A formação que temos e a que queremos: um olhar sobre os discursos
PÁGINA DO ESTUDANTE
A formação que temos e a que queremos: um olhar sobre os discursos*
The education that we have and the one we want: a perspective on discourses
La formación que tenemos y la que queremos: una mirada sobre los discursos
Osvaldo Peralta BonettiI; Maria Henriqueta Luce KruseII
IAluno da Graduação, 8º semestre 2003. EEUFRGS
IIEnfermeira. Doutora em Educação. Professora Adjunta da EEUFRGS
E-maildo autor:kruse@uol.com.br
1 Introdução
Um currículo é um recorte dos conhecimentos desejáveis para a formação e, como
tal, possui uma determinada ordem. Nesta, estão em luta visões de mundo e a
possibilidade de produção de representações, narrativas, significados sobre
coisas e seres do mundo(1. Assim, o currículo não deve prestar-se apenas a
formação profissional mas precisa instigar e ampliar a visão de mundo,
aperfeiçoando os acadêmicos e acadêmicas em sua condição de cidadãos e cidadãs.
Observamos que a formação de enfermeiras e enfermeiros no Brasil apresenta
grande diversidade, principalmente se temos como foco os currículos das escolas
de enfermagem. Este é um fato preocupante pois, embora não seja desejável a
existência de um currículo padronizado, esta discrepância não oferece a
garantia da qualidade que desejamos.
A cidadania pressupõe a ciência de deveres e direitos. No Brasil, a saúde é um
direito de todos e dever do Estado, garantida no artigo nº 196 da Constituição
Federal de 1998 e, também, em outros artigos de leis complementares como a de
nº 8080 de 1990. As deliberações do Estado intervêm na lógica da formação,
possibilitando a superação do modelo hegemônico político pedagógico vigente.
Sendo assim, as universidades públicas, influenciadas pelo Estado, devem
participar articuladamente na construção de políticas que visem a reordenação
da formação dos profissionais de saúde, a fim de efetivar seu comprometimento
social, afirmação que também encontra amparo na Norma Operacional Básica de
Recursos Humanos (NOB - RH/SUS). Neste contexto, é necessário que se implemente
um sistema público de saúde comprometido e condizente com as demandas sociais
sendo, portanto, necessária a formação de profissionais capazes de atuar neste
sistema.
O Sistema Único de Saúde (SUS) possui uma natureza ideológica de extrema
simplicidade, embasada em princípios de igualdade e cidadania. Porém, para seu
pleno funcionamento, necessita de uma complexa rede de articulações e
pactuações. Um dos possíveis entraves parece ser a dificuldade dos
profissionais inseridos no SUS em conduzi-lo, tanto no aspecto administrativo,
quanto no assistencial. Para minimizar este problema deve haver um
redirecionamento dos aparelhos formadores em saúde, no sentido do
fortalecimento do SUS, ou seja, a revisão das estruturas curriculares, para que
sejam enriquecidas com o debate relativo à política, legislação e trabalho no
SUS, bem como, através da articulação dos aparelhos formadores com os segmentos
do controle social do SUS(2).
Vivemos hoje numa sociedade na qual o capital financeiro é quem dita as regras
a serem seguidas, quais as necessidades de trabalho e sua forma de organização.
Esta é a lógica de algumas instituições de ensino, cedendo principalmente às
necessidades do mercado quando articulam suas diretrizes e tendências na
formação. Discordamos da visão corrente de que o mercado resolverá os problemas
na formação acadêmica, pois quem deve se apropriar de tal tarefa é o Estado,
cumprindo com o seu papel de responsável pela estruturação, regulação, controle
e ajustes na política de recursos humanos para a saúde(3).
Este trabalho tem por objetivo analisar os discursos referentes à reforma dos
currículos na área da saúde e suas implicações na formação de profissionais de
enfermagem capazes de atuar no Sistema Único de Saúde. Os materiais analisados
são textos, documentos e artigos, aqui vistos como discursos autorizados sobre
o assunto, já que partem de pesquisadores, universidades e principalmente do
governo. Esses discursos mostram-se produtores de realidade em determinadas
condições históricas. Partindo dessa premissa, não é o sentido per sique
buscamos neles,mas sim a função que lhes é atribuída e os efeitos de verdade
que produzem(4).
2 Questões e método
Com o objetivo de conhecer os discursos autorizados sobre a formação em
enfermagem, especificamente sobre a formação para o Sistema Único de Saúde,
buscou-se identificar as vozes que se cruzam e quais as temáticas recorrentes
em relação ao assunto. Este trabalho tem como propósito principal fomentar
discussões sobre a necessidade do reordenamento da formação de recursos humanos
para o SUS. Também pretende auxiliar as representações discentes a ampliarem
seus debates acerca do assunto, instigando a reflexão de acadêmicos/as acerca
de sua formação, no sentido de avaliar o comprometimento social dos mesmos,
possibilitando uma mudança nos seus modos de agir.
O estudo consiste em uma pesquisa bibliográfica(5), a qual é desenvolvida
através de material já elaborado, constituído principalmente de livros e
artigos científicos. Nesta revisão de literatura foram utilizados textos
publicados em periódicos, anais de congressos, documentos governamentais,
projetos da área de educação, artigos de revistas, teses, dissertações e
livros. Documentos oriundos de pesquisa on-line em sites de entidades,
universidades e bases de dados como BDENF, LILACS e Medline, também foram
considerados.
A análise consistiu nos seguintes passos(5): leitura exploratória; leitura
seletiva; leitura analítica e, por fim, a leitura interpretativa.
Posteriormente, fez-se a tomada de apontamentos, anotando as idéias principais
e os dados importantes em relação aos objetivos da pesquisa, como o registro
dos conteúdos das obras e comentários acerca das mesmas, com base no
referencial teórico.
3 Vozes que se cruzam
Durante o período mais repressivo da ditadura militar, enquanto as classes
populares e seus representantes eram silenciados pelo regime, desenvolveu-se um
pensamento transformador na área da saúde. Desta forma, a modificação no
pensamento médico-social, mesmo com as vozes silenciadas, já existia, eclodindo
com a organização dos movimentos sociais. Assim o movimento sanitário encontra
seu referencial nas classes trabalhadoras e populares(6).
Partindo desta referência, este trabalho é dedicado a todas as "vozes", que
influenciaram ou protagonizaram estes discursos que são, por hora, utilizados
neste trabalho. Elas reivindicam e lutam pela efetivação de uma saúde pública
preservadora dos direitos sociais dos brasileiros.
3.1 Vozes do Controle Social
Iniciamos a análise pelas vozes do controle social, provenientes das
Conferências Nacionais de Saúde (CNS). Estas Conferências têm sido um espaço de
reflexão e proposição coletiva, na qual estão representados todos os segmentos
e agentes envolvidos no processo formativo, dentre estes, os usuários do SUS,
constituindo-se nos principais implicados na qualidade da política de formação
de recursos humanos, já que a formação se reflete fortemente na qualidade da
assistência prestada.
O tema Recursos Humanos permeia as discussões desde antes da 8ª Conferência
Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1986, na qual se efetivou a criação do
SUS, cujo tema foi a "Reformulação do Sistema Nacional de Saúde". Mesmo assim,
iniciamos nossa análise a partir desta Conferência pela sua significância
histórica. Desde então, tem sido apontada a necessidade de readequar o processo
formativo aos princípios do Movimento da Reforma Sanitária, tais como a
integralidade, a universalidade, a hierarquização e a resolutividade das ações
de saúde. Para tanto, é necessário integrar a formação de recursos humanos aos
serviços de saúde respeitando sua regionalização e hierarquização, como também
a inclusão de práticas alternativas nos currículos das escolas e a necessidade
de integração entre hospitais universitários e o SUS(7).
O Movimento da Reforma Sanitária surgiu nos anos 70, primeiramente no meio
universitário, com posterior adesão de técnicos, especialistas e pensadores. Ao
longo do tempo, passou pelas experiências da medicina comunitária, pelos
movimentos populares e avançou no movimento municipalista. Seu principal
objetivo era se contrapor à ditadura, por entendê-la incompatível com as
propostas de saúde coletiva preconizadas pelo movimento. Já na década de 80, em
seus encontros, esse inconformismo era expresso na denúncia da crise do setor
saúde, que se encontrava fortemente marcado pela privatização da assistência e
compra de serviços, verticalização e centralização administrativa, exclusivista
ou classista, pois apenas tinham acesso os trabalhadores que contribuíam com a
Previdência Social. Dos seus ideais e lutas nasceu o Sistema Único de Saúde.
A 1ª Conferência Nacional de Recursos Humanos, ocorrida em 1986, foi organizada
para permitir o debate do tema central: "Políticas de Recursos Humanos Rumo à
Reforma Sanitária". Percebe-se que desde aquele momento a formação na área da
saúde vinha sendo elaborada, inclusive com algumas críticas que se conservam
até hoje, como a necessidade de uma articulação mais estreita entre as
instituições que prestam serviços e aquelas que formam pessoal de saúde(8).
Nos discursos que constam do relatório desta conferência, nota-se que os
diagnósticos sobre a formação de recursos humanos apresentaram muitos avanços,
porém as proposições enfatizavam a capacitação e treinamento de ingresso no
Sistema através de programas de especialização e pós-graduação. Pensa-se que o
Movimento da Reforma Sanitária acreditava que as mudanças no ensino superior
seriam decorrentes da mudança nos modelos de atenção e no mercado de trabalho,
inerentes às transformações que ocorreriam no processo de democratização da
área. No entanto, existiam entraves que dificultavam as mudanças, como o grande
distanciamento entre os currículos e o novo conceito de saúde que se desenhava,
acrescido das características das estruturas hierárquicas das universidades que
não tinham e não têm a flexibilidade necessária para facilitar estas mudanças.
Assim, mesmo sinalizando a necessidade de alterações nas propostas de mudança
na formação, os cursos de graduação não eram percebidos como passíveis de
habilitar profissionais para atuarem no SUS. A valorização da formação para o
trabalho em equipe já era bastante enfatizada.
O saber na área da saúde é, por natureza, fragmentado em vários saberes, sendo
que cada profissional detém apenas a área específica de sua formação para a
atenção em saúde. A divisão social do trabalho faz com que haja a repetição de
tarefas em determinados níveis de complexidade, hierarquizando os
profissionais. Essa divisão do conhecimento científico e a hierarquização dos
profissionais refletem no resultado final do trabalho. Um dos efeitos que ela
produz é a precarização do saber sobre saúde que a população detém(8).
Ainda na 1º Conferência de Formação de Recursos Humanos encontra-se uma análise
do Programa de Integração Docente-Assistencial (IDA). Este programa mobilizou
as universidades na década de 80. Estas identificaram como um problema a
alienação da escola em relação à realidade social da população, a divergência
entre a estrutura autoritária das escolas e as propostas do SUS e a
desarticulação intra e interinstitucionais na relação serviços/escolas. As
propostas para superar tais entraves foram: a participação ou inclusão dos
espaços de ensino-aprendizagem nas comissões interinstitucionais de saúde em
seus diversos níveis, no controle social e na pactuação do SUS; a co-
responsabilização dos serviços pela produção do ensino e da pesquisa; a
inclusão dos hospitais de ensino no SUS; a democratização das estruturas de
escolas e serviços e uma reforma curricular que contemplasse a inclusão de
novas práticas pedagógicas. No relatório, está expressa também a necessidade de
se realizar "práticas extra muros" para reforçar as ações de prevenção,
tornando visível a necessidade de integração entre Hospitais de Ensino/Centros
de Saúde/Distritos - Escolas.
Em 1992, em meio à conjuntura caótica por que passava o sistema público de
saúde, decorrente das políticas do governo Collor, acontece a 9ª Conferência
Nacional de Saúde, cujo temário foi "Municipalização é o Caminho". Nesta, foi
destacada a necessidade de assegurar uma política de formação e capacitação de
recursos humanos, construída de forma articulada com os órgãos formadores,
considerando os quadros nosológicos e epidemiológicos de cada região. Mais
enfaticamente se defendia a reformulação dos currículos das carreiras da área
da saúde para que se adequassem às realidades sócio-epidemiológicas e
características étnico-culturais das populações, especialmente a indígena.
Paralelamente à reivindicada inserção da Universidade no SUS, assegurava-se a
necessidade de mecanismos de avaliação contínua do ensino em saúde. A inclusão
da fitoterapia nos currículos é destacada reforçando a necessidade de terapias
alternativas ou complementares na formação, uma antiga reivindicação. Atrelada
à exigência da imediata regulamentação do artigo 200, inciso III, da
Constituição Federal que atribui ao SUS a tarefa de "ordenar a formação dos
RH", é destacada a importância da garantia de recursos orçamentários para a
educação dos profissionais de saúde, bem como a importância da criação de
núcleos de desenvolvimento de trabalhadores junto à gestão de recursos humanos.
Ainda sobre as políticas de recursos humanos, a 9ª CNS, em 1993 e a II
Conferência Nacional de Recursos Humanos, tem como tema "Os Desafios Éticos
Presentes na Atualidade Histórica da Sociedade Brasileira". Nesta Conferência
foi produzido um denso documento sobre o tema, que fazia um alerta detalhado e
preciso sobre os riscos da falta de uma política de recursos humanos para o
SUS.
"Onde dá SUS, dá certo"! Esta era a chamada da 10ª CNS7.Nesta, houve
deliberações quanto à formação e desenvolvimento de recursos humanos em Saúde.
Houve a exigência de que o Ministério da Saúde apresentasse, após ampla
discussão com as entidades representativas da área, um Plano de Ordenamento da
Capacitação, Formação, Educação Continuada e Reciclagem de Recursos Humanos em
Saúde, para deliberação pelo Conselho Nacional de Saúde. Este plano deveria ser
articulado nacionalmente, inclusive com previsão de repasses financeiros
específicos para essas atividades, sendo baseado nos seguintes princípios:
criação de Comissões Permanentes para integração entre os Conselhos de Saúde,
os serviços de saúde e as Instituições de Ensino Fundamental e Superior, para
deliberar sobre a capacitação, formação, educação continuada e reciclagem dos
Recursos Humanos em Saúde, a partir da ótica do SUS; estímulo à utilização das
unidades e serviços do SUS como espaço prioritário para a formação de
trabalhadores em saúde (sistema de saúde-escola), com a supervisão das unidades
de ensino e de serviço, garantindo um intercâmbio qualificado entre essas
instituições e a formação de profissionais com perfil mais compatível com o SUS
(9).
Nesta 10ª Conferência é reforçada a exigência da revisão dos currículos mínimos
dos cursos de nível superior da área da saúde, com a participação dos gestores
do SUS e Conselhos de Saúde, adequando-os às realidades locais e regionais, aos
avanços tecnológicos, às necessidades epidemiológicas e às demandas
quantitativas e qualitativas do Sistema Único de Saúde. Também se deliberou o
apoio, participação e valorização de projetos de avaliação do ensino como os da
Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Médico e da Rede Unida, por parte dos
Gestores do SUS e os órgãos de fomento à pesquisa. A reivindicação da
integração ensino-serviço reaparece qualificada pela inclusão da comunidade, na
construção da política de recursos humanos.
Os participantes da 11ª CNS(10) entenderam que a formação dos trabalhadores da
saúde não se orientava pelas necessidades sociais em saúde. Em seu relatório
final, dentre as críticas apontadas ao processo de formação, aparece a
supervalorização das tecnologias e da especialização, os quais não atendem ao
perfil demandado pelo SUS, pois não garantem acesso universal, qualidade e
humanização da atenção com controle social. Afirmam que há uma deficiência
técnica e ética no preparo para a humanização, existindo um estímulo ao
"diagnóstico armado" ou pré-estabelecido, em detrimento da avaliação clínica,
dando origem a um enorme número de exames subsidiários, agravando a busca e a
espera pela assistência.
Ainda no relatório da 11ª CNS encontra-se referência ao distanciamento entre os
organismos de gestão e de participação social das instituições que propunham as
políticas educacionais (Ministério da Educação, Universidades, Sociedades de
Especialista). Também é destacada a inobservância da intersetorialidade na
formulação e implementação das políticas públicas que regem as reformas
curriculares entre Ministério da Saúde e da Educação, principalmente em relação
à implementação destas nas universidades privadas. O relatório evidencia ainda
a ausência do saber acadêmico na construção e na formação dos profissionais
para atuarem nos modelos de gestão do SUS, o que é refletido em ações sem
planejamento e em conflitos internos nas equipes de saúde(10).
Dentre as propostas encontramos a construção de um debate "articulado e
articulador" de gestores, conselheiros, trabalhadores e formadores de RH para
implementar a NOB-RH/SUS e aperfeiçoá-la, assim como introduzir o conceito de
equipe multiprofissional, segundo as necessidades sociais em saúde(10). Nota-se
também a necessidade de interdisciplinaridade no processo de trabalho das
equipes de saúde e nos processos de formação, porém surgem conceitos
corporativos, tais como, profissionais não-médicos. Defende-se que o Ministério
da Saúde efetive os protocolos de ações de saúde, o que determina a necessidade
da inclusão de conhecimentos sobre estes assuntos durante a formação.
Reivindica-se uma canalização de recursos financeiros para a formação dos
recursos humanos para o SUS, definindo o perfil profissional apropriado a
partir de necessidades concretas locais(10). Salienta-se, ainda, a necessidade
de redirecionar o papel dos aparelhos formadores em saúde (universidades e
escolas técnicas) no fortalecimento do SUS e a revisão das estruturas
curriculares para que se enriqueçam pelo debate da política, legislação e
trabalho no SUS10. Em relação ao papel das universidades, foi reivindicado na
11ª CNS o cumprimento da deliberação da 10ª CNS, exigindo a revisão imediata
dos currículos mínimos dos cursos de nível superior com a participação dos
gestores do SUS e Conselhos de Saúde, visando à adequação das realidades locais
e regionais, aos avanços tecnológicos, às demandas quantitativas e qualitativas
do SUS e a implementação das novas diretrizes curriculares para o ensino médio
e superior. Isto possibilitou a formação de profissionais de saúde de acordo
com as políticas propostas pelo SUS, incluindo a saúde coletiva na pauta das
discussões7, o que possibilitou uma articulação entre as instituições
formadoras, gestores e controle social, por meio da horizontalização e
democratização da gestão das escolas, para buscar a resolução dos problemas de
saúde de cada região e do país como um todo, com e para a sociedade, como
ocorre, por exemplo, na extensão universitária(7).
Estabeleceu-se a ressalva de que os órgãos formadores em saúde deveriam ter
seus papéis revistos para que se enriqueçam com o debate das políticas de
saúde, da legislação e do trabalho no SUS. A articulação do controle social com
os órgãos formadores e a realidade do SUS foi proposta mais uma vez, sendo
enfatizada a importância do reordenamento dos currículos de formação na área da
saúde.
Quanto à formação na área da saúde destaca-se a importância de estabelecer
regras nacionais de articulação entre o MEC, as Sociedades de Especialistas e o
CNS e passar ao SUS a decisão sobre especialidades a serem criadas ou extintas,
bem como a regulamentação da diversificação dos papéis das profissões de saúde
e das oportunidades formativas nos ambientes de trabalho da saúde(10). Com o
objetivo de orientar a formação de profissionais, a regulação e o papel das
universidades, os Conselhos de Saúde e de Educação deveriam criar critérios
rígidos que regulassem a criação de novas instituições formadoras, a abertura
de cursos e a ampliação de vagas na área de saúde e, dentre eles, fosse
considerada a necessidade social de cada região, em cumprimento à Lei n.8.080/
90. Também foi recomendada a participação da comunidade nos Conselhos
Superiores das Universidades como forma de contribuir, acompanhar e fiscalizar
a formação dos profissionais de acordo com as necessidades sociais da população
(10).
Paralelamente às Conferências, o Conselho Nacional de Saúde organizou oficinas
e seminários descentralizados a fim de sistematizar e aprofundar as discussões
acerca da política de recursos humanos. Deste trabalho resultou a elaboração
dos "Princípios e Diretrizes para uma Norma Operacional Básica de Recursos
Humanos para o SUS", que se constitui em um material propositivo de ações e
normas estabelecedoras de um maior comprometimento dos gestores federal,
estadual e municipal, estabelecendo como necessidade que o modelo de educação
permanente seja baseado nas atribuições e competências dos trabalhadores do SUS
e para equipes de trabalhadores, para tornar possível a implementação do SUS em
novos modelos assistenciais e de gestão(10).
A 12ª CNS, cujo relatório final não foi finalizado, desenvolveu o tema "O
Trabalho na Saúde", destacando que as mudanças no mundo do trabalho,
ocasionadas pelo processo de globalização e pela incorporação de novas
tecnologias, acarretariam no desafio de implantar uma política que reduza a
precarização nas relações de trabalho no setor de saúde, possibilitando mais
investimentos na capacitação e educação continuada dos profissionais e melhores
resultados dessas ações, regulando a formação em todos os níveis para adequá-la
às necessidades do sistema de saúde(11).
Cabe destacar que a afirmação de que há um grave descompasso entre a formação
acadêmica e a realidade social do País tem sido freqüente nos relatórios das
Conferências. Do mesmo modo, a reivindicação da efetivação do artigo 200 da
Constituição Federal, que coloca sob responsabilidade do SUS ordenar a formação
dos recursos humanos para a saúde, foi expressa em todas as Conferências.
Também é oportuno esclarecer que a análise focaliza-se nos eixos referentes à
formação contidos nos relatórios, porém explicita-se que estas reivindicações
se deram por uma política de recursos humanos no seu sentido mais amplo, que
reformasse a própria gestão dos Recursos Humanos da saúde, pois para a efetiva
implementação do SUS, faz-se necessário o tratamento ordenado de sua força de
trabalho(10).
Por fim, analisando os discursos das vozes do controle social não se encontram
as falas da população assistida por estes serviços. As falas relatadas são
marcadas por vozes da academia ou dos serviços. Esta observação leva a
questionar se estas vozes não se manifestam somente no que se refere aos
recursos humanos ou se os relatórios que tanto as defendem não dão espaço para
suas expressões em seus modos de ser e agir.
3.2 Vozes da Gestão
A legislação que rege o Sistema Educacional Brasileiro é a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (LDB), instituída pela Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de
1996. A LDB promove a descentralização e a autonomia das escolas e
universidades, além de instituir um processo regular de avaliação do ensino.
Para garantir as especificidades de cada curso na construção das Diretrizes
Curriculares, são estabelecidos um conjunto de orientações, pareceres e
resoluções.
Até o ano de 1999, o Conselho Nacional de Educação (CNE) estabelecia os
currículos mínimos dos cursos de graduação com validade nacional, devendo as
instituições observar rigorosamente suas disposições, quando da elaboração de
seus currículos plenos. Esta política de formação pretendia produzir um
profissional "estandardizado" (padronizado) para se adaptar ao mercado de
trabalho especializado, o qual seria ditado pelas relações competitivas
características do capitalismo, propondo um profissional mais adaptado às
necessidades regionais, respeitando as vocações institucionais e locais(12).
No Parecer nº 776/97, intitulado "Orientações para as Diretrizes Curriculares
dos Cursos de Graduação" (DCN) observamos a crítica ao modelo dos currículos
mínimos, que, segundo este documento, caracterizam-se por uma excessiva
rigidez, ferindo a liberdade concedida às Instituições de Ensino Superior pela
LDB em relação à elaboração de seus currículos. Avalia, ainda, que esta
uniformização trouxe um certo nivelamento entre estas instituições ou
"semelhança formal" como refere, porém não garantiu a qualidade desejada, assim
como as inovações e a benéfica diversificação da formação oferecidaA legislação
que rege o Sistema Educacional Brasileiro é a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB), instituída pela Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. A LDB
promove a descentralização e a autonomia das escolas e universidades, além de
instituir um processo regular de avaliação do ensino. Para garantir as
especificidades de cada curso na construção das Diretrizes Curriculares, são
estabelecidos um conjunto de orientações, pareceres e resoluções.
Até o ano de 1999, o Conselho Nacional de Educação (CNE) estabelecia os
currículos mínimos dos cursos de graduação com validade nacional, devendo as
instituições observar rigorosamente suas disposições, quando da elaboração de
seus currículos plenos. Esta política de formação pretendia produzir um
profissional "estandardizado" (padronizado) para se adaptar ao mercado de
trabalho especializado, o qual seria ditado pelas relações competitivas
características do capitalismo, propondo um profissional mais adaptado às
necessidades regionais, respeitando as vocações institucionais e locais(12).
No Parecer nº 776/97, intitulado "Orientações para as Diretrizes Curriculares
dos Cursos de Graduação" (DCN) observamos a crítica ao modelo dos currículos
mínimos, que, segundo este documento, caracterizam-se por uma excessiva
rigidez, ferindo a liberdade concedida às Instituições de Ensino Superior pela
LDB em relação à elaboração de seus currículos. Avalia, ainda, que esta
uniformização trouxe um certo nivelamento entre estas instituições ou
"semelhança formal" como refere, porém não garantiu a qualidade desejada, assim
como as inovações e a benéfica diversificação da formação oferecida(13). No
entanto, não fica claro quais seriam estas inovações necessárias e benéficas
para a formação do profissional que vai atuar no SUS. Neste parecer também é
referenciada a importância de se rever a tradicional burocratização dos cursos,
que assumem uma postura dicotômica em relação às atuais tendências
contemporâneas que consideram a formação ao nível da graduação como uma etapa
inicial de formação, sendo necessária uma posterior especialização, bem como à
crescente heterogeneidade, tanto da formação prévia como das expectativas e dos
interesses dos alunos. Este discurso não estaria se contrapondo àquelas vozes
do controle social que reivindicavam uma melhor formação profissional no
período de graduação? Não se estaria criando um novo espaço ou abertura para a
cultura da especialização? Quais seriam estas expectativas que não são
contempladas nos currículos?
Encontra-se também, no mesmo parecer, a indicação de que as novas diretrizes
curriculares devem se pautar pela tendência de redução da duração dos cursos de
graduação. Porém, não há explicação sobre que tendência seria esta, qual seria
a sua origem? Seria proveniente da visão das políticas neoliberais, defensoras
da diminuição dos papéis do Estado, na busca de menor comprometimento com o
processo educativo? O parecer também aponta a necessidade da fundamentação em
cada área ou campo de saber, para que o estudante se sinta incentivado a busca
ativa, ou seja ao estudo independente, visando seu crescimento intelectual e
profissional. Que leitura deve ser feita desta proposição? Seria uma estratégia
para possibilitar a diminuição da carga horária, ou o Ministério da Educação,
ao propô-la, estaria manifestando sua preocupação com a construção político
emancipatória dos sujeitos?
Este parecer que orienta a construção das Diretrizes Curriculares Nacionais
indica ainda que os currículos deveriam ser construídos preservando a liberdade
das Instituições Superiores em estabelecer a carga horária e os conteúdos
necessários para a formação profissional. A autonomia no contexto educacional
que temos hoje, onde predominam entidades privadas no oferecimento dos cursos
superiores, não ameaçaria alguns dos princípios centrais da formação de
recursos humanos privilegiando a formação para o mercado de trabalho? No mesmo
parecer, também é salientada a necessidade de aliar a teoria à pratica através
de estágios, estudos e pesquisas independentes, como também, a participação na
extensão universitária.
Em 2001, é publicado um novo Parecer, o de nº 583/2001. Neste, as proposições e
observações do anterior são reafirmadas, sendo definida a duração, carga
horária e tempo de integralização dos cursos, o que será objeto de um Parecer
e/ou uma Resolução específica da Câmara de Educação Superior. Dentre os pontos
levantados encontra-se: o perfil do formando/egresso/profissional; o projeto
pedagógico, que deverá orientar o currículo para um perfil profissional
desejado; competência/habilidades/atitudes; habilitações e ênfases; conteúdos
curriculares; organização do curso; estágios e atividades complementares;
acompanhamento e avaliação(14). Neste mesmo ano de 2001, o MEC institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem, através
da Resolução CNE/CES nº 3, substituindo o conceito de "currículo mínimo" para
as profissões superiores pelo conceito de "diretrizes curriculares". O
documento que institui as diretrizes foi ou deveria ter sido construído em um
processo colaborativo, desencadeado no ano de 1997, quando então o MEC provocou
a discussão de sua construção.
Construído pelo Fórum de Pró-Reitores de Graduação (ForGrad), o qual teve
importante participação no processo de construção das diretrizes, segundo o
próprio MEC, o Plano Nacional de Graduação traz a referência de que as IES
devem reformular suas políticas de graduação. O plano propõe que sejam
superadas as práticas vigentes, derivadas da rigidez dos currículos mínimos,
que se traduzem em cursos com elevadíssima carga horária, número excessivo de
disciplinas encadeadas em sistema rígido de pré-requisitos. Destaca também o
privilegiamento da visão corporativa das profissões, ao invés de contemplar o
contexto científico-histórico das áreas de conhecimento, o atendimento às
demandas existentes e a indução de novas demandas mais adequadas à sociedade
(15).
A participação de nossa categoria profissional nesta construção esteve liderada
pela Associação Brasileira de Enfermagem (ABEN). Para ampliar e socializar o
debate acerca das DCN a enfermagem se organizou nos Seminários Nacionais de
Diretrizes Curriculares (SENADEN), para coletivamente discutir os caminhos que
necessitava e desejava percorrer em relação às mudanças na graduação. Embora
não se encontrem críticas ao processo de construção em documentos da
enfermagem, o ForGrad refere que as instituições ao construírem seus pareceres
acerca das diretrizes foram pautadas pela visão ministerial, pois seguiram as
determinações expressas no Edital nº 4/97 da Secretaria de Educação Superior, o
qual continha um conjunto de elementos constitutivos que as diretrizes deveriam
contemplar. Esta afirmativa provoca a reflexão sobre a autonomia do processo
criativo da categoria de enfermagem ao discutir as novas diretrizes
curriculares.
A Resolução das DCN determina as orientações que devem ser seguidas pelas
instituições de ensino superior na reformulação dos seus projetos pedagógicos e
conseqüentemente dos currículos dos cursos de graduação que, segundo o
documento deveriam ser pautados pela ótica das competências. Currículo por
competência corresponde a um conjunto de experiências de aprendizagens
concretas e práticas, focadas em atividades que se realizam nos contextos ou
situações reais do trabalho. Privilegia a aprendizagem em ritmo individual,
gradual e o desenvolvimento da capacidade de auto-avaliação(16).
O documento instituinte das novas diretrizes curriculares para graduação em
enfermagem dita o perfil esperado de enfermeiros e enfermeiras, com enfoque
para a formação generalista, humanística com habilidade crítica e reflexiva,
capacidade de reconhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde-
doença mais prevalentes no perfil epidemiológico nacional e comprometimento com
a cidadania(14).
Para atingir este perfil são requeridos um conjunto de competências e
habilidades, tais como, conhecimento técnico-científico, agilidade na tomada de
decisão, comunicação, liderança, administração e gerenciamento, como também
realizar educação permanente, entre outras. O documento apresenta diretrizes
que se ancoram na educação centrada na práxis, privilegiando a inserção do
estudante na sua realidade concreta, o mundo do trabalho em saúde. Segundo
parecer da comissão de especialistas que construíram as diretrizes, a mesma tem
como concepção norteadora à visão emancipatória que forma o indivíduo para a
vida, com base na educação cidadã e solidária. Neste parecer, é inserido pela
primeira vez o conceito de competência como um norteador da formação. Também
constam no documento os conteúdos necessários para a construção do currículo.
A flexibilização, tão utilizada no meio econômico, foi citada como tendência a
ser seguida no mundo da educação e das Diretrizes Curriculares, pois o
currículo baseado em competência estaria modificando a formação de enfermeiros
e enfermeiras. No entanto, o distanciamento do mundo do trabalho, sem a devida
adaptação às novas características estruturais, resulta na constatação de que a
formação na área da saúde ainda oferta pouco prestígio à saúde coletiva na sua
estrutura curricular e que a concepção hospitalocêntrica, médico-centrada e
procedimento-centrada (medicalizadora) da saúde ocupa um espaço
hierarquicamente superior na cultura acadêmica ou na "imagem" do trabalho em
saúde(17).
A emergência dos processos de flexibilização trabalhista tem gerado fenômenos
tais como ampliação do trabalho precarizado, no qual o operário
multiqualificado, polivalente, deve exercer na automação, funções muito mais
abstratas e intelectuais, implicando cada vez menos trabalho manual ecada vez
mais manipulação simbólica(18). A flexibilização no mundo do trabalho teria
sido concebida em uma lógica de recomposição da hegemonia capitalista naqueles
países que se encontravam em crise estrutural(18). Na educação, sua inserção
nos países da América Latina estaria associada ao ajuste macroeconômico, pelo
qual os mesmos se submeteram na década de 90 para superar a inflação e a
estagnação econômica sofrida na década de 80(18).
Competência é a capacidade de articular e mobilizar conhecimentos, habilidades
e atitudes, colocando-os em ação para resolver problemas e enfrentar situações
de imprevisibilidade, em uma dada situação concreta de trabalho em um
determinado contexto cultural(19). A competência na saúde é essencial, na
medida que as necessidades em saúde são extremamente dinâmicas, social e
historicamente construídas, não são estruturas fisiopatológicas ou anátomo-
clínicas biologicamente determinadas e, portanto, exigem que os serviços de
saúde desenvolvam dispositivos também dinâmicos e extremamente flexíveis, para
escutar, retraduzir e trabalhar essas necessidades(20).
O termo competência remete a três dimensões, sendo elas: as capacidades
(recurso cognitivos), as atividades de trabalho e o contexto em que estas
atividades são realizadas. Já que os métodos de avaliação da formação por
competências devem ocorrer por meio de um processo gradual e articulado, mais
amplo e complexo do que o diretamente observável, nenhum fazer em si,
isoladamente, expressa efetivamente as competências de uma pessoa; se assim
fosse, poder-se-ia pensar em formação unicamente pela perspectiva do
treinamento. É imprescindível não perdermos de vista a perspectiva histórica
dos processos de trabalho e de formação, pois se a formação estiver puramente
voltada à esfera profissional, em detrimento de uma formação integral que
abranja a dimensão de cidadania, corremos o risco de fazermos uma redução no
termo competência(21).
O reconhecimento da necessidade de mudança do currículo levou a Secretaria de
Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde a realizar o Seminário Nacional de
Incentivo às Mudanças na Graduação das Carreiras da Saúde, ocorrido em maio de
2003. Neste, ficou firmada a responsabilidade do Ministério da Saúde com a
formulação das políticas orientadoras da formação, cumprindo seu papel de
gestor do SUS. Nas discussões são destacados alguns nós críticos ainda
existentes na política de formação de recursos humanos para o SUS, como a falta
de conexão ou articulação entre as políticas já existentes, as mudanças
curriculares nos cursos de Medicina, Saúde da Família e a profissionalização
dos trabalhadores/as de enfermagem, dentre outras, as quais continuariam sendo
elaboradas e implementadas desarticuladamente, o que dificultaria a proposta de
transformar a realidade. Também é discutida a preocupação com o perfil da
formação profissional que estaria distante da realidade da gestão
descentralizada do SUS, sendo inclusive colocada em evidência a necessária
transformação do modelo tradicional de ensino nas universidades, baseado na
organização disciplinar e nas especialidades, quando deveriam se contrapor ao
modelo hegemônico de formação e cuidado à saúde, procurando transformar as
práticas de gestão e do controle social em saúde.
A atual pedagogia da transmissão, também chamada de bancária, parte da premissa
de que o conhecimento e as idéias são os pontos mais importantes da educação,
logo o estudante é visto como uma página em branco. Quanto às relações
estabelecidas entre os agentes envolvidos no processo educativo, sejam eles
educador e educando ou professor e estudante, este ocupa um papel de agente
passivo e ignorante e o professor seria aquele que detém todo o conhecimento.
Como possíveis fatores que colaboram para dificultar as mudanças estão o
despreparo do corpo docente, os currículos ultrapassados nos quais o ciclo
básico e o ciclo clínico não se relacionam, a excessiva carga horária, a
dissociação entre teoria e prática e a ênfase na assistência especializada e no
uso maciço da tecnologia(22).
Como alternativa para a estruturação pedagógica na formação, o relatório
apresenta a metodologia da aprendizagem significativa. Esta requer a
articulação da academia e dos órgãos de gestão na seleção dos conteúdos
prioritários a serem inseridos no processo de formação do futuro trabalhador,
na produção do conhecimento e desenvolvimento de competências através da
aproximação dos espaços de gestão/serviços ao espaço de formação. Nesta
metodologia o professor assume um novo papel, o de facilitar o processo de
ensino-aprendizagem, que deve estimular o aprendiz a ter atitude ativa, crítica
e reflexiva durante o processo de construção do conhecimento(23).
No seminário acima referido, é lançada a estratégia ou política de Educação
Permanente, alicerçada na necessária responsabilização dos serviços de saúde
com a transformação das práticas profissionais, se configurando como espaços de
construção de conhecimento comprometido com a realidade social da população
usuária. A proposta de Educação Permanente estaria alicerçada na aprendizagem
significativa, propondo que a capacitação dos profissionais de saúde seja
enraizada na metodologia da problematização do processo e da qualidade do
trabalho ofertado em cada serviço de saúde. Com isso, propõe-se transformar as
práticas profissionais e a organização do trabalho, tendo como conceitos a
descentralização, implantação ascendente multiprofissional e transdiciplinar,
desafiando universidades e gestores a testarem sua capacidade de articulação,
através da democratização de suas instituições(24). Esta proposta pretende ser
diferente da Educação Continuada que buscaria manter e estender o conhecimento
profissional em qualquer área da prática médica, através da atualização de seus
conhecimentos. Nela, o aprendizado é construído de maneira fragmentada,
seguindo as necessidades detectadas em campos profissionais específicos,
seccionados em categorias profissionais, logo distante do objeto que seria a
equipe de saúde, a qual constitui a estrutura do processo de trabalho no SUS.
A Educação Continuada privilegia o ensino após a graduação, com finalidades
mais restritas de atualização, aquisição de novas informações ou atividades de
duração definida e através de pedagogias tradicionais(25). Já a Educação
Permanente amplia seu campo de atuação, abrangendo também a graduação e, desde
então, com uma metodologia contra-hegemônica, em que o educando é protagonista
do processo ensino-aprendizagem, tendo como campo de estudo o próprio processo
de trabalho, expressando o esforço em transformar as práticas dos serviços de
saúde, revendo seus valores e conceitos. Assim, teria como eixo provocador os
determinantes sociais e econômicos, inseridos nas ações pedagógicas e no espaço
do trabalho.
Para garantia da integralidade nas ações de saúde e, por conseguinte do
processo formativo(26), os serviços de saúde devem se adaptar a concepção da
rede de cuidados, ou cadeia de cuidados progressivos(27). Atualmente, o sistema
está organizado na hierarquia de complexidade crescente (onde primeiramente se
localizam as Unidades Básicas de Saúde e PSF, logo as Policlínicas e Pronto
Atendimentos e por último os hospitais e centros especializados) e adotam uma
postura "prescritivista" marcada pelo racionalismo funcionalista. O espaço de
debate, articulação e construção destas ações ou políticas locorregionais, terá
como locos os Pólos de Educação Permanente (PEP), criados pelo Ministério da
Saúde através da Portaria Ministerial nº 198/2004. Segundo este documento, tais
PEP seriam núcleos de articulação entre gestores municipais e estaduais do SUS,
representações dos Conselhos de Saúde, instituições formadoras representadas
por seus discentes e docentes, entidades das várias categorias e a população
representada pelo controle social e movimentos sociais organizados.
Segundo a Portaria que regulamenta os Pólos de Educação Permanente, estes
buscam superar os limites da formação e da prática clínica: estabelecendo
vínculo, a responsabilização, a integralidade da atenção, a clínica ampliada, o
conhecimento sobre a realidade, o trabalho em equipe multiprofissional e a
intersetorialidade. Também se propõe a alterar a atual estrutura da
verticalidade única e hierarquizada na construção das políticas de RH, no
momento em que coloca como princípio construtivo e deliberativo a gestão
colegiada nestes Pólos, afirmando que tais agentes detêm os conhecimentos
necessários para a construção das políticas, em conformidade com a realidade
local da saúde. Esta estratégia vem ao encontro do que dita a Norma Operacional
Básica de Recursos Humanos para o SUS, no sentido de que as políticas de
formação de RH devem ser construídas respeitando o perfil epidemiológico e
demográfico de cada região do país, revelando que o princípio da regionalização
do SUS seria a forma organizacional que melhor garantiria a universalização do
direito à saúde. Assim, as políticas deveriam estar sendo construídas o mais
próximo possível das populações usuárias, para que tenham melhor capacidade de
resposta às demandas da população.
3.3 Vozes da Formação
A primeira Escola de Enfermagem surgiu em 1923, na cidade do Rio de Janeiro,
época em que o país enfrentava um forte processo de urbanização em suas
capitais. Esta situação forçou o governo a construir uma política sanitária
centralizada para controlar as doenças endêmicas que se alastravam pelos
centros urbanos. Devido às concepções de saúde e educação existentes na época,
o ensino em enfermagem já nasce desvirtuado de sua finalidade, pois a formação
trazia uma forte valorização do ensino prático, porém este se dava
fundamentalmente atrelado aos hospitais.
A criação das primeiras escolas foi apoiada pela Fundação Rockfeler, a qual
tinha como uma de suas atividades primeiras a construção de hospitais. Isto
influenciou fortemente a construção de políticas públicas, pois a Fundação
detinha um alto poder político e econômico neste período(28). Assim, o ensino
de enfermagem foi centralizado na realização de práticas em serviços
majoritariamente hospitalares, tornando-se então, um serviço coadjuvante da
prática médica hospitalar(28). Em 1949 ocorre a primeira mudança nos currículos
de enfermagem, sendo estabelecido um prazo de sete anos para extinguir-se o
ingresso nos cursos de enfermagem de estudantes cuja escolaridade fosse apenas
o curso ginasial. Somente em 1961, as Escolas começam a exigir que os
candidatos tivessem o curso secundário completo, correspondente ao nível médio
de hoje(29).
O currículo vigente desde 1972 não era capaz de dar as respostas necessárias às
necessidades de formação da enfermeira, havendo então uma grande mobilização da
categoria para construir um currículo mínimo. Em 1994 entrou em vigor um novo
Currículo Mínimo Nacional, cuja elaboração foi fortemente influenciada pelas
discussões ocorridas na ABEN. Porém, as divergências que este currículo buscou
superar não foram resolvidas, tais como fragmentação do eixo formador, mantendo
os ciclos básico e profissional, o ensino centrado no modelo médico, a
dicotomia teórico-prática, a desarticulação entre conteúdos e disciplinas, e a
adoção de práticas pedagógicas tradicionais(30). Assim, concluiu-se que não
estava sendo atingindo o objetivo de formar uma enfermeira critica, reflexiva,
competente e transformadora da realidade(30). Para que nosso leitor possa se
situar, destacamos que neste período foi instituído o Sistema Único de Saúde,
alterando assim, o modelo de atenção e gestão do setor saúde.
As DCN para os cursos de enfermagem foram construídas em um processo coletivo,
através de muitos debates descentralizados, onde a categoria de enfermagem
teria participado ativamente(31). A enfermagem vem discutindo qual o
profissional mais adequado para a tender as demandas sociais desde a década de
80, acompanhando a redefinição dos papéis dos profissionais de saúde que se deu
com a Reforma Sanitária(34). Encontra-se hoje em um cenário político e de saúde
favorável às mudanças em todos os níveis de formação profissional, sendo que a
implementação das diretrizes curriculares como estratégia para estas mudanças
vêm ao encontro das necessidades de saúde da população e ao fortalecimento do
SUS(34).
A adesão dos docentes a um novo referencial teórico é importante para a efetiva
apropriação do que está sendo implementado. Observam que os discursos na área
educacional provocam "modismos e encantamentos" pois muitas vezes o novo, em se
tratando de proposta educativa, se configura, entre os professores, como
alternativa mágica, podendo ser incorporado sem reflexão, à linguagem dos
educadores gerando uma certa banalização de conceitos como o da prática
reflexiva. Entre as novas "seduções" temos a pedagogia das competências, e
expressões como "aprender a aprender" usadas indistintamente, como um jargão
que, por si só, trariam qualidade ao processo educativo. Observa-se que caberia
a educadores e educadoras reconhecer a realidade social não para elaborar uma
crítica a esta realidade e, conseqüentemente, construir uma educação
comprometida com as lutas por uma transformação social, mas sim, apenas para
conhecer quais competências a realidade social estaria exigindo dos indivíduos
(35).
Aponta-se que as DCN propõem-se a desenvolver uma flexibilidade buscando romper
com o modelo arcaico e rígido de ensino, instituindo o Projeto Pedagógico como
base de gestão acadêmico-administrativa de cada curso e fornecendo os elementos
das bases filosóficas, conceituais, políticas e metodológicas que definem as
competências e habilidades essenciais à formação dos profissionais de saúde
(36). Porém, esta flexibilização expressa no mercado de trabalho, produziu a
realidade que temos hoje na formação, onde o desafio seria romper, tanto no
nível superior como no nível técnico, com a tradição tecnicista do ensino, em
virtude do próprio modelo de atenção à saúde existente no Brasil, marcado
historicamente, por um certo pragmatismo e pela ênfase no aspecto curativo de
atendimento(37).
Dentre as mudanças que as DCN trouxeram encontramos a do paradigma
profissional, pois esta indica que o enfermeiro deverá ter uma formação
generalista. E o que vem a ser com formação generalista? Este termo comporta
múltiplas definições(38), o que por si só já determina uma indefinição sobre o
tipo de profissional que se deseja formar. Podemos questionar se essa expressão
anuncia alguma contrariedade entre conhecimento geral e especializado? O
egresso deste currículo teria de ser capacitado para atuar em todos os cenários
de prática? Seu objetivo seria o de enfatizar a importância da formação ir além
dos aspectos técnicos, do saber fazer, atingindo outras competências?
Outro aspecto presente nos discursos é a questão da integralidade na formação.
Integrar as práticas e saberes exige a articulação entre as várias disciplinas
que compõem o novo currículo para formação do/da profissional de saúde, e entre
serviços e instituições formadoras como também trabalhar a saúde como qualidade
de vida por meio de práticas intersetoriais(39). Desta forma, é inviável um/uma
profissional ter a integralidade como valor para o exercício de sua função se
essa não tiver sido ensinada durante todo o seu processo de formação(39).
Durante a formação é necessário não só abordar questões relativas à doença,
envolvendo a biologia humana, o estilo de vida e a organização do sistema de
atenção à saúde, mas também uma agenda de formação que inclua princípios éticos
e políticos da Reforma Sanitária, privilegiando modos de fazer saúde que levem
em conta a integralidade, a intersetorialidade e o trabalho em equipe(39).
Em 2001, foi criado o Programa de Sustentabilidade para Implantação das
Diretrizes Curriculares de Enfermagem,tendo como propósito potencializar o
movimento de transformação buscado pelas Escolas/Cursos de Enfermagem. Foi
desenvolvido pela Associação Brasileira de Enfermagem (ABEN), através de sua
Diretoria de Educação e pelo Ministério da Saúde, em parceria com as
Instituições de Ensino Superior organizadas nos Fóruns de Escolas, uma
organizaçõa da ABEn que está sendo fomentada em cada Estado. Sua estratégia é
articular e apoiar Faculdades/Escolas e Cursos de Enfermagem na implementação
das DCN, propondo a realização de seminários e oficinas, em cada estado e em
eventos nacionais, em busca da sensibilização e mobilização para a mudança,
tendo como referencial as diretrizes curriculares nacionais.
Também entendemos que é necessário apontar que, dentre as possíveis
dificuldades na implementação de um currículo capaz de atender às
reivindicações da sociedade brasileira, a formação do professor é uma das
maiores, pois não é fácil para um professor cuja formação nunca passou por um
currículo "fundamentado no humanismo", cumprir esta missão, pois a graduação
historicamente tem privilegiado o tecnicismo e trazemos em nossa bagagem,
obviamente, a sua influência(40).
4 Conflitos e convergências
Neste momento, faz-se necessária uma reflexão sobre os conflitos e as
convergências suscitadas pelos discursos que estas vozes do controle social, da
gestão e da formação produzem. Esta reflexão possibilita construir um outro
discurso, tão frágil ou onipotente quanto os que foram analisados, não
possuindo a intenção de ser uma verdade única(4).
Ao Analisar as vozes do Controle Social, observamos que um discurso interfere
sobre o outro, estabelecendo o que se conhece por subordinação(4).Sendo assim,
estes discursos, por mais que tenham sido construídos num espaço
representativo, muitas vezes de conflitos ideológicos e divergência de
opiniões, são reflexos de um contexto histórico, ou seja, são fortemente
influenciados por tendências, são construídos em contextos onde as questões
políticas, econômicas e do trabalho exercem grande papel em sua constituição.
Logo, estas vozes são carregadas de múltiplas visões de mundo(4).
Ao descrever as vozes autorizadas a falar sobre a formação de RH para a saúde,
observamos que a afirmação de que há um grave descompasso entre a formação
acadêmica e a realidade social do país tem sido freqüente nos relatórios das
Conferências. Percebe-se que as vozes do controle social e da gestão, pelo
vocabulário que utilizam, trazem um enfoque bastante tendencioso à medicina,
porém são direcionadas a toda à área da saúde. É preciso refletir, em que
medida, afirmações como a de que os RH atuais apresentam um déficit técnico e
ético no seu preparo para a humanização, encontram reflexo na formação de
enfermeiras e enfermeiros. Acredita-se que, para iniciar esta análise, é
fundamental problematizar a questão da desigualdade entre os currículos das
escolas, privilegiando a dicotomia existente entre o campo profissional e a
formação protagonizada pelos cursos.
O campo profissional se encontra em constante mutação devido às conquistas e
avanços que ocorrem diariamente na organização do trabalho em saúde, e a escola
nem sempre consegue acompanhá-los, por ter uma natureza intrinsecamente
conservadora. A preservação desta dicotomia é defendida por quem argumenta que
a escola tem o papel de legar a cultura para as novas gerações. O fato de
aprender está inevitavelmente voltado para o passado e o papel do educador
supõe um imenso respeito pelo passado, esta é uma atitude conservadora sem a
qual a educação é total e simplesmente impossível(38).
Observa-se uma crítica à maneira desarticulada com que Ministério da Saúde e da
Educação vem trabalhando na discussão da política de recursos humanos,
indicando que projetos importantes estão sendo implementados sem a devida
articulação e debate entre estes agentes, influenciando apenas determinada
área, o que comprometeria o impacto ou transformação desejada por tais
políticas. Assim, acredita-se que tais reflexões sobre o passado próximo devem
estar sempre presentes nesta nova conjuntura de mudanças.
Encontra-se nos discursos da gestão a crítica ao distanciamento da formação dos
espaços da gestão descentralizada do SUS. Entendemos que devemos apoiar esta
descentralização da gestão fomentando a participação popular neste processo.
Esta descentralização quando ditada pelo modelo das competências profissionais,
busca também a precarização das relações e vínculos de trabalho. Logo,
precisamos refletir sobre quais intenções e gestos nosso Estado está
manifestando neste processo de mudança, quais cuidados tem tomado para não
reduzir esta proposta a um simples "tira e põe" disciplinas nos currículos dos
cursos. Se tivermos o ímpeto de nos constituirmos como profissionais cidadãos,
comprometidos em colaborar com o resgate da cidadania dos usuários, cremos que
nossa estratégia está na socialização do saber, a fim de que os usuários
adquiram autonomia em seu processo de cuidado, o que viria ao encontro das
vozes expressas nesta pesquisa. É possível pensar que deste respeito ou
comprometimento ético provenha o reconhecimento social que tanto desejamos.
Ainda na perspectiva da gestão consideramos importante destacar que a
enfermagem, dentre os cursos da saúde, é a que mais trabalha com temas como
planejamento, liderança, coordenação de equipes e de serviços. Este preparo é
explicitado no campo profissional quando percebemos um grande número de
enfermeiros/as ocupando cargos de chefia de equipes, gerindo sistemas em
secretarias de saúde. Porém devemos nos interrogar: em que medida esta atuação
tem garantido a qualidade dos serviços prestados? Quais modelos de gestão
estamos desenvolvendo em nosso trabalho? Deveríamos ainda, avaliar qual a
influência da visão hospitalocêntrica e do modelo neoliberal nesse processo e
se os conhecimentos ensinados nos cursos de graduação evoluíram suficientemente
para acompanhar às novas demandas administrativas do sistema. Será que esta
formação administrativa, não está muito empresarial, distante dos conceitos de
saúde defendidos atualmente? Será que a qualidade da assistência, que é direito
do cidadão, tem se pautado pela excelência? Quais as vivências proporcionadas
aos acadêmicos de enfermagem nos processos de gestão do SUS? Como proporcioná-
las em um campo marcado por um corporativismo hegemônico?
Durante a análise dos discursos percebe-se que cada qual tinha suas
peculiaridades. Naqueles provenientes do controle social, assim como nos da
gestão, encontra-se um tom provocativo, por vezes agressivo, no primeiro, isto
se explica pelo caráter reivindicatório, já no segundo, talvez por ter uma
tradição de ser o implementador das regras que, nesta lógica, os tornaria
responsáveis por manter a ordem social.
Já nos discursos da formação esta característica não é tão marcante, talvez por
serem os próprios autores os responsáveis pela ação prescrita nos discursos.
Porém estes também trazem suas dicotomias. Mostram-se defensores da
participação coletiva na construção deste processo formativo almejado, porém
reafirmam que os discursos têm características ambivalentes(4), no momento em
que, não citam a necessidade da participação popular em seus processos de
mudança. Seria esta mais uma das características conservadoras apontadas pelas
vozes da gestão e do controle social?
Apesar de buscar uma posição problematizadora, consideramos que sempre
apresentamos alguma tendência, pois ao descrever estruturas somos contagiados
pelos discursos dominantes(4). No entanto, reconhece-se que o discurso é poroso
à práxis e a práxis é modificada pelo discurso(4). Assim, faz-se esta reflexão
como um movimento político para que ela possa produzir novas subjetividades e
novos domínios de saber.