O trabalho da enfermagem: análise e perspectivas
O trabalho da enfermagem: análise e perspectivas
Nurse´s craft: an analysis and some future perspectives
El trabajo de enfermería: análisis y perspectivas
Ana Lúcia Cardoso Kirchhof
Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Professor Adjunto Departamento de Enfermagem
da Universidade Federal de Santa Catarina, Membro do Grupo de Pesquisa em
Saúde, Trabalho e Cidadania (PRÁXIS/UFSC) e do Núcleo de Estudos e Pesquisa em
Saúde e Trabalho (NEST/UFSM). E-mail:kirchhof@terra.com.br
1 Considerações sobre a enfermagem enquanto trabalho
A primeira questão a ser abordada diz respeito ao olhar sob o qual se parte
para a compreensão do que seja a enfermagem. Definida no século XIX por
Florence como a arte de cuidar, ao longo da Modernidade a enfermagem avançou na
sistematização das suas práticas transformando-as, gradativamente, em
conhecimento, de tal sorte que as técnicas são a primeira expressão do saber em
enfermagem, as quais evoluíram para os princípios científicos e para sua
expressão mais contemporânea, as teorias de enfermagem (1). Esse movimento foi
desencadeado pela busca de autonomia dessa prática, cumprindo a função não só
de aproximação, conhecimento e manipulação do objeto de trabalho, como também
e, principalmente, "a função ideológica de visualizar o trabalho carregado de
contradições, como hegemônico e humanitário" (1:120).
Decorre disso que a enfermagem responde, enquanto prática social, às exigências
que se definem no todo organizado das práticas sociais, econômicas, políticas e
ideológicas e nessa organização se inclui. Essas exigências regulam a prática,
quando dimensionam o objeto ao qual se aplica, os meios de trabalho que opera,
a forma e a destinação dos seus produtos. Do processo de conhecimento sobre a
enfermagem, então, também faz parte o processo sob o qual ela mesma aconteceu.
Essa compreensão da enfermagem enquanto trabalho é uma reflexão recente, das
três últimas décadas, que os enfermeiros fazem sobre sua inserção social no
campo da saúde. Olhar, então, a enfermagem enquanto trabalho, ou seja, uma
prática social executada com a finalidade de produzir uma transformação,
significa olhá-la inserida no mundo do trabalho e, por isso, vinculada às leis
sociais de necessidades que o movimentam.
A enfermagem pode ser definida como
uma ação ou atividade realizada predominantemente por mulheres, que
precisam dela para reproduzir a sua própria existência e utilizam um
saber advindo de outras ciências e de uma síntese produzida por ela
própria para apreender o objeto da saúde naquilo que diz respeito ao
seu campo específico (cuidado de enfermagem?), visualizando o produto
final, que é atender às necessidades sociais, ou seja, a promoção da
saúde, prevenção de doenças e a recuperação do indivíduo, ou o
controle da saúde da população (2:18).
Acrescente-se a essa definição que o trabalho da enfermagem é uma expressão das
necessidades que norteiam os processos de trabalho da enfermagem, necessidades
que estão vinculadas a sua inserção na organização produtiva, para as quais a
produção de capital e de poder e a definição do papel do enfermeiro e demais
membros da equipe de enfermagem estão dimensionados, por vezes, majorativamente
enquanto finalidade do trabalho da enfermagem. Destaca-se a competência técnica
dentro do seu âmbito específico, a autonomia e a autoridade com os demais
membros da equipe, bem como a definição de critérios técnico-científicos e
ético-profissionais que nem sempre colocam como prioritários o atendimento de
necessidades da população, como a promoção da saúde e a prevenção da doença.
Há ainda uma problemática que interliga a definição de enfermeira com a
identidade da prestação de cuidados pelo pessoal de enfermagem (3), no qual se
reconhece a necessidade de ampliação de uma definição profissional que
identifique as características do cuidado e do serviço de enfermagem. Em outras
palavras, ressalto que "conhecer mais profundamente a área da enfermagem
implica em compreender a prática de seus múltiplos agentes e as articulações
existentes entre elas" (4:393).
Portanto, o destaque deste texto para a enfermagem enquanto trabalho busca
reconhecer que existe mais que uma definição de prática de enfermagem, uma vez
que, o processo de trabalho humano é antes de tudo o processo de produção e
reprodução do homem social, historicamente determinado através da produção de
bens e serviços(5). Se hoje é possível compreender o trabalho em saúde como
historicamente determinado e produtor de bens e serviços é porque se reconhece
um processo de construção das práticas de saúde que iniciam com as comunidades
primitivas e culminam com a sociedade capitalista, a qual tem a saúde como uma
mercadoria e um serviço.
2 A organização histórico-social, as práticas de saúde e a enfermagem
Um norteador na definição das práticas de saúde está no modo como cada
sociedade concebe a saúde e, de maneira mais ou menos coerente, operacionaliza
essa compreensão. Assim, saúde e enfermidade estão estritamente vinculadas e
condicionadas pela sociedade historicamente dada, da qual se desenvolvem e que
influem nas características de cada elemento das práticas de saúde e na sua
organização interna. A sociedade capitalista é a de nosso maior interesse, pois
é nela que encontramos os principais fundamentos históricos das práticas de
saúde desenvolvidas atualmente, embora não se excluam outras práticas não
hegemônicas e que também fazem parte das práticas de saúde, sendo exercidas de
maneira crescente em nossa sociedade.
Com o desenvolvimento da ciência, rompe-se com o caráter obscurantista imposto
pela Igreja da sociedade medieval, pois que o impulso dado pelos novos
conhecimentos advindos dos descobrimentos geográficos, astronômicos,
científicos abre uma nova perspectiva existencial. Há uma confiança no poder da
razão humana, provocando no campo da saúde um salto qualitativo com o advento
da anatomopatologia, da fisiologia, da microscopia, da bacteriologia. Para esse
novo pensamento, o indivíduo não se opõe nem é inimigo da sociedade, havendo
uma perfeita harmonia entre ambos, manifestada no livre exercício dos direitos
inatos e naturais. É nessa sociedade, portanto, que se firma a idéia liberal de
que "a livre competência dos indivíduos no mercado se obtém como conseqüência
do bem estar geral"(6:22). Essa visão otimista da vida, que se contrapõe à
visão anterior, da sociedade medieval, é uma estratégia da classe burguesa para
a construção da sociedade liberal, racional, individualista, pela qual a classe
dirigente assegura seu domínio sobre a classe produtora de bens que,
despossuída dos meios de produção, se vê obrigada a vender sua força de
trabalho para sobreviver(6).
A medicina curativa, decorrente das transformações científicas e das
estratégias de poder da classe dirigente, vem atuar nas desordens naturais, nas
ameaças ao homem, à sua natureza física, que colocam em risco sua existência,
sua capacidade produtiva e, sobretudo, o projeto de sua existência para
produzir. Ressalta essa compreensão que "o homem é um caso particular da
natureza e a natureza uma antagonista geral do homem"(6:24) Para a sociedade
capitalista, a finalidade da saúde é:
- preservar a força de trabalho que requer preparação e habilidade
crescente para manipular as máquinas cada vez mais complexas;
portanto, é caro para a sociedade e para sua classe dirigente criar
tal tipo de trabalhador e faz-se necessário preservar sua
sobrevivência;
- preservar a sobrevivência da classe dirigente;
- assegurar a ordem social, de onde dar mais saúde atua como
moderador de atitudes destrutivas para a sociedade capitalista que
constitui a classe trabalhadora, questionando seu não controle sobre
os meios de produção (5:25-6).
Essa concepção de saúde é a que prevalece por toda a Modernidade, período no
qual a enfermagem institucionaliza suas práticas. A profissionalização da
enfermagem acontece sob o capitalismo ao desvincular-se da assistência social
genérica e de seu caráter religioso, passando a ter como principal objetivo "a
conservação e adaptação da força de trabalho às exigências de uma economia de
reprodução ampliada, a salvação dos corpos necessários ao setor produtivo" (7:
48-49). Ao processo de conquista de uma distinção de sua prática, para
diferenciá-la do estigma de imoral, bêbada e analfabeta, cujo local hospital
acolhia para retirar da rua, sobrepõem-se o preparo para as atividades e o
desenvolvimento de traços pessoais considerados desejáveis, como honestidade,
lealdade, pontualidade, serenidade(7). Junto, porém, com essa distinção no
preparo profissional moral caminha a exigência de um preparo teórico
sistematizado, fortemente influenciado pelas descobertas no campo da saúde na
época. Por isso talvez, esses valores sejam questionados, atualmente, ou seja,
a nossa atuação profissional ainda se mostra sisuda, carrancuda,
preocupada com aspectos formais objetivos, guiada por parâmetros de
lógica racional, embora saibamos todos que a intimidade ou
familiaridade do cuidar requer maior flexibilidade, maior afinidade
com a ordem simbólica. Ainda que mais disponíveis a algumas mudanças,
essas ainda se fazem marginalmente e não se explicitam convincentes
de como se faz esta ultrapassagem de estrita racionalidade, nem mesmo
quando, no âmbito da saúde, nos dizemos distantes da abordagem
biomédica como exclusiva. O imaginário, o lúdico e o onírico,
silenciados na formação profissional da Enfermagem Moderna, no início
do século XX, possivelmente têm outro destino hoje, às portas de um
outro tempo que sucede essa Modernidade(8:29).
Os valores perseguidos pela modernidade - sobretudo a razão como valor maior-
certamente marcaram as diretrizes pedagógicas da formação do pessoal de
enfermagem, definindo um perfil de formação profissional e a conquista de uma
prática coerente com ele. A Escola Ana Néri, primeira escola a ministrar o
ensino sistematizado de enfermagem por enfermeiros, foi considerada por decreto
presidencial como padrão de ensino para todo o país, sendo atualmente
apresentada como oferecendo, por muito tempo, uma formação elitista e
preconceituosa, sendo suas raízes autoritárias de tal forma marcantes que,
ainda em 1978, eram apresentados indícios dessas raízes nas produções
acadêmicas publicadas na Revista Brasileira de Enfermagem(9).
Dessa maneira, embora possam ser observados na nossa sociedade, chamada de pós-
moderna, avanços na sua organização social e produtiva10 compreendo que os
fundamentos para a definição das práticas de saúde sofrem variações, conforme
os modelos tecno-assistenciais(10) adotados para a operacionalidade das mesmas
na saúde coletiva, conforme estejam mais identificados com a modernidade ou com
a pós-modernidade, dando-lhes um caráter organizativo menos ou mais flexível.
Os modelos tecno-assistenciais direcionam a organização dos serviços de saúde,
conforme articulam os setores envolvidos, sua proposta de integralidade,
regionalização, hierarquização, seletividade, universalidade e concepção de
saúde e doença (11). Entendo, portanto, que as práticas de saúde identificadas
mais com a pós-modernidade são aquelas que adotam um caráter organizativo mais
flexível, reconhecendo os micro-espaços de poder, as diferentes subjetividades
que compõe esses espaços e, sobretudo, compondo com os atores desse processo a
sua própria construção cotidiana.
3 A saúde como um bem a ser alcançado pelo trabalho em saúde
Contudo, pode-se depreender, pelo pano de fundo histórico colocado, que a saúde
foi e permanece como uma das condições essenciais para o pleno exercício da
vida humana. A saúde é uma necessidade do ser humano e, por isso conforme foi
demonstrado, tem permanecido como um valor/bem para o indivíduo e a sociedade.
Pode-se ter uma idéia do valor desse bem ao se observar as conseqüências
sociais promovidas por ele à divisão do trabalho em saúde, à
institucionalização das profissões, à tecnologia disponibilizada para a
assistência em suas diversas fases (diagnóstico, tratamento, reabilitação) e ao
jogo político perverso da diferenciação na qualidade da assistência para quem
paga e não paga, fato que, no Brasil, é palco de interesses de tal maneira
divergentes entre as esferas pública e privada que têm dificultado a plena
operacionalização da lei 8080/90, que regula as ações, a organização e o
funcionamento dos serviços de saúde no nosso país. Portanto, a saúde se
constituiu, principalmente ao final deste século, em um setor de serviços
essencial para a vida humana (12), essencial para a produção e reprodução do
ser humano, que está inserido em um sistema de produção e reprodução econômico-
social que lhe confere características próprias e que, pelas implicações que
provocam no trabalho em saúde, em geral e na enfermagem, serão discutidas neste
momento.
Parto da premissa de que a saúde se transformou em um serviço na sociedade
capitalista, uma vez que "antigas formas de cooperação mútua, social,
comunitária e familiar, pelo estímulo do capital, produziram atividades
comercializáveis no mercado"(13:306). A prestação de serviços só ocorre em
larga escala no capitalismo monopolista, o qual "criou o mercado universal e
transformou em mercadoria toda a forma de atividade do ser humano, inclusive o
que até então as pessoas faziam para si mesmas e não para outras"(13:306).
A enfermagem, enquanto trabalho, é um dos serviços da saúde e insere-se nesse
setor, produzindo e sendo produzida a sua prática conforme as determinações
deste setor. Os serviços, por sua vez, produzem bens não materiais, uma vez que
o seu consumo se confunde com o próprio ato da sua produção, não se podendo
destacar materialmente da própria atividade que gera(14). Esse autor faz uma
distinção entre bens (materiais e não materiais) e serviços e os classifica em
econômicos, simbólicos e políticos. A idéia de bem está vinculada à de produto,
enquanto a idéia de serviço vincula-se à idéia de distribuição. Por exemplo, um
bem simbólico são as idéias expostas em uma aula pelo professor; serviço
simbólico é o processo didático de transmissão dessas idéias. Penso que todo o
produto (bem) gerado nos serviços de saúde contém propriedades econômicas,
políticas e simbólicas concomitantemente.
As propriedades econômicas estão presentes porque a produção do serviço de
saúde é trocada por uma remuneração, além de ser fonte geradora de força de
trabalho. Muito embora o trabalho possa ser fonte de prazer para o trabalhador,
o fato é que este também o faz para obter o seu "ganha-pão". Da mesma forma,
conquanto a saúde esteja garantida como um direito constitucional, isto apenas
pode se efetivar mediante financiamento do setor, dele fazendo parte os
impostos pagos pela população. A propriedade política diz respeito aos
interesses presentes na produção do serviço. Para cada decisão tomada há
interesses norteadores, de tal maneira que, de acordo com esses interesses - do
trabalhador de saúde, do empresário, do usuário, da sociedade - será
direcionado o processo de trabalho. Acrescento ainda que a tecnologia
produzida/consumida está amplamente determinada pela finalidade de conservação
e desenvolvimento dessa sociedade e pela sobrevivência do ser humano nela,
levando-se em conta que sempre há um projeto hegemônico em prática, não se
desconsiderando que também há os contra-hegemônicos.
A propriedade simbólica do produto dos serviços está diretamente vinculada aos
significados de cada ato do processo de trabalho. Dessa forma, a compreensão
que cada participante do processo de trabalho constrói a partir da experiência
vivida nele se constitui como bem simbólico daquele serviço. São as "leituras"
feitas dos processos vividos e que podem ser diferentes ou semelhantes para as
pessoas participantes que as elaboram mentalmente. A propriedade simbólica diz
respeito à interpretação do trabalho no seu todo, portanto, à interpretação do
valor agregado ao serviço realizado e que, por isso, o diferencia de outro.
Essa característica que defendo - a de que o serviço de saúde produz produtos
que são ao mesmo tempo econômicos, políticos e simbólicos - confere ao trabalho
na saúde e com a saúde um viés especial de análise, visto que essas
características estão presentes em cada etapa do processo de trabalho
desenvolvido, ou seja, na interpretação da necessidade, na apreensão do objeto
de trabalho, na definição da finalidade a ser seguida, na escolha da tecnologia
pertinente ao trabalho, na capacitação da força de trabalho para a realização
do trabalho em si. Portanto, penso que essas propriedades estão presentes em
todo o processo de trabalho em saúde e que, por isso, lhe conferem uma dimensão
teórico-prática dimensionadora do êxito (produto) a ser alcançado.
Por princípio, na teoria do processo de trabalho há uma coerência interna entre
a finalidade do trabalho, a necessidade e o produto a ser alcançado. No
entanto, a finalidade, a necessidade e o produto, como já defendi em outra
publicação(15), conquanto possam ser tomados como conceitos equivalentes, não
expressam o mesmo signo. Essas dimensões do processo de trabalho ocorrem em
espaços/tempos diferenciados: a finalidade é da responsabilidade do
profissional; trata-se de uma interpretação da necessidade do usuário. O
produto é o resultado possível às condições de produção naquele tempo/espaço.
Por isso, na práxis, percebe-se uma diferença entre os mesmos, pois embora
jamais se pense em produzir algo que não atenda à necessidade para a qual foi
elaborado um projeto de trabalho, também é fato que há um caráter histórico nas
necessidades humanas, demarcador de um processo de produção que, mesmo que seja
dinâmico, tem como finalidade a produção de um produto econômico, político e
simbólico, o qual corre o risco, a qualquer tempo, de ser superado pela
formação de necessidades novas, pois,
o próprio mundo das necessidades está em permanente processo de
`captura' pelas tecnologias dos saberes estruturados, porque pode e
deve ser inventado em processo, no fazer do trabalho vivo que se
publiciza para uma nova validação ético-estética no campo de trabalho
na saúde(16:111).
Assim, no interior da produção das práticas de saúde está-se permanentemente
diante da constituição de um espaço interseçor trabalhador-usuário, como o
lugar que dá factibilidade ao trabalho vivo em ato e ao jogo das necessidades
que se definem no interior de um processo quase-estruturado(16:95).
Deve-se considerar, ainda, que os processos complexos(14) consistem na
combinação de dois processos: um processo de trabalho e outro de apropriação do
resultado desse trabalho, do seu produto; e, certamente, que as propriedades
econômica, política e simbólica interferem na efetivação de cada um desses
processos, além de interferirem na sua combinação.
Como é de âmbito profissional a responsabilidade pelo produto e cabe ao usuário
a sua apropriação há, portanto, um desafio a ser considerado pelos
profissionais para um maior êxito do trabalho em saúde: o desenvolvimento de
uma práxis que se coloque necessária e apropriável pelo usuário do trabalho da
saúde. Penso que as características do produto do processo de trabalho em saúde
mencionadas acima são facilitadoras do processo de apropriação pelo usuário,
porque vêm ampliar o leque de alternativas para o seu êxito, pois uma visão
ampliada do objeto de trabalho fortalece o processo de trabalho dela
decorrente.
4 O trabalho da enfermagem e algumas considerações sobre suas perspectivas
O trabalho da enfermagem, enquanto constituidor do trabalho coletivo em saúde,
tem suas próprias especificidades. Estas especificidades dizem respeito as
ações de prestar um cuidado, de mediá-lo para a equipe de enfermagem e de saúde
e também de educar em saúde (17,18) . Considero cada uma dessas dimensões um
trabalho, que passo a discutir.
O trabalho cuidar,
é o trabalho identificador da profissão, uma vez que se realiza a
partir de necessidades de saúde concretas ou potenciais,
caracterizado pela sua especialização profissional, como conseqüência
analítica da ciência, pela capacidade de formulação de problemas,
pela sua comunicabilidade como objeto epistemológico, preditibilidade
na intervenção de cuidado terapêutico, por ter técnica e arte na sua
realização(18:35).
A enfermagem tem com esse trabalho uma identidade histórica, o que tem
despertado muitas reflexões sobre qual seria a amplitude desse cuidado:
considerando-o como objeto da profissão, como finalidade, elaborando práticas
assistenciais a partir de teorias e até mesmo construindo perspectivas
paradigmáticas através de estudos teórico-filofófico-exploratórios.
Na condição de prestadora de cuidados de saúde, a enfermagem desenvolveu um
parcelamento de tarefas com outros componentes da sua equipe, o auxiliar e o
técnico de enfermagem, tendo o ato de cuidar a finalidade de atendimento de
necessidades materiais (por ex. um curativo) e não materiais (por ex., apoio,
compreensão). Assim sendo, o processo de trabalho cuidar é composto por
atividades, definidas pela lei do exercício profissional. De maneira geral, se
cuida do corpo do indivíduo, sendo que esse cuidado difere em qualidade,
conforme se compreenda o corpo. Proponho compreendê-lo como "uma construção
simbólica que antes de ser realidade em si mesmo é realidade produzida social e
culturalmente"1(8:38) ou
na busca do corpo inteiro e real, não negando o corpo doente ou
tentando superá-lo, mas compreendendo-o principalmente em sua
vulnerabilidade ante nosso saber e nossas instituições assistenciais,
numa aguda consciência desse poder e da possibilidade de um cuidado
terapêutico e, ao mesmo tempo, ético(18:39)
Ao se adotar essa concepção de corpo no processo de trabalho cuidar, ampliam-se
as possibilidades de instrumentos de trabalho e de produto alcançado, além de
também se ampliarem as perspectivas de apropriação desse produto pelo usuário.
Nesta concepção, os profissionais "abrem mão" de verdades absolutas e de
atitudes onipotentes, criando, portanto, as condições mínimas para um diálogo
entre os sujeitos envolvidos nesse processo de trabalho. Considero que esse
diálogo se dê em uma perspectiva em que o trabalhador e o usuário façam dele um
instrumento mediador do cuidado, rompendo com uma relação em que um se
apropriou do saber para cuidar do outro que não sabe se cuidar.
Contudo, dadas às influências do modelo tecno-assistencial hegemônico, essa é
uma perspectiva a ser alcançada no exercício cotidiano da práxis em enfermagem,
que por já estar vislumbrada no discurso, considero estar aberta à
possibilidade de
constituir tecnologias de ação do trabalho vivo em ato e mesmo de
gestão desse trabalho que provoquem ruídos, abrindo fissuras e
possíveis linhas de fuga nos processos de trabalho instituídos, que
possam implicar a busca de processos que focalizem o sentido da
`captura' sofrido pelo trabalho vivo e o exponham às possibilidades
de `quebras' em relação aos processos institucionais que o operam
cotidianamente(16:101).
O processo de trabalho educar pode se voltar tanto para um indivíduo quanto
para um grupo. Esse trabalho tem como objeto a consciência individual e/ou
coletiva e como finalidade possibilitar escolhas mais críticas do usuário em
relação aos serviços de saúde e ampliar as possibilidades do cuidado de si
mesmo. O campo prático deste processo de trabalho é cada dia maior tendo-se em
vista a perspectiva de que um maior nível de qualificação da força de trabalho
tem sido uma exigência do mercado e que, enquanto trabalhadores, todos precisam
dar atenção a sua saúde. As possibilidades desse processo de trabalho para a
enfermagem enquanto campo prático, são inúmeras, tais como as atividades
docentes propriamente ditas, relacionadas com a educação formal e que ocorrem
no âmbito escolar do ensino fundamental até o universitário. Entretanto também
as atividades educativas não-formais podem ser expressivas em nossa profissão,
constituindo-se em todas as atividades de orientação grupal ou individual, além
daquelas relacionadas à educação popular, de cunho mais comunitário. Há ainda a
perspectiva de outro campo prático, voltado para o trabalhador, por meio do
qual se pretende construir um processo de conscientização da vulnerabilidade do
trabalhador no trabalho e ajudar a encaminhar as mudanças necessárias para sua
diminuição e eliminação, tendo-se por perspectiva as conseqüências da
precarização das relações de trabalho, pois o trabalhador tem trocado cada vez
mais sua saúde pela possibilidade de conservar ou obter um emprego, seja ele
qual for.
A atuação do enfermeiro nesse processo de trabalho parte da realidade da
população-alvo e com ela constrói possibilidades de conquistar mais saúde e
cidadania. A problematização do cotidiano a partir de situações-problema,
valoriza os saberes dos participantes, fazendo-os compor a "matéria-prima" da
reflexão e da definição de propostas do trabalho a ser desenvolvido. Há que se
considerar a contribuição de Paulo Freire para a educação brasileira, e as
perspectivas transformadoras delineadas pelos fundamentos prático-teóricos de
sua proposta no campo da educação em saúde.
O processo de trabalho administrar-gerenciar é privativo do enfermeiro,
diferindo neste aspecto dos demais- cuidar e educar. Neste trabalho, o
enfermeiro tanto organiza o trabalho da equipe de enfermagem quanto é mediador
do trabalho da equipe de saúde. Há porém autores (18,17) que apontam, como
parte do processo de trabalho administrar a educação em serviço. Há um
componente forte nessa atividade que tem relação com a administração da força
de trabalho; contudo, entendo que estaria mais apropriada esta atividade no
processo de trabalho educar, pois, pela perspectiva que o objeto de trabalho
define para a conformação do processo de trabalho, administrar a força de
trabalho é um processo diferenciado de qualificá-la.
No processo de trabalho administrar, gerenciar, o enfermeiro tem por finalidade
organizar o serviço de maneira a atender ao usuário, ao trabalhador e à
instituição assistencial. Por isso, esse trabalho constrói-se em um cenário de
disputa de distintas forças instituintes que se expressam nos distintos campos
das disciplinas profissionais, dos distintos seres humanos em ação, compondo
uma micropolítica do processo de trabalho (16). Há, portanto, um desafio
colocado ao enfermeiro neste processo, dada sua natureza específica perante os
demais. Aceitar o desafio de mediar o trabalho na enfermagem e na saúde é uma
realidade para o enfermeiro. Penso que lhe falta a visualização desse trabalho
como uma potencialidade a ser desbravada na medida em que
revoluções no mundo tecnológico da produção não se fazem só com a
entrada em cena de novas máquinas, mas também de novos modos de gerir
as organizações, a fim de garantir a 'captura' do trabalho vivo em
ato na produção(16:94).
Concordo com esse autor quando defende que a gerência é uma tarefa coletiva do
conjunto dos trabalhadores, no sentido de modificar o cotidiano do modo de
operar o trabalho no interior dos serviços de saúde.e também quando afirma que
de nada servirão os esforços de reformas macro-estruturais e organizacionais se
não acontecer concomitantemente uma publicização do sistema de direção da
gestão dos processos de trabalho em saúde que tome por referência o interesse
do usuário do serviço, representado por suas necessidades de saúde(16).
Há, portanto uma riqueza de possibilidades no trabalho da enfermagem,
visualizando-a pela composição que seus processos delineiam na sua
concretização. Tanto os três processos podem ocorrer concomitantemente, quanto
pode ser priorizado um em detrimento dos outros, como, por exemplo, o de cuidar
ou de educar. No entanto, o processo de gerenciar é imprescindível aos demais,
estando tão imbricado nos mesmos que se torna difícil separá-lo como um
processo isolado. O processo gerenciar tem, na verdade, como objetos de
trabalho o trabalho cuidar e o trabalho educar, além de ter por tarefa o seu
próprio aperfeiçoamento. Por isso, a gerência tem sido um tema bastante
discutido nos embates sobre os serviços de saúde, tanto adotando o estigma de
vilã, quanto de "salvadora da pátria". A posição de que todos esses processos
são importantes para a prática da enfermagem é a posição que defendo, conquanto
perceba no processo de trabalho da gerência uma posição de liderança do
trabalho do enfermeiro perante o campo de conhecimento da saúde.
Defendo, então, que as melhores perspectivas para o trabalho da enfermagem
estão no aproveitamento dos espaços já criados pela grande reforma macro-
política organizacional da Reforma Sanitária Brasileira, que culminou com a
criação do Sistema Único de Saúde por meio da lei 8.080/90 e da sua
complementar, a lei 8.142/90. Ambas direcionam para uma publicização (16) do
trabalho em saúde, garantindo os princípios da universalidade, da equidade e da
participação popular -usuários, trabalhadores e gestores - na construção desse
Sistema.
Para tanto, cabe aos trabalhadores a tomada de consciência de que a
criatividade, os micro-espaços operacionais, as inter-relações na vida e no
trabalho podem ser propulsores de flexibilidade e afinidade com a ordem
simbólica e política- mais do que com a econômica. A práxis em enfermagem tende
a ultrapassar a estrita racionalidade ao vincular-se aos princípios do
imaginário e do lúdico no cotidiano pessoal e profissional. Para alcançar esses
propósitos, a enfermagem conta com os três processos de trabalho - o cuidar, o
educar e o gerenciar. Não há necessidade de reinventar a roda, talvez apenas
não desprezar o já conhecido e transgredir o já construído.