conheciam o Brasil através de relatórios,
comportavam-se como agentes civilizadoras que aqui vinham para transmitir um
saber e introduzir este povo "mais atrasado" nos progressos da civilização, e
esperavam que as futuras enfermeiras brasileiras incorporassem seus
ensinamentos, sem questionamentos desnecessários. Elas reconheciam-se como as
herdeiras deste modelo de enfermagem científica que vinha do "Velho Mundo" e
como tal, um padrão a ser imitado, imbuindo-se da missão de disseminar este
padrão na sociedade brasileira. Tal estado de coisas está evidenciado na
citação abaixo: "As enfermeiras norte americanas da Missão Rockfeller, atuando
no Departamento Nacional de Saúde Pública, de 1921 a 1931, desempenharam um
papel de agentes civilizadores, primeiramente junto aos sanitaristas
brasileiros, mas principalmente, na orientação cotidiana de suas jovens alunas,
das quais não só modelaram o comportamento, mas também imbuíram de uma mística,
correspondente à criação de uma nova profissão feminina que, por mais, de meio
século, mediante o processo continuado do movimento colonizador, seguiu
adotando as técnicas, os modelos assistenciais e os paradigmas teóricos da
enfermagem de seu país(12)".
No mesmo sentido, Bertha Pullen, uma das enfermeiras americanas que foi
diretora da Escola Anna Nery de 1928 até 1931, publica nos Annaes de
Enfermagem, em 1936, um artigo, apresentado na Conferência Pan Americana da
Cruz Vermelha sobre a Organização de uma escola de enfermeiras, enfatizando a
enorme responsabilidade que pesa sobre aqueles que vão cuidar da saúde,
destacando que, para tanto, exige-se "um controle enérgico da personalidade e
uma reserva illimitada de predicados mentaes"(19). A autora também afirma "a
candidata acceita numa Escola de Enfermeiras deverá trazer uma base social,
cultural, boa intelligencia, saúde robusta, senso ethico visível e comprehensão
da responsabilidade para com a communidade e habilidade de assumir
responsabilidades seriamente"(19). Portanto, considerando-se possuidoras de
tais exigências e atributos, não era de estranhar que as enfermeiras americanas
se auto-intitulassem "enfermeiras de alto padrão", nome que, em sua opinião,
destacaria a sua formação identificando-as com a enfermagem científica.
Para que possamos entender o que vinha a ser o modelo anglo-americano de
enfermagem, precisamos voltar um pouco no tempo para conhecer Florence
Nightingale. Proveniente de uma abonada e aristocrática família inglesa, esta
mulher nasceu em Florença, em 1820, e possuía uma formação e conhecimentos que
não eram comuns nem mesmo aos homens da época vitoriana em que vivia.
Interessava-se por política, pelas pessoas, mas principalmente por instituições
de caridade.
Sua tendência para tratar enfermos manifestou-se desde a infância: crianças e
animais doentes recebiam seus solícitos e habilidosos cuidados. Aos 24 anos,
quis praticar em hospital. A mãe não lho permitiu. De fato, as condições dos
hospitais ingleses nessa época justificavam os temores maternos. O pessoal a
serviço dos doentes era dividido em dois grupos: o primeiro, diminuto,
compunha-se de religiosas católicas e anglicanas, que começavam apenas a se
organizar; o segundo, numeroso, era formado de pessoas sem educação e sem
moral. A maioria se embriagava(7).
Florence Nightingale era "dotada de decidida vocação e marcada personalidade" o
que fez com que perseverasse em seus propósitos, uma vez que não via no
matrimônio uma alternativa para sua realização pessoal(7). Assim, aos 31 anos
de idade, estagiou em Kaiserwerth, uma pequena instituição hospitalar voltada
para o atendimento de doentes e para a formação de enfermeiras diaconisas. A
mesma era reconhecida pela moralidade e pelos elevados ideais de seus
fundadores, embora não apresentasse inovações na parte técnica e científica.
Neste local, permanece durante um ano, sendo a experiência marcante para o
trabalho que desenvolveria. A seguir, Florence Nightingale viaja pela Europa
visitando hospitais e casas de cuidados de doentes. Publica estudos
comparativos entre instituições da França, Itália, Áustria e Alemanha. Desde
esta época, tem o desejo de fundar uma escola de Enfermagem em "novas bases".
Em 1854, é deflagrada a guerra da Criméia. O Departamento Médico do Exército
Inglês estava despreparado para organizar os serviços de transporte e
abastecimento das tropas, o que ocasionou um colapso no atendimento aos
soldados feridos na guerra. Em meio à indignação da opinião pública, Florence
Nightingale se oferece para o Ministro da Guerra, seu amigo, e vai com mais
trinta e oito voluntárias para as frentes de combate em Scutari, onde encontra
um hospital com mais de quatro mil feridos. Ali, começa a colocar em prática
aquilo que considerava uma "boa enfermagem", preocupando-se com a alimentação
adequada dos doentes, a limpeza e ventilação do ambiente, a troca de roupas de
cama, a separação entre doentes e feridos, a higiene dos pacientes, sua
privacidade e lazer, enfim, com a implantação da ordem no hospital em seus
mínimos detalhes. Preocupava-se com economia e custos, com a divisão do
trabalho, e supervisionava regularmente o hospital. Destacando-se por sua
capacidade administrativa e organizacional, foi indicada para assumir a
Superintendência de Enfermagem do Exército.
Ao introduzir as novas práticas, Florence Nightingale registrou uma queda
importante na mortalidade dos soldados feridos em combate, o que foi possível
de ser observado a partir de sua preocupação em organizar e manter registros
estatísticos para documentar o que ocorresse com a vida dos soldados. Com esse
procedimento, seu trabalho adquiriu grande visibilidade. Sua intervenção foi um
dos fatores que contribuiu para tornar o hospital uma "máquina de curar" que,
segundo Foucault, seria uma disposição do espaço interno do hospital para
torná-lo medicamente eficaz, não um lugar de assistência, mas de operação
terapêutica(20). Essa operação se exercia a partir da eliminação dos fatores
negativos, tais como os problemas com a renovação e circulação do ar e o
transporte das roupas, visando organizá-lo de modo positivo, garantindo a
presença ininterrupta dos médicos e a observação e registro das anotações sobre
cada caso, seguindo sua evolução. A partir dessa operação, será possível a
generalização dos achados para toda a população, possibilitando a substituição
de regimes terapêuticos, comuns na época, que eram pouco diferenciados e com
resultados modestos, por curas médicas e farmacêuticas mais adequadas e
específicas. Dessa maneira, o hospital começa a se tornar um elemento essencial
para a tecnologia médica, um lugar onde a função terapêutica é bastante
apurada, onde é permitido curar.
Tanto na guerra da Criméia, quanto na II Guerra Mundial, podemos observar as
diferentes formas pela qual se manifesta a relação entre a ciência e a guerra.
Se, por um lado, a ciência se ocupa em produzir armas cada vez mais potentes e
destruidoras, por outro lado, mostra-se mais eficaz para tratar os efeitos
dessas armas nos corpos humanos, tanto dos soldados, quanto dos civis que
permanecem nas cidades. Com este comentário, estou querendo ressaltar uma das
condições de possibilidade para o surgimento e sustentação do trabalho de
Florence Nightingale: a necessidade de organizar um sistema que possibilitasse
o tratamento de grande número de feridos, com traumas físicos graves, nos
hospitais dos campos de batalha. Embora já seja bem conhecida a maneira urgente
e emocional com que são aplicados os conhecimentos científicos durante a
guerra, e o posterior aperfeiçoamento que eles sofrem, destaco este tema para
comentar que mesmo com todos os avanços e benefícios posteriores que podem
motivar, os investimentos em tecnologia militar são muito pequenos em relação
aos danos que podem causar(21).
Ao retornar, Florence Nightingale foi recebida como heroína e condecorada por
sua atuação na guerra sendo premiada com quarenta mil libras pelo Governo e
pelo povo inglês, pois sabiam de seu desejo de fundar uma escola para
enfermeiras, o que teria acontecido em 9 de julho de 1860, junto ao Hospital
St. Thomas, em Londres. Um dos fatores que mais contribuiu para a vitória do
sistema proposto por Florence Nightingale foi a rigorosa seleção das
candidatas, já que ela só permitia o "ingresso de jovens educadas e de elevada
posição social"(7:49). Resgato essa informação para mostrar que as enfermeiras
americanas, ao implantarem a enfermagem dita profissional no Brasil, nada mais
fizeram do que transpor para cá os princípios organizadores de Florence
Nightingale e da enfermagem inglesa. Para garantir que as jovens se mantivessem
educadas e que, portanto, fossem preservadas estas condições, as escolas foram
dotadas de internatos que garantiam a "elevação moral necessária ao exercício
profissional", além de, eu acrescentaria, constituírem mais um poderoso espaço
de disciplinamento, através de regras e controles que eram exercidos pelos
responsáveis pela escola. As escolas de Enfermagem no Brasil mantiveram
internatos em suas sedes até a década de sessenta, os mesmos cumpriram um papel
regulador da conduta das enfermeiras e hoje são objeto de inúmeros estudos,
pois são vistos como um dos "pilares do projeto de construção da profissão" em
nosso país. Podemos pensar, fazendo uma analogia com o que foi afirmado em
relação à educação das crianças, que nestes lugares estariam sendo fabricadas
as "almas das enfermeiras"(22).
Florence Nightingale destacou-se, sobretudo, pela habilidade em dissecar
problemas e desenvolver uma extensa documentação sobre os mesmos, o que marcou
o início de sua influência nas reformas da administração médica militar. Com
sua experiência, ela elaborou, após a guerra, um grande plano de reformas que
foi estudado e implementado por uma Comissão Real de Saúde do Exército. Esse
sistema, que se revelara eficiente para a preservação e recuperação do corpo do
soldado, agora se torna também necessário para cuidar dos corpos dos
trabalhadores, uma vez que, com o avanço do capitalismo na Inglaterra, os
mesmos compunham a força de trabalho. Desta forma, os métodos de Florence
Nightingale chegam aos hospitais de Londres e Paris, onde são implementados
para garantir a melhoria das condições de saúde da população. Nesta
oportunidade ocorre o encontro das "práticas médica e de enfermagem no mesmo
espaço geográfico o do hospital e no mesmo espaço social o do doente"(9).
Os métodos de Florence Nightingale estão descritos em seus livros, sendo o mais
conhecido deles Notes on Nursing, publicado em 1859. Ela destaca a importância
da água, do ar, da alimentação e do regime geral para se alcançar a cura,
atendendo ao modelo da época que entendia a doença como um fenômeno da
natureza. Destaco nesse livro, no capítulo que trata do arejamento e
aquecimento, uma passagem em que Florence Nightingale manifesta seu
entendimento sobre a importância da ventilação: A primeira regra de enfermagem,
o primeiro e último princípio sobre o qual a atenção da enfermeira deve fixar-
se, essencial para o doente, sem o que todo o restante que possa fazer por ele
não terá nenhum valor e com o qual, em minha opinião, tudo o mais pode
perfeitamente ser esquecido, é este: conservar o ar que ele respira tão puro
quanto o ar exterior, sem deixá-lo sentir frio(23).
O texto de Florence Nightingale apresenta um tom dogmático com uma forte
conotação moral e de obediência, manifestando uma religiosidade que continuou
marcando a enfermagem. O conceito central e mais refletido em seus escritos era
a condição do ambiente. A medicina urbana que se organizou no século XVIII, não
era propriamente uma medicina de corpos e organismos, mas das coisas como a
água, o ar, as decomposições, os fermentos. Percebe-se que os perigos
atribuídos ao ar não eram poucos, já que seu poder de circulação colocava em
ameaça tudo o que representava o bem-estar(2). Assim, tanto o ar como a água,
por sua característica mobilidade, tinham a propriedade de comparecer em
território impróprio, desafiando a solidez das separações que a nova
mentalidade pretendia estabelecer(24).
Desta forma, a preocupação com o ambiente do hospital, para que fosse possível
diminuir os seus efeitos negativos, suplantou até a sua finalidade religiosa,
que antes era essencial no cuidado prestado nos hospitais. Estes aspectos
também foram destacados por Lunardi, ao estudar os saberes e as práticas morais
da história da enfermagem. Esta autora identifica a contribuição de Florence
Nightingale como a "ruptura nightingaleana" e relaciona alguns elementos que,
embora relativos a um determinado contexto histórico, não se restringem ao
mesmo, mas podem estar permeando e dando sustentação, talvez com outros
formatos, a práticas atuais(14). Desta maneira, ela destaca nos textos de
Florence Nightingale as referências à honestidade, à sobriedade, à
religiosidade e à devoção, à fidelidade e à delicadeza, à habilidade para a
observação minuciosa, como atributos de uma "enfermeira confiável", presentes
em textos como este: "A enfermagem é uma arte e, para realizá-la como arte,
requer uma devoção tão exclusiva, um preparo tão rigoroso como a obra de
qualquer pintor ou escultor; pois o que é tratar da tela morta ou do frio
mármore comparado ao tratar do corpo vivo o templo do espírito de Deus. É uma
das artes; e eu quase diria, a mais bela das Belas Artes(25)".
A "ruptura nightingaleana" se daria em relação aos registros do chamado período
cristão, quando a atenção dedicada aos doentes era reconhecida como missão para
o alcance da vida eterna, e os cuidados eram prestados ao corpo por ser o
suporte do espírito, uma vez que o corpo era objeto de indiferença e até de
desprezo. Nesta época, a prática da enfermagem não era vista como um trabalho
que deveria ser remunerado, mas como algo que não tinha preço e cuja recompensa
não seria dada neste mundo. Portanto, para que a ordem fosse introduzida no
ambiente do hospital, foi necessário que o pessoal de enfermagem fosse
disciplinado e alvo do treinamento formal proposto por Florence Nightingale
(14).
Florence Nightingale é uma daquelas pessoas que corresponde ao perfil descrito
por Foucault, ao responder a uma pergunta sobre quem coordena a ação dos
agentes da política do corpo, o autor se refere a um conjunto extremamente
complexo e sutil em sua composição, distribuição e, enfim, em todos os seus
mecanismos e controles recíprocos que não foram pensados em conjunto. Ele
refere como um mosaico muito complicado, onde aparecem agentes de ligação:
"tomemos o exemplo da filantropia no início do século XIX: pessoas que vêm se
ocupar da vida dos outros, de sua saúde, da alimentação, da moradia. Mais
tarde, desta função confusa saíram personagens, instituições, saberes... uma
higiene pública, inspetores, assistentes sociais, psicólogos. E hoje assistimos
a uma proliferação de categorias de trabalhadores sociais... (2).
Seria enganoso atribuir somente às idéias de Florence Nightingale todo o
movimento de criação e desenvolvimento da enfermagem moderna. Como já disse, a
emergência do trabalho de Florence Nightingale ocorre em plena Modernidade,
época da decadência da hegemonia metafísica e da emergência do positivismo como
concepção científica, o que acarretou um grande avanço no conhecimento da área
da saúde. É desta época, a segunda metade do século XIX, a invenção de diversos
aparelhos que auxiliam no diagnóstico e tratamento de doenças (oftalmoscópio e
laringoscópio dentre outros), bem como a utilização do microscópio que
possibilitou os estudos de Pasteur sobre a proliferação dos germes, produzindo
o desenvolvimento de ciências como a Microbiologia e a Imunologia. Este
paradigma, o positivismo, ao considerar válidos apenas aqueles conhecimentos
passíveis de verificação empírica, produziu uma fragmentação no conhecimento
sobre o corpo, que passa a ser organizado a partir de órgãos doentes. Assim, os
médicos passam a ser considerados os detentores do saber científico, ao mesmo
tempo em que aqueles que desenvolviam outras práticas relacionadas à saúde são
considerados bruxos e charlatães(10). Possivelmente, a visibilidade alcançada
por seu trabalho também se deveu à posição social que ocupava e ao fato de ter
organizado um sistema de formação que, ressalvadas algumas mudanças, perdura
até os dias de hoje.
As propostas de Florence Nightingale valorizaram o trabalho de enfermagem,
traduzindo-o como uma arte, o que disciplinou e regulou o modo de vida de seus
agentes. O sistema proposto previa o treinamento do pessoal de enfermagem que
trabalhava nos hospitais, bem como o estabelecimento das tarefas da enfermagem,
sempre sob a direção do médico. Desse modo, a enfermagem surge como um trabalho
subordinado ao do médico, uma vez que a inspeção dos corpos dos pacientes, que
antes era descontínua e rápida, se transforma em meados do século XVIII quando,
ao iniciar sua atuação no ambiente hospitalar, o médico coloca o doente em
situação de exame permanente. Era então necessário que um outro elemento, no
caso a enfermeira, executasse o papel determinado, mas subordinado ao do
médico, na técnica de exame, pois o médico não podia permanecer todo o tempo no
hospital(27). Posteriormente, quando Florence Nightingale organiza a enfermagem
como profissão, ela permanece subordinada ao trabalho do médico. E nem poderia
ser diferente, consideradas as condições dos hospitais naquela época, onde a
figura do médico já estava introjetada na instituição, aí ocupando um espaço
privilegiado. Penso, também, que o fato de estar vinculada ao trabalho médico
permitiu que a enfermeira usufruisse seu prestígio, já que, naquela época,
havia no hospital muitos cuidadores que não tinham um reconhecimento
profissional. Florence Nightingale, preocupada em organizar uma profissão,
vinculou-a a um saber que tinha status, um saber próximo da ciência. O
desenvolvimento profissional posterior da enfermagem, representado
principalmente pelo ingresso na Universidade e pela preocupação em construir um
saber próprio, fazem circular um outro discurso sobre a profissão, a saber, a
enfermagem como profissão autônoma e participante, em igualdade de condições,
com os demais profissionais da saúde. Naquela época pouca coisa foi introduzida
no saber da enfermagem, já que, no hospital não havia muito espaço para
desenvolver qualquer saber, pois o cuidado de enfermagem não era a maior
preocupação e sim a disciplina daqueles que prestavam os cuidados. A disciplina
tinha a função de legitimar o poder, através da hierarquia hospitalar, para que
fosse possível tornar o hospital um espaço de cura(9).
No entanto, o grande mérito de Florence Nightingale foi dar voz ao silêncio
daqueles que prestavam cuidados de enfermagem, que provavelmente não percebiam
a importância dos rituais que seguiam que já indicavam uma prática profissional
organizada. Ao institucionalizar a enfermagem como profissão, Florence
Nightingale produziu um significado no silêncio que havia na prática de
enfermagem, que até então era envolta em regulamentos e correspondências
internas às instituições de cuidado, executadas por aquelas que faziam parte de
associações, geralmente religiosas, cujo espírito era servir ao próximo, por
amor a Deus(28,29).
Um dos destaques que gostaria de fazer sobre a formação da enfermeira
brasileira, nas primeiras décadas do século XX, é que esta se deu,
principalmente, nas instituições hospitalares, em oposição aos discursos que
circulam hoje de que a enfermagem brasileira surgiu "sob a égide da saúde
pública". Esta versão, a de que a enfermagem brasileira iniciou por uma
necessidade de atenção à saúde pública, tem sido questionada, ultimamente. "a
institucionalização da Enfermagem Moderna no Brasil serviu muito mais para
atender ao avanço da Medicina hospitalar, eleita como núcleo da prática médica
(...) do que para instaurar uma assistência de Enfermagem voltada para a Saúde
Pública(30)".
Estas afirmações estão apoiadas nos registros históricos da Escola Anna Nery e
reforçam a interpretação de que a enfermagem brasileira, mesmo tendo sido
organizada para atender às necessidades da saúde pública, de acordo com as
versões históricas que hoje circulam, foi profundamente influenciada pelo
modelo anglo-americano, caracterizado pelo estudo sistemático das doenças e o
conseqüente cuidado ao doente, e, portanto, centrada no ambiente hospitalar.
Assim, a enfermeira brasileira foi preparada para "ser coadjuvante da prática
médica hospitalar que privilegiava uma ação curativa"(30). O que pode ser
argumentado é que a enfermagem, como profissão, se instala no Brasil atrelada
às políticas públicas, as quais seguia sem muitos questionamentos, e naquele
momento, apesar dos discursos em contrário, essas políticas privilegiavam a
assistência hospitalar. Este caráter colaborativo e um tanto acrítico esteve
presente também nos Estatutos da ABEn, ali permanecendo por longo tempo, até os
anos sessenta, e definia que a Associação tinha como uma das suas finalidades a
colaboração na execução dos programas de governo(30).
Sobre esse assunto, Zaira Cintra Vidal, que teve um intenso e importante papel
na implantação da enfermagem no Brasil, em um artigo publicado na REBEn,
esclarece que a educação da enfermeira está subordinada a dois fatores: à
instrução recebida na sala de aula e à experiência nos diferentes serviços do
hospital(31). No texto, a autora explica a estratégia que era usual na época:
na sala de aula a enfermeira se preparava teoricamente para cuidar do doente e,
no hospital, ela adquiria a habilidade prática necessária à profissão. Reforça,
ainda, que a enfermaria era o traço de união entre o ensino teórico e o prático
de uma escola, e que era muito importante a aluna aplicar seus conhecimentos na
enfermaria. Assim, observo que o "treinamento" do olhar da enfermeira era
focado no corpo do paciente hospitalizado, isto é, doente. Depois, estes
saberes e fazeres eram, então, "adaptados" aos corpos sadios que seriam objeto
do trabalho das enfermeiras de saúde pública, tendo como cenário as unidades
sanitárias ou os domicílios. Este modelo continha em si um paradoxo, uma vez
que as escolas de Enfermagem dos Estados Unidos, fundadas no final do século
XIX, eram vinculadas a hospitais particulares, portanto atreladas aos seus
objetivos de formar mão-de-obra rapidamente, com menores custos. Portanto,
havia uma ênfase nas atividades práticas nos hospitais. Da mesma forma, o
modelo inglês surgiu durante a guerra como uma necessidade de melhorar a
assistência ao soldado ferido, portanto também no hospital. É importante
destacar este paradoxal início brasileiro, pois esta origem no ambiente
hospitalar, associada ao fato, já descrito anteriormente, de ter surgido como
auxiliar do médico produz poderosas marcas no saber da enfermagem.
No ano de 1925, diplomou-se a primeira turma de enfermeiras formadas no Brasil,
segundo o modelo de enfermagem anglo-americana. Surge, então, a idéia de
organizar uma associação de ex-alunas da Escola de Enfermeiras D. Anna Nery,
posteriormente, ampliada para admitir enfermeiras formadas em outras escolas,
principalmente em escolas norte-americanas. Organiza-se, então, a Associação
Brasileira de Enfermeiras Diplomadas, hoje, Associação Brasileira de
Enfermagem. A enfermeira Edith Magalhães Fraenkel, instrutora de ensino da
Escola de Enfermeiras e primeira presidente da Associação, referiu à época que
"para uma profissão progredir é necessário que tenha uma associação e uma
revista"(32). A idéia de publicar uma revista foi novamente retomada em 1929,
durante uma reunião do Conselho Internacional de Enfermeiras no Canadá. Foi
sugerido às enfermeiras brasileiras, presentes ao encontro, que uma revista era
"indispensável ao desenvolvimento da profissão"(32:22). Nessas condições de
possibilidade, nasce a Revista Brasileira de Enfermagem (REBEn), inicialmente
intitulada Annaes de Enfermagem, órgão oficial da Associação Nacional de
Enfermeiras Diplomadas Brasileiras, idealizada para ser um meio de comunicação
entre as enfermeiras e para "servir de depositária das concepções que vão
plasmando, moldando e dando existência à enfermagem nacional". Desta forma, a
Revista representou um elo importante do projeto moderno para o estabelecimento
da profissão, pois além da visibilidade que proporcionaria ao grupo
profissional que se organizava, seria o braço de divulgação científica do
mesmo, sendo que a aproximação com a ciência possibilitaria usufruir de seu
status, o que era fundamental na época. Essa trajetória da enfermagem como
profissão coincide com os estudos de Larson que estuda o profissionalismo e diz
que o modelo anglo-saxão, de onde vem a enfermagem profissional, se
caracterizou por um modelo identificado com o livre mercado, onde os experts
detinham o poder do discurso(33). Essas profissões lutaram para ter um direito
privilegiado e exclusivo de falar sobre determinados assuntos, de determinadas
formas. Para tanto, se apropriam de um campo de discurso de onde só eles estão
autorizados a falar, sendo destacado que esse monopólio do discurso exerce uma
influência eficaz, silenciosa e invisível. Seus exercentes se obrigam a aceitar
e internalizar normas morais e epistemológicas que, em certo sentido, "são
impessoais, já que formulam conhecimentos mais gerais; mas também são
profundamente pessoais, já que os indivíduos que internalizam os discursos
gerais e concretos de sua cultura os experimentam como expressões naturais de
sua própria vontade"(33).
Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelo grupo, o primeiro número da
REBEn é impresso na gráfica do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, e circula
em maio de 1932. Nesta época, a Associação possuía cem sócias, entre as quais
circularia a Revista. Era redatora-chefe Rachel Haddock Lobo, na época Diretora
da Escola. Devido ao seu falecimento, o segundo número da Revista só circula em
dezembro de 1933, tendo como redatora Zaira Cintra Vidal, também professora da
Escola, que permanece no cargo até 1938. Zaira foi autora do primeiro manual de
técnicas de enfermagem em língua portuguesa, intitulado Técnica de Enfermagem.
Faço estes relatos para mostrar o papel da escola, como instituição, na
implantação da enfermagem profissional no Brasil e na criação e manutenção de
uma estrutura para a profissão. A estreita relação existente entre a Escola de
Enfermeiras e a Associação de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras, criada em
1926, que durante os primeiros anos funcionou junto à Escola, mostra a escola
como a grande maquinaria na fabricação da enfermagem moderna no Brasil.
Ressalto que a organização da enfermagem brasileira obedeceu a lógica que se
estabeleceu nos limiares da modernidade, quando a escola foi a geradora e a
disseminadora de novas práticas, através da educação de setores cada vez mais
amplos da população(34).
Na minha trajetória como pesquisadora publiquei alguns trabalhos frutos de
análises da REBEn(35), ao analisar as matérias publicadas observei que nela se
encontra um rico painel sobre a enfermagem brasileira, desde seu início, no
Brasil do século passado(36-38). Nos primeiros números da Revista, quando ainda
era organizada junto à Escola Anna Nery, constam discursos comemorativos a
eventos da Escola, artigos traduzidos de revistas americanas, textos elaborados
pelas professoras, geralmente voltados para assuntos de aula e sobre a conduta
da enfermeira, e até mesmo notas sociais e de humor. Nesta época, o manual de
autoria de Zaira Cintra Vidal é recorrentemente citado na Revista, que conta
com uma seção intitulada Apanhados de técnica. Na medida em que a Revista foi
sendo organizada pela Associação, encontram-se falas proferidas em eventos,
relatos de congressos, artigos sobre temas considerados importantes na época,
produções científicas dos profissionais, questões legais que preocupavam uma
profissão emergente em nosso país.Embora com alguma irregularidade em sua
periodicidade, a Revista foi publicada até a II Guerra Mundial, quando sofreu
uma interrupção, entre os anos de 1941 e 1946, por problemas financeiros,
devido ao alto custo do papel. A partir de 1946, a REBEn circula regularmente e
se encontra atualizada. Tendo completado 70 anos de existência em 2002, é
encontrada no acervo bibliográfico da maioria, senão de todas, as escolas de
enfermagem do país e distribuída também a assinantes. Reproduzo aqui o
depoimento de Vilma de Carvalho, professora da Escola Anna Nery e autora do
projeto de Informatização da Revista, sobre a sua importância: "a Revista, além
de um precioso testemunho da gênese, do crescimento e desenvolvimento, dos
avanços profissionais da enfermagem brasileira, constitui um verdadeiro
patrimônio, no âmbito cultural de sua primordial entidade de classe, a atual
Associação Brasileira de Enfermagem ABEn, a qual também teve por casa mãe a
Escola de Enfermagem Anna Nery da UFRJ(36)".
Ao longo de sua trajetória, a REBEn foi sofrendo transformações para se adequar
ao modelo proposto para periódicos científicos no Brasil, transformando-se em
uma publicação com periodicidade bimestral. Percebo que, em qualquer época, a
Revista veicula um discurso que pretende produzir certo tipo de ordem na
assistência à saúde, seja nas instituições, seja nos corpos de enfermeiras e
pacientes. Um discurso no qual as enfermeiras confiam, e que é dirigido
principalmente para professoras e alunas, não por acaso, as que mais
freqüentemente assinam os textos. Na REBEn, se encontram as vozes que estão
autorizadas a falar pela enfermagem. Aí está quem pode praticar o discurso
válido sobre a profissão, dizer o que é verdadeiro. Aí estão os discursos
possíveis, isto é, aqueles que estabelecem o que pode ser pensado, escrito e
dito sobre a enfermagem. Aí aparecem determinados discursos e não aparecem
outros, vistos como sem autoridade e que, portanto devem ser marginalizados e
excluídos(37).
Dentre os discursos que encontro na Revista, destaco a organização do regime de
práticas como expressões do saber da enfermagem, por entender que esses colocam
em operação o esfriamento dos corpos. Para situar essas estruturas de saber
recorro, inicialmente, ao trabalho de Maria Cecília Puntel de Almeida,
intitulado O saber de enfermagem e sua dimensão prática,publicado em 1986,
resultado de seu Doutoramento em Saúde Pública(9). Cito seu nome dessa forma,
sem atender as normas para citação bibliográfica, por considerá-la, também, uma
personagem nessa história que tento construir. Cecília elaborou um estudo que é
visto como um marco da pesquisa em enfermagem no Brasil, sendo citado,
recorrentemente, como uma ferramenta muito útil, por autores de várias áreas da
enfermagem. Seu texto propõe um estudo das práticas e dos saberes da enfermagem
sem usar enfoques idealistas ou normativos, privilegiando olhar para a
profissão enquanto prática social, para compreender como, a partir de uma
atividade doméstica ou religiosa, a enfermagem vem se instituir como um
trabalho(38).
As técnicas de enfermagem foram as primeiras manifestações organizadas e
sistematizadas de saber na enfermagem. Elas contêm as descrições do que deve
ser executado pela enfermeira, passo a passo, relacionando também o material a
ser utilizado. Podem se referir tanto a procedimentos relacionados ao paciente
(técnica de curativo), como a rotinas administrativas (alta hospitalar) ou
procedimentos de manuseio do material hospitalar (montagem da sala de
cirurgia). Elas foram organizadas como um saber no início do século XX, nos
Estados Unidos, e passaram a compor manuais, sendo tidas como a arte de
enfermagem. Representam uma grande parte do trabalho da enfermagem e foram se
modificando, desde uma simples descrição de passos até a apropriação de saberes
de outras áreas do conhecimento, para encontrar as razões dos procedimentos. Ao
fazer esta articulação, as autoras dos manuais começam a mencionar que a
enfermagem é, além de arte, uma ciência. E que o acervo de técnicas de
enfermagem é que faz esta tensão entre a ciência e a arte(9).
Inicialmente, as técnicas de enfermagem eram registradas nos livros dos
hospitais, pois foram constituídas dentro do espírito de organizar o hospital e
possibilitar que as enfermeiras controlassem tanto os pacientes como o pessoal
de enfermagem, estruturando um controle rígido de tudo o que aí acontecia. As
técnicas também pretendiam atingir as pessoas que chegavam ao hospital sem
muito treinamento, como os alunos de enfermagem que representavam a mão-de-obra
não remunerada, uma vez que era parte de seu treinamento o "aprender fazendo".
As técnicas de enfermagem não eram voltadas para o paciente, tinham uma
referência mais próxima ao trabalho que então se realizava no hospital,
centrado naquilo que rodeava o paciente: o ambiente, a ventilação e a limpeza,
entre outros. Inicialmente, uma das características do trabalho hospitalar era
o trabalho funcional, onde cada elemento da equipe de enfermagem fazia um
determinado procedimento, sendo cada paciente assistido por várias pessoas,
cada uma executando uma função ou tarefa.
A partir da década de cinqüenta do século passado, foram sendo construídos os
princípios científicos de enfermagem, na época vistos como um avanço em relação
às técnicas de enfermagem, pois representavam a incorporação dos princípios da
ciência à prática da enfermagem. Esses princípios constituem um saber que
precede as teorias de enfermagem. e constam de livros como Princípios
científicos da enfermagem, um clássico da época, editado em 1950, nos Estados
Unidos, e que teve sua primeira edição brasileira em 1965. No prefácio, as
autoras inventariam as ciências que estariam relacionadas com a enfermagem e
explicam que o termo princípio "significa um fato científico que justifica os
métodos em prática"(39). O texto relembra recorrentemente a importância do
método e da eficiência no trabalho da enfermeira, sendo que esta só será
atingida se a "enfermeira compreender as razões em que se baseiam os métodos
que usa"(40). Sob o título Filosofia da Enfermagem, encontro o seguinte
comentário:
A enfermagem conduz à compreensão do Homem e vai de encontro (sic) às suas
necessidades básicas, tanto na saúde como na doença. O conceito atual de
enfermagem é o de cuidar do paciente como um todo. Isto significa que a
enfermeira deve compreender a condição e o meio do doente: onde trabalha, vive
e tem suas relações de amizade. Sua vida familiar pode apresentar inúmeros
problemas, constituindo-se em fatores adjuvantes na doença e na recuperação.
Para atender essas necessidades, a enfermeira deve possuir uma base sólida nos
princípios científicos que orientam as técnicas de enfermagem. Durante o curso,
a escola deve proporcionar oportunidade para a observação e o desenvolvimento
da habilidade da arte da enfermagem. Se a enfermeira compreender o porquê das
coisas que faz, e se adquirir a habilidade e as atitudes adequadas à
enfermagem, estará em condições de trabalhar com eficiência(40).
Este discurso, numa parte introdutória do livro, trata o ser humano, o "Homem",
objeto do trabalho da enfermeira, como paciente, doente, portanto numa situação
de dependência e passividade. Geralmente o discurso é dirigido ao
hospitalizado, como indivíduo. Destaco esse fato para mostrar a importância da
vinculação da enfermeira ao hospital nesta época, entendendo que esse poderia
ser um dos fatores para explicar a dificuldade que, ainda hoje, encontramos
para relacionar o trabalho da enfermeira com a prevenção da saúde, mais
direcionado para a população do que para o indivíduo.
Na mesma obra, é feito referência à "uma filosofia" e introduz uma outra
terminologia, ainda não utilizada na enfermagem as necessidades básicas que nos
anos seguintes vêm a se difundir. Da mesma forma, introduz outras expressões
como "cuidar do paciente como um todo", aí incluído seu trabalho, suas relações
afetivas, e os princípios científicos que "orientam as técnicas"(41). Apesar de
a ênfase ter sido reduzida, ainda é citada a importância da arte na enfermagem.
No texto, a enfermagem eficiente é vista como uma confluência entre os porquês
(ciência), acrescidos das habilidades (fazer) e atitudes (comportamentos).
Penso que um dos aspectos daquilo que poderíamos chamar de "grande transição",
pelo menos no aspecto profissional da enfermagem, já estava em andamento
naqueles dias. Era o estudo das teorias de enfermagem, um modelo já em curso
avançado nos Estados Unidos, e que, como não poderia deixar de ser, já havia
chegado ao Brasil. Esta assimilação dos modelos norte-americanos está presente
nos textos da REBEn, onde podemos observar a influência que a enfermagem
brasileira sofreu, e ainda sofre, embora em menor grau, da enfermagem norte-
americana. Na REBEn, principalmente nos primeiros números, encontramos o
emprego de palavras em inglês, tais como recordelesson plan, e um discurso que
denuncia esta presença, embora tente minimizar esta influência. Esta já foi
objeto de comentários como o que segue: "Aparentemente, na ânsia de "pular
etapas", a Enfermagem brasileira não hesitou em copiar modelos de assistência e
de ensino (norte-americanos). Começou com a criação da Escola de Enfermagem
Anna Nery, nos moldes e sob a direção de enfermeiras norte-americanas; assumiu
o modelo biomédico como paradigma para o ensino e a assistência; enfatizou, nos
anos cinqüenta e sessenta, o modelo americano de assistência baseado nos
princípios científicos; incorporou o tecnicismo como forma de organização de
seu trabalho e, a partir da década de setenta, assimilou a nova onda norte-
americana das teorias de enfermagem, buscando consolidar-se como ciência e
ocupar um certo status social(30)".
A chamada "nova onda americana" das teorias de enfermagem representa parte de
um processo histórico de construção das bases de uma ciência de enfermagem, a
elaboração de um corpo de conhecimentos próprios, específicos da enfermagem.
Este processo, iniciado pelas enfermeiras norte-americanas, no final dos anos
sessenta e na década de setenta do século passado, é relativamente recente na
trajetória da enfermagem profissional. As teorias de enfermagem relacionam
conceitos, proposições e princípios sobre a natureza da enfermagem, seu campo
de ação e seus métodos de trabalho(40). Elas foram a condição de possibilidade
de produção de um discurso que coloca a enfermagem em igualdade de condições,
como profissão autônoma, no rol das profissões da área de saúde. Assim,
conforme observamos hoje nos discursos das enfermeiras, na REBEn ou fora dela,
há um entendimento de que esse saber próprio dá à enfermagem uma autonomia
profissional que a torna independente da medicina.
No trabalho da enfermeira é empregada uma metodologia que organiza o
conhecimento e o cuidado do paciente chamada processo de enfermagem. O uso
desse processo permite a aplicação dos fundamentos teóricos da enfermagem na
prática, "ordenando e direcionando o cuidado de forma individualizada,
personalizada e humanizada"(40,41). O termo processo de enfermagem foi
utilizado pela primeira vez nos anos cinqüenta, e recebeu aprovação das
enfermeiras, estando hoje incluído em todos os currículos das escolas de
enfermagem, sendo aceito como definição legal e como prática pela maioria das
enfermeiras(42). O processo de enfermagem é uma atividade intelectual que
auxilia a enfermeira na tomada de decisões, com o objetivo de atingir
determinados resultados. Desta forma, com essas referências ao campo de ação a
ao trabalho da enfermeira na virada do século, concluo a descrição da
organização do regime de práticas da enfermagem os quais analisei como
acontecimentos que devem ser tratados em sua singularidade, em sua emergência
descontínua(41).
Para finalizar esse texto, enfatizo que quando se utiliza as idéias de Foucault
não se pode fazer um trabalho de dissecação de fatos, utilizando o bisturi da
razão para distribuir, ordenar e classificar os mesmos em torno de um eixo que
explica tudo. Ao contrário, minha intenção foi dar nova vida aos relatos que
explicam o que é o passado, usando a imaginação para fazer novas tramas que
permitam redizer o que está dito e rever o que está visto, para que possamos
nos ver e dizer de outras formas e conhecer como os saberes e fazeres ensinados
às enfermeiras produziram uma determinada ordem no cuidado(43).